"Homem Urso", documentário de W. Herzog, não é mais um filme a rivalizar com a produção serial da National Geographic. E mais: é um filme sobre ursos que pouco fala de ursos, apesar de mostrar praticamente só ursos. Igualmente, é um filme de uma natureza espelhada, excessivamente expressiva não por si mesma - como nos cartões postais - mas pela sua capacidade de demonstrar quem é o maior protagonista desse filme.
O ecologista que protagoniza o filme é o real interesse do documentário, genialmente montado por Herzog a partir das 100 horas de filmes deixadas. Inicialmente, o personagem é visto sob a estirpe de aventureiro destemido ou de herói desbravador, porém o que direciona o filme é a recusa de Herzog em permanecer nesse terreno arenoso e pouco reflexivo, onde permanecem por horas outros tantos documentários sobre o homem e a natureza.
Ao debruçar-se sobre a vida desse protagonista e não somente sobre a função exótica desepenhada, Herzog capta todo o conjunto de contradições que resultam da arriscada atividade de proteção e estudo realizada pelo “homem urso”. O interessante é justamente o fato de que efetivamente ele não estuda os ursos e não precisa protegê-los. Resta-o então uma escultural e irracional vida afetiva com os ursos, o que daria a qualquer nova terapia psicoterapêutica um rico objeto.
E se o personagem não é nem guarda ecológico porque eles ou já existem ou são desnecessários, como também não é um cientista porque não possui qualquer método racional de estudo, o que lhe resta é ser o que a nossa sociedade melhor sabe construir: um personagem destituído de força prática e cheio de força simbólica, um exótico dos novos tempos, um homem que possui amigos ursos e se orgulha disso, tendo como medalha maior a sua capacidade de isolar-se do mundo, da sua espécie, para então doar sua afetividade a uma outra espécie que lhe seria mais acolhedora, apesar de ser sempre perigosa.
A dubiedade entre fuga da civilização e recusa, ao lado da afetividade com os ursos e o perigo iminente de ser comido por eles pode ser apontada como a chave explicativa da ótima trama de Herzog para mostra-nos esse personagem. Na incapacidade de desempenhar qualquer dos papéis modernos(de guarda florestal ou de estudioso), o “homem urso” torna-se a vivência cotidiana do simulacro pós-moderno no momento em que tem na “civilização” o seu inimigo mais raivoso, embora seja dela o seu filho mais atualizado, ou seja, o homem mais atual, que busca na descontextualização, nos confins do mundo, na nomeação afetiva de ursos selvagens a recompensa para a sua vida de tragédia ou para o vazio que o cercou durante toda a vida.
O ecologista é assim o primeiro mártir pós-moderno, pois se antes dava-se a vida por uma luta, como fez Ernesto Che Guevara; hoje, um mártir deve procurar durante toda a vida algo pelo qual se pode morrer. Está cada vez mais difícil encontrar, mas esse curioso personagem encontrou no Alasca algo pelo qual ele desejou morrer. Mas, a atualização da posição de mártir não possui mais nada de heróico, pois se antes morríamos pela libertação de um povo, agora luta-se para ser devorado por um urso em prol do épico pitoresco de um único “homem urso”. O bom é que o filme de Herzog nos permite entender tudo isso, ainda que com uma dose de consolo, o que não prejudica em nada a tônica geral do filme.
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