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24 de nov. de 2008

Em Cartaz: "VICKY CRISTINA BARCELONA"

Vicky Cristina Barcelona nos apresenta uma espécie de modo de produção intimista. As amigas Vicky e Cristina, apresentadas pelo narrador off onipresente, só parecem ser opostas. Confrontadas pelo narrador, Vicky é apresentada como séria e sistemática e Cristina como uma pessoa aventureira e inquieta. Ambas partem para um verão em Barcelona, uma cidade que inspira Cristina para a surpresa, para o novo e o inesperado. Em Vicky, a cidade sustenta as suas escolhas pelo estudo da identidade catalã, tornando-a mais segura daquilo que acredita e do conhecimento que almeja.

O título do filme sugere, e o próprio diretor sustentou a idéia, de uma terceira personagem principal, que seria a cidade de Barcelona. Entretanto, a cidade como personagem do filme, como criação, existe apenas como apropriação privada dos desejos de Vicky, de Cristina e das demais personagens que orbitam ao redor. Todas são marcadas pelo desejo exasperante, pela falta desmedida, a única diferença é que em Vicky esse desejo é represado, enquanto em Cristina ele é deliberadamente buscado e assumido.

O profundo mergulho do filme no campo dos desejos não tem fim. Soma-se as duas mulheres, o artista plástico interpretado por Javier Barden e a artista plástica interpretada por Penélope Cruz, aumentando os jogos pela satisfação pessoal, pela expressão dos sentidos, radicalizando o egoísmo, valor elementar de um mundo intimista. Desejo e morte, desde Freud, estão bastante próximos, assim como no filme, que parece uma mistura bastante atualizada de psicanálise e capitalismo.

A relação desse conjunto de personagens com a cidade de Barcelona ou com a arte é absolutamente e claustrofobicamente egoísta. O mundo está em cada personagem e, quem sabe por isso, Barcelona também possa ser personagem, justamente por se sugerir que a cidade e a arte, únicos refúgios de diálogo fora do ego, só são possíveis pela metabolização do consumo, do desejo e da apropriação privada. Como coisa pública, a arte e a cidade são virtualidades indignas de representação e se encontram fora do filme. Não é por acaso que a cidade vista pelo filme é turismo, enquanto a arte vista pelo filme é o experimentalismo formal do gênio, atributo de raridade que lhe agrega valor no mercado.

O sucesso do filme do sagrado diretor Woody Allen é nítido. Ele mastiga a psicanálise como um produto cultural, suavizado-a pelo riso. No seu filme, tudo vai mal dentro dos corpos, mas tudo bem porque eles têm vidas confortáveis, podem ir aos restaurantes atrás de surpresas, às cidades atrás de turismo, às artes atrás de beleza. O capitalismo para eles é um dado, o seu eu é a grande questão que os move, de dólar em dólar, de filme em filme. O dinheiro e a imaginação do ego se alimentam pela lei destruidora do desejo.

17 de nov. de 2008

Em Cartaz: "PAN-CINEMA PERMANENTE"

Pan-cinema Permanente é um filme que privilegia o poeta e a sua arte. Nadando contra o convencional, o filme de Nader não busca enquadrar Waly Salomão no tropicalismo, como normalmente se faz, aprisionando o autor e a obra em fatos culturais confortáveis e aceitos.

Quando se encaixa alguém no tropicalismo tudo fica mais fácil. As peças começam a se encaixar e abrem espaço para a nostalgia. O cinema, aliás, é um ótimo lugar para o público se ver desprovido de um tempo mágico, do qual ele não partilha mais ou nunca partilhou. O cinema facilmente pode se tornar uma experiência de idealização de um passado heróico e de um presente nefasto.

O filme de Nader escapa brilhantemente desses usos mais convencionais dos tempos da arte cinematográfica. No filme de Nader, o tempo se torna poesia. Não há legendas bem detalhadas, os cortes são bruscos e sem uma linha do tempo precisa. O tempo do filme segue a lógica da construção poética que se pretende discutir, e não apresentar. Toda a diferença desse filme para outras cinebiografias – como a de Paulinho da Viola, Celso Furtado e outras – é esse esmero da montagem, preocupada em manter o filme aberto para as conclusões de quem assiste. Os poemas são filmados em flashes instantâneos, onde a última linha ou palavra lida já se apagaram. Imprime-se à poética de Waly uma representação visual de suas poesias, recriando-as. O poema que dá título ao filme é lido pelo seu personagem, o cinema.

A poética convulsionada de Waly Salomão é tratada na ação. Suas cenas não são de testemunho. São cenas em que ele está se relacionando com os outros. Sua preocupação nunca é exclusivamente se narrar. Até mesmo quando está sozinho com a câmera, Waly está no computador, fazendo correções em um texto. Para Waly, como se vê durante o filme, narrar é estar em ação, expressando-se.

Os depoimentos existentes são de amigos – Antônio Cícero, Regina Casé, Caetano Veloso - e da família. Neles, procura-se uma memória afetiva de Waly, o que também escapa do simples drama, pois os depoentes não economizam motivos para expressar a falta que Waly faz.

Sua longa trajetória foi abortada por um câncer, que lhe abreviou a vida e a obra. O filme procura evidenciar a inquietação, para além da celebração. Os superlativos são suplantados pelo verbo. A história da arte é suplantada pela criação poética. A cinebiografia é suplantada pela cine-poética.

10 de nov. de 2008

Em Cartaz: "ORQUESTRA DE MENINOS"

Orquestra de Meninos de Paulo Thiago foi julgado hoje no Jornal Folha de São Paulo. Veredito: ruim. O juiz é Paulo Santos Lima, em “colaboração para a Folha”. Por que nos acostumamos a fazer do crítico de cinema um juiz?

Pode ser porque o ingresso seja caro e não se pode desperdiçar. Antes de pegar a carteira, é necessário fazer uma longa verificação na jurisprudência sobre cinema. Sinopses e críticas nos trazem o filme sem o filme. Podemos ter algo parecido com aquela colherinha de sorvete que provamos antes de levar uma bola. A despeito de toda a ladainha de que a arte é nosso alimento maior, o cinema no Brasil tem sido dominado em todos os momentos (produção, divulgação, crítica) pelo valor. Por isso é necessária uma avaliação, estrelas e outras métricas que fazem do filme algo mensurável. Mas, a dúvida é saber se a arte – e tudo o mais – é mensurável. Para quê? Mensurá-la é limitá-la, violentá-la. É fazer do crítico o dono de um filme pobre, do qual ele não conseguiu tecer qualquer articulação com a sua medíocre vida de juiz de casos que não lhe cabe julgar. Seu poder é o de reduzir as possibilidades da luz e criar falsos gênios, obras-primas com códigos de barra e se servir de espátula ou bisturi artístico para uma sociedade que se sujeita a pautar a sua vida segundo os pobres cadernos de cultura dos jornais, esmagados entre uma sentença cultural e uma coluna social. No fim das contas, saias, decotes e enquadramentos terminam no gosto do especialista?

Não se trata de advogar em favor do filme de Paulo Thiago. O filme pode e deve ser criticado. Mas, a crítica deve se alçar em algo além de si mesma, além da sua virtude de crítico, que eclipsada não é nada. O crítico, assim como o filme, é uma ponte aos outros e não a si mesmo. O nobre crítico diz “Mas não faz boa arte, e o longa será um compêndio de más escolhas: os enquadramentos que colam feio no rosto dos atores e a dramaturgia simplória” e ficamos sem saber o que é, para ele, boa arte. Aliás, o conceito de bom/ruim tem feito uma grande festa (quase uma orgia) na Ilustrada da FSP, desde a coluna da Mônica Bergamo até as críticas de cinema. Tudo é bom/mau, feio/bonito, chego a pensar que estejam avaliando apenas algumas tendências. Será? Mais adiante, o crítico fala em “vilões caricatos” e um dos vilões é Othon Bastos. Dá um TILT no conceito de vilão/mocinho, ruim e bom do crítico. E os parênteses são convocados para uma correção: “(e do qual nem o ótimo Othon Bastos consegue sair ileso)”. Ufa! Salvou o ator de filmes avalizados do cinema nacional, ele está novamente ao lado dos bons. Nesse caso, não foi culpa dele. Afinal, um filme não se faz pela atuação dos seus atores, sobretudo quando eles não têm culpa de nada, não é mesmo?

Nesse jogo maniqueísta e rasteiro, cuja a pobreza conceitual da crítica fica cuspida na cara do idiota do leitor que compra o jornal, o filme fica fora da roda e é o martelo do crítico que aparece.

O filme Orquestra de Meninos, assim como O Caso dos Irmãos Naves de L. C. Person, procurou fazer da reconstrução ficcional de uma “história real” uma oportunidade para pensarmos sobre a violência no Brasil.

O interessante é que os filmes não se fixam na violência do estado autoritário ou mesmo em uma violência de foco único. Eles usam a ficção para conseguir abarcar os múltiplos espaços de violência e cinismo da sociedade brasileira: o estado, a imprensa, o legislativo, o judiciário e também os moradores pobres. Sob esses filmes, as divisões clássicas da história entre ditadura militar e redemocratização caem por terra. Mesmo a Constituição Cidadã de 1988 fica rasgada (ou ainda não escrita) em 1993. É a ficção a única arma que o cinema possui para dar a sua versão sobre os fatos impregnados de cinismo. No filme documentário, as cenas de tortura estão sempre ausentes, só ocupadas pelo depoimento de quem as viveu. Na ficção, as cenas de violência sem registro podem ganhar uma versão que reforce os depoimentos de quem as viu efetivamente e de quem as viu e não viveu para contar.

A narrativa de Paulo Thiago é simples e enxuta, sem malabarismos estéticos, justamente porque não se trata de feio/bonito, de ousado/simplório. O que o filme pretende discutir é uma injustiça com a arte. Se a arte dos meninos é boa ou ruim, não sei, mas o que importa se a arte é boa ou ruim? Importante é como ela dialoga com a sociedade em que vive e que relações ela estabelece a partir da sua criação. No caso do filme, a música foi conquistada por Mozart e pelos meninos que dela necessitavam. Precisavam não do belo ou do bom, mas precisavam fazer, dialogar, expressar-se. Logo foram violentados por aqueles que passam os dias cultuando o bom e o belo, engravatados, cheirosos e bem alimentados.

O filme Orquestra de Meninos emociona e instaura pela ficção cinematográfica uma história a contrapelo, afrontando a história instituída na imprensa e nos poderes. Na sua narrativa, mescla-se a esperança e a violência fazendo-nos refletir sobre a necessidade de dosar o otimismo da vontade e o pessimismo da razão ante ao idealismo intimista e egocêntrico que reina cínico de segunda à segunda, 24h por dia.

15 de out. de 2008

Brasil - Cinema e Política: "OPINIÃO PÚBLICA"

I. Ponto cego nas representações cinematográficas da ditadura

Opinião Pública de Arnaldo Jabor destoa do tom geral dos filmes sobre a ditadura militar. Sem menção explícita ao Estado autoritário, Jabor faz uma minuciosa colagem de cenas documentais de uma suposta "classe" da sociedade brasileira, a classe média.

Entrecortado entre os mais diversos embarços cotidianos, o que se monta é um quadro de decadência da sociedade brasileira, marcada pelo seu conservadorismo, machismo e suas pequenas violências cotidianas. Desde a mulher que faz um balanço negativo de sua vida, narrando a decadência material de sua casa e sua família, enquanto o marido vivia em "farras", até a vedete ensinando as meninas "recatadas" o que é o amor, encontramos uma sociedade convulsionada e decadente, muito diferente das cenas combativas que estamos acostumados a ver nas centenas de filmes que abordam a luta armada.

O filme de Jabor ilustra um pouco o povo que as organizações de esquerda nunca encontraram na sua luta. A partir do filme, fica mais evidente o grau de descolamento existente entre as expectativas desses grupos e o seu poder de recepção por uma sociedade que, se não era um espelho não menos podre da ditadura que os governava, tinha com esse governo muitas afinidades, expressas não na vida pública ou nas idéias políticas, mas na sua miséria privada.

Um documento precioso pela sua peculiaridade na filmografia da ditadura, o filme faz um contraponto com a hipertrofia existente nos filmes e livros, da força das lutas contra a ditadura militar no Brasil. Na época em que foi feito, em 1967, o filme poderia ter gerado repulsa ou vergonha. Hoje, certamente nos permite perceber uma certa continuidade com o período ditatorial, insistentemente visto como um hiato e não como uma constante na história brasileira. A continuidade com o período se expõe na precariedade da sociedade brasileira, sempre passível à crise, ao autoritarismo e à fome.


II. Ponto cego no Cinema Novo

Com a Opinião Pública, apareceram alguns ruídos dissonantes nos acordes do Cinema Novo. Os problemas brasileiros e a força da "ruptura" feita pelos cinemanovistas pareciam carecer de algo mais do que a denúncia dos problemas sociais. O filme de Jabor parece ser um sintoma desse mal-estar de uma estética que foi derrotada, paulatinamente, a partir de 1964, pelas armas. Era necessário responder esteticamente ao ataque feito pelo golpe civil-militar. Descobrir os nexos civis dessa quartelada que contou, novamente, assim como em 1889, com a perpexidade apática dos que não possuíam armas.

Menos rancoroso que Terra em Transe, o filme de Jabor procura, sob a tutela atenta do narrador over, ouvir a "opinião pública" e não chacoalhá-la como fez Paulo Martins no filme de Glauber, como se o problema se tratasse nos termos de um encontro histórico, no qual o "povo" de Nelson Werneck Sodré faltou ao encontro.

Se, por um lado, percebe-se a necessidade ouvir seja lá o que for desses micro-ditadores, que há três anos eram uma fonte de esperança; por outro lado, o filme deixa sempre as suas falas incompletas, cortadas, não os deixando falar até o fim. Assim que diagnóstico é feito, corta-se a fala e o narrador entra para julgá-la, invariavelmente reprovando e desmerecendo o que foi dito. O filme deixa falar e ouve o que quer. Desse modo, aproxima-se de Terra em Transe, embora busque encontrar as raízes do golpe por baixo e não por cima, como fez Glauber.


III. A ancoragem movediça

Nos extras, Arnaldo Jabor (em depoimento contemporâneo ao lançamento do DVD) compara o seu filme com o que Eduardo Coutinho faria em Edifício Master (2002).

A comparação é feliz no sentido de que tanto Jabor quanto Coutinho perceberam que para mostrar a miséria brasileira inteira era necessário abandonar a idéia "demiúrgica" de estado tão presente em Terra em Transe. Isto implicava em reconhecer que o poder não emanava apenas de uma só fonte, mas é disseminado na sociedade, sob diferentes lutas e amplitudes.

A comparação é infeliz no sentido de que Eduardo Coutinho não se esconde em um narrador over. Ao fazer isso, não deixa a luta, a tensão entre diretor e sociedade, para a estúdio de montagem. Ele a faz ali, na frente das câmeras. Não que ele não se oponha às falas que ouve, não despreze algumas, não compreenda outras, mas o fundamental é que o diálogo se coloca dentro da representação, e só por isso é que há diálogo. No caso do filme de Jabor, o diálogo entre o povo, que felizmente ele foi encontrar, não acontece porque o cineasta se resguarda para a sua tacada final contra tudo que ouviu. Faz dos cortes da montagem sua resposta para àqueles que encontrou, complementadas pelo posicionamento a posteriori do narrador, rebatendo a sociedade que foi buscar. A pergunta que fica é a seguinte: o cineasta em 1967 se achava apartado desse povo que desejou ouvir?


IV. Jabor, ontem e hoje

Ao que tudo indica, ontem e hoje, sim. Jabor achava e parece continuar achando, ao contrário de Coutinho, que não faz parte da sociedade brasileira. Seus editoriais no Jornal da Globo, alguns até interessantemente críticos e linguisticamente bem elaborados, preservam essa marca indisfarçável de seu filme: o desprezo do intelectual pela sociedade.

Ambos, Jabor e Coutinho, fizeram parte do Centro Popular de Cultura da UNE na década de 60. Uma das discussões capitais no Centro era a posição que deveria ser ocupada pelo artista em uma sociedade que ele deseja ver transformada. Como entender o povo? Produto social, produtor ou transformador? Como entender o intelectual? Dentro ou fora do povo?

Jabor em 67 procurou entender o povo como produtor e produto da sociedade, retirando-lhe toda a carga transformadora, que havia sempre seduzido os membros do GT de Cinema do CPC. Em relação ao lugar do intelectual ou do cineasta dentro do povo, Jabor permanece inalterado. Tudo faz crer que, ontem e hoje, sob diversos contextos, ele permanece acreditando que ao intelectual é reservado o dever de "editorializar" o mundo, ao povo é reservado o papel imundo de vivê-lo.

A cada ano que passa, a inalterabilidade dessa postura de Jabor tem ganhado mais prestígio, visto que a tensão presente no CPC foi violentada pelo golpe de 64 e impediu que eles as resolvessem em um diálogo cultural e político com a sociedade. Depois do golpe, ficou mais fácil ser um intelectual elitista, basta ter dinheiro e espaço na mídia. Os argumentos político-culturais, únicos meios de fazer o diálogo dessa prática, foram sepultados em 1964 e aguardam a ressureição. Se é que ela virá.

Eduardo Coutinho, que optou por outro caminho, amarga o ostracismo midiático, o que parece não lhe incomodar. Seus filmes deixarão mais rastros éticos-culturais que os editoriais de Jabor, que andam servindo bastante à "opinião pública" para se esquivar moralmente da corrupção. Mas, qual a responsabilidade de todos - intelectuais e "opinião pública" nessa porno-política brasileira? Ela é só cinismo petista? O filme Opinião Pública (1967) de Jabor está aí, relançado em DVD, para nos mostrar que o problema é mais complicado do que parece.

13 de out. de 2008

Em Cartaz: "A GUERRA DOS ROCHA"

Dizer que A Guerra dos Rocha de Jorge Fernando é um filme comercial ou um filme global seria afirmar muito pouco. Menos proveitoso ainda seria considerá-lo um filme de entretenimento. Essas bizarras considerações da crítica e de boa parte dos espectadores são responsáveis por desqualificar ou qualificar o filme sem tratar dele. Assim, falamos para os nossos guetos, aos que aceitam não só nossas idéias e nossos gostos fílmicos, como também as nossas categorias analíticas. Desse modo, falamos de um filme, mas nada sobra da avidez classificatória, algo mais botânico que cinematográfico.

A Guerra dos Rocha trata das dificuldades de uma idosa no seu relacionamento com os filhos. Viúva de um membro do exército brasileiro, Dina Rocha tem três filhos: um senador envolvido em casos de corrupção, um advogado hipocondríaco e um músico de pouco sucesso e muitas contas a pagar. Essas três caricaturas do Brasil, aliadas as suas respectivas esposas, irão entrar em guerra para saber quem ficará com a mãe.

A personagem da mãe, apesar de idosa, é dotada de força extrema. Suas debilidades físicas não lhe impedem de seguir sozinha para a casa dos filhos ou de interferir na vida da família. Os problemas começam justamente porque Dina não é uma velhinha como todas as velhinhas. Ela se impõe como personagem ativa da casa que ocupa, tanto é assim que o seu papel é desempenhado por um ator. Por essas e outras, o filme é um longo silêncio sobre o problema dos velhos em nosso país. A velhinha enfrenta as esposas dos filhos e os assaltantes. Seu grande problema não é precisar do abrigo dos filhos, é exercer poder na casa deles, onde eles se mostram pouco poderosos.

O drama é privado, doméstico. Os problemas sociais aparecem (tiroteio entre a polícia e traficantes, assaltos, corrupção), mas são tomados como dados condicionantes da vida privada. A família dos Rocha é claustrofóbica. Sua comunicação com o mundo que os circunda é ativa quando o privado é favorecido (corrupção) e míope quando o mundo os ataca - não interessa o tiroteio, interessa escapar dos tiros. O risível é essa economia das trapaças, dos favorecimentos e dos problemas íntimos (traições, influências), garantida pela imunidade que os personagens possuem frente aos conflitos sociais. Desde que eles não violentem (e é claro que em todos os filmes inquietos eles violentam), a comédia está garantida porque o drama é familiar, autoregulado, conhecido.

Este filme é um espelho de um lugar social brasileiro. Pretende trazer risos às agonias mais dramáticas da classe média e da classe alta, àqueles que podem pagar por um ingresso de cinema que custa 30 reais – o meu foi cortesia. Um filme para conversar sobre com o analista, pautando comportamentos e problemas da vida privada. Isso é entreter? Isso é falar privadamente, por meio da arte, a algumas classes sociais que pagam um ingresso caro para rir do que outrora lhes fez chorar. Há quem goste do esporte, e ele dá lucro. O estranho é que, como cinema, esse esporte não dá tão certo. Jorge Fernando não é um diretor de cinema de sucesso, embora obtenha sucesso na TV. Sinal de que o cinema não retira do sofá todos os membros dessas classes retratadas? Ou de que o cinema é um lugar que possui, ao menos no caso dos filmes brasileiros, uma vocação para a reflexão pública e social, posição que a literatura ocupava há algumas décadas atrás?

2 de out. de 2008

"O HOMEM DO SPUTNIK" de Carlos Manga



“Um discurso que seja capaz de tomar o discurso ideológico e não contrapor a ele um outro que seria verdadeiro por ser ‘completo’ ou pleno, mas que tomasse o discurso ideológico e o fizesse desdobrar todas as suas contradições, é um discurso que se elabora no interior do próprio discurso ideológico como o seu contradiscurso. Esse contradiscurso é o discurso crítico, que não deve ser tomado como um discurso da objetividade.”


Marilena Chauí, Cultura e Democracia; p.22-23


Em O Homem do Sputnik, o grande personagem é o riso. Um riso permeado pela desconstrução das diversas falas do poder instituído. A desconstrução, no entanto, não tem ares heróicos e tampouco os oprimidos pelo poder são vistos como vítimas ingênuas. O riso do filme não resolve o mundo. Costura-o sob o olhar corrosivo do riso, explicitando o jogo desavergonhado da violência e do poder.

Anastácio Fortuna, protagonista do filme, é um artesão das galinhas. No seu galinheiro, os animais têm nome e qualidade própria. Se sua esposa não resistisse à idéia, ele colocaria as suas pupílas dentro de casa, evitando desastres, como o do dia em que um estranho objeto cai no seu quintal, matando as galinhas. Chateado pela morte de suas filhas, Anastácio descobre que a tragédia poderá não ser tão trágica. Na mesma noite caíra na terra o Sputnik, em lugar ainda não identificado. Comparando o objeto com a foto do jornal, ele desconfia que ganhou na loteria sem jogar. O Sputnik é todo coberto de ouro e Anastácio não hesita em embrulhá-lo e levá-lo ao penhor, acreditando ser possível construir um galinheiro livre das contingências naturais e, também, a partir de então, das políticas.

No penhor, a notícia se espalha. A imprensa carioca, os EUA, a Europa (na sua vertente francesa) e a URSS mobilizam seus instrumentos de poder para capturar o objeto. O Sputnik, produto mais bem acabado da técnica (leia-se política) capitalista, está sendo gerido por um criador de galinhas do interior do Brasil. O problema não é tanto o fato dele ser um criador de galinhas, é mesmo a idéia de um Brasil selvagem, atrasado e tropical que preocupa os, também caricaturais, membros das potências mundiais.

A caricatura é um artifício engenhoso a desdenhar do poder. Os estrangeiros, que não se lembram sequer a localização do Brasil, terão que aportar no atraso se quiserem de volta a galinha favorita do progresso. E, é claro, aportarão e irão se misturar de maneira bastante tranquila às negociatas, às fraudes e ao favor tropical. Ao longo do filme, Anastácio e o jornalista fracassado (que o descobriu) vão se tornando calmamente sofisticados frente à pressa e à sedução infantil dos poderes em prol da sua reprodução.

O final, que não vou contar, demonstra a complexidade narrativa de Carlos Manga – muitos diriam que é um crime nomear assim o esquecido diretor, ofuscado pela genialidade política de um Glauber Rocha. Anastácio não fica rico com o objeto e os poderes não conseguem capturá-lo. O caipira não sente saudade da temporada no Copacabana Palace e despreza os sonhos(fetiches) da técnica(reificação). Sua grande lição é o desprezo, a indiferença frente àquele mundo que poderia lhe dar um galinheiro novo. Os estrangeiros, frente ao fracasso em domesticar sua criatura, voltam para os seus postos do mesmo modo que chegaram. A história do filme, entretanto, nos faz questionar a diferença existente entre o criador de galinhas e o criador de naves espaciais. A questão (por si só) é urgente, num mundo que não consegue ver a técnica como uma ideologia. A resposta à questão aberta é algo que o filme não quer dar. A resposta do espectador, contudo, pode se dar na sua prática cotidiana, valendo-se do filme como um contradiscurso, capaz de nos fazer desconfiar que uma fundamental diferença entre a personificação das galinhas e a do Sputnik deve-se à capacidade de destruição e de opressão imposta (e não negociada) pelos pupílos queridos do discurso científico e da ciência.

22 de set. de 2008

Em Cartaz: "LINHA DE MONTAGEM"



“É muito tarde. Mesmo que todas as informações reconstruam os fatos, mesmo que saiba exatamente quem estava lá, mesmo que o ódio atravessado na garganta possa encontrar rostos a serem destruídos. Não foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo.”

Renato Tapajós, Em Câmara Lenta.




Os registros artísticos de Renato Tapajós surpreendem. Seus planos e palavras contam com um elaborado trabalho da linguagem, o que amplia o poder de narratividade da experiência tratada.

No dia 19 de setembro estreiou, em São Paulo, a versão restaurada de seu filme Linha de Montagem. Tapajós iniciou as filmagens das greves do final da década de 70 a partir de um pedido de Lula, personagem nitidamente dominante no filme. Por mais que se tenha buscado outros personagens, inclusive destacando depoimentos que se preocupavam com a dependência do movimento em relação ao Lula, a prodominância do líder aparece como questão não só para o filme, como para o próprio movimento. E dessa questão, o filme não se furtou, até mesmo contribuiu para problematizá-la. A mobilização das massas pela força de líderes carismáticos foi um fenômeno clássico do século XX brasileiro e, parece, ainda ser nesse começo de milênio. Foi tema bastante presente também para o cinema de Glauber Rocha.

O que habilita o filme como um documento rico para a história do país é a sua capacidade de ser, ao mesmo tempo, patrocinado pelo Sindicado dos Metalúrgicos e possuir várias sequências desconcertantes, hesitantes e incômodas. Unir patrocínio oficial e reflexão é uma operação política das mais complicadas, pois exige da linguagem uma qualidade que faça calar as pressões simplificadoras do poder instituído, ainda que seja de um sindicato de metalúrgicos (não estão livres da ambição silenciadora e autoritária).

A qualidade cinematográfica nos legou um fantástico encontro. Numa manhã, no ABCD paulista, durante o primeiro dia de greve, encontraram-se na porta da fábrica a polícia, os cineastas, os sindicalistas e um operário que desejava furar a greve. Este é o primeiro fura greve humanizado do cinema brasileiro. Sua postura hesitante, em dúvida entre a força da luta e as consequências repressivas, convida-nos a um olhar menos maniqueísta sobre essa figura social esquecida e menosprezada, que deve ser convencida politicamente e não escurraçada. O esforço de discussão do sindicalista e sua dificuldade em realizar seu objetivo também fazem do filme mais um objeto de reflexão do que uma coleção de imagens heróicas das greves, pois não há nada heróico em ter o seu RG apreendido pelo policial, após tentar, em vão, convencer um operário a não entrar na fábrica. A sequência é um registro magnífico daqueles tempos de esperança e de dificuldades, ainda sob a vigilância violenta da ditadura civil-militar. Desse encontro entre esses vários grupos sociais, a polícia impõe a sua força, ainda que o cinema lá esteja para registrar a violência do estado contra a livre discussão entre dois operários. Nessa sequência, o operário perde duas vezes, uma para o seu companheiro de trabalho, outra para a repressão. Isso em um filme financiado pelo Fundo de Greve, o que jamais se pode deixar de levar em conta, para justamente enaltecer a força ética e reflexiva do filme. Este filme é, de fato, uma fonte de grande valia para a memória brasileira. Sua restauração e disponibilização nos cinemas e, em breve, em DVD deve provar isso.

As entrevistas realizadas em momentos próprios, marcadas para acontecer, entercalam-se com as entrevistas realizadas na entrada da fábrica ou em uma Assembléia. Se considerarmos que é o presente que nos traz na garganta a vontade de narrar, é de se supor que as entrevistas nos locais das ações sejam importantes para se captar tensões em determinados momentos da luta, por exemplo, na assembléia em que se volta ao trabalho sem as reinvindicações atendidas, único momento em que Lula é vaiado. Por outro lado, as entrevistas mais convencionais, sentadas e marcadas em momento específico, trazem uma reflexão do próprio movimento sobre a sua memória. Nesses momentos, alguns operários se destacam como historiadores de si mesmos, experiência também importante para um filme que não quer canonizar ninguém, nem eleger um grupo social iluminado.

Não endeusar o movimento é mostrá-lo suando. Por isso, há planos muito interessantes que destacam o peso dos boletins, a sua produção física, na gráfica. Os operários com as mãos sujas também na greve é uma imagem digna de um filme que ultrapassa a questão sindical para alcançar metáforas imagéticas que se inscrevem na história do cinema. Não só as idéias da greve compõem o filme. Também estão lá as mãos sujas de tinta da gráfica do sindicato e o peso dos vários fardos de boletins sendo levados ao caminhão, que os distribuirá para mais de 100 mil pessoas em três horas. O custo braçal dos movimentos sociais, sempre aquele plano desprezado na montagem, aparece artisticamente e politicamente articulado no filme de Tapajós.

O processo de restauração e relançamento de filmes brasileiros tem trazido à tona a necessidade de refletir sobre os filmes nacionais. Mais um passo é dado nesse sentido com o filme Linha de Montagem. Não para lamentarmos o tempo em que Lula era líder da esperança, mas para ampliar ainda mais as perguntas e as dúvidas de como vamos mudar esse tempo, sempre repetido, sob diferentes formas, de violência e exploração.

15 de set. de 2008

Em Cartaz: "MISTÉRIO DO SAMBA"


Carolina Jabor até deu um pulinho nas colunas sociais. E as matérias não se esqueceram de dizer que o filme Mistério do Samba tinha o DNA da fama, lembrando que Lula Buarque de Hollanda é sobrinho de Chico Buarque. Passada a genealogia do sucesso da alta cultura, temos o filme realizado pelos dois e protagonizado por Marisa Monte, Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho.

Tantos famosos em um único filme para encontrar um grupo de (quase) anônimos, responsável por uma experiência do samba diferente da atual. Nada de luzes, efeitos especiais e sambódromo. O samba da velha guarda era um exercício de liberdade frente aos incontáveis momentos de dificuldade e opressão. Os personagens da velha guarda da Portela são tratados pelos três artistas famosos com reverência. Os famosos parecem conversar com ídolos preciosos, escondidos. É de se perguntar por que esses três artistas precisam resgatar a experiência da velha guarda? Por que eles precisam olhar para uma outra experiência musical, diferente da deles?

Certamente, porque eles não estão satisfeitos com as suas experiências musicais. Marisa Monte resgata sambas perdidos, Paulinho da Viola relembra os momentos em que conheceu os sambistas da velha guarda, Zeca Pagodinho funda a sua origem no samba de terreiro. Paulinho da Viola, que um dia cantou: "Olá, como vai? Eu vou indo e você, tudo bem? Tudo bem, eu vou indo, correndo Pegar meu lugar no futuro, e você?", hoje participa de uma desesperada busca pelo passado.

É desesperada porque é tardia. Alguns já morreram, as fitas já começam a mofar e, mais do que o belo trabalho de Marisa Monte, é necessário constatar a seleção cultural imposta em nosso país. Nenhuma música de Chico Buarque se perdeu, como se perdem as dezenas de fitas feitas pelos integrantes da velha guarda. Graças ao trabalho de memória dos ainda vivos é que se pode resgatar alguns sambas.

Esses sambistas anônimos, ontem e hoje, vivem superando as próprias dificuldades. Todos eles trabalhavam em outra atividade e o samba era mais sonho que remédio. Até mesmo na perpetuação de suas memórias, eles precisam trabalhar duro para não se desmancharem no ar. A memória é sua última arma para se defender contra o mundo hostil onde sempre viveram.

Os artistas contemporâneos, ao contrário, fundam-se numa tradição, encontram um porto seguro. O final, para eles, é feliz. Encontraram um passado para se ancorar e acreditam ter dado uma âncora a esse passado ameaçado. Um consolo para aqueles que, como Tia Eunice, afirmaram que o samba era muito trabalho e muita roupa para lavar?

29 de ago. de 2008

"AMARGO REENCONTRO" de Richard Linklater

Richard Linklater Amargo Reencontro (Tape; 2001), em seu filme , testa os limites do cinema. Para isso, tranca-o num quarto de hotel. O filme está proibido de sair e os planos devem mostrar sua riqueza e habilidade trancafiados num quarto. Três amigos se reencontram e debatem sobre um fato doloroso, ocorrido há dez anos. O triângulo amoroso dos tempos de escola se transforma em um ponto de encontro dos três personagens, que divergem sobre o fato e entrelaçam os rastros do passado e os interesses presentes em lembrar das situações traumáticas.

Vince é o responsável por impor a lembrança do fato aos amigos, pois nitidamente ainda não superou a dor. Traficante e usuário de drogas, Vince é logo visto com desprezo pelo amigo Salter. Não venceu na vida, entrega-se aos vícios e tem ímpetos violentos. Uma antípoda do amigo, Salter, cineasta independente, mas equílibrado; livre, mas bem sucedido. Linklater parece, neste filme, provocar o cinema e a posição social do cineasta. Afinal, que cineasta independente é esse que vê alguma virtude no equilíbrio e um conforto no sucesso?

Enquanto Vince vomita e revolve o passado, Salter começa a ser dar conta que o descontrole do amigo não é vão. Suas hesitações, provocações e até sua violência vêm da voracidade com que destrói verdades e se inquieta com as relações e, sobretudo, com o fato em questão. Em meio a um provocador voraz, tem-se, dentro do quarto, uma câmera, um cineasta-personagem e Amy, uma defensora pública. Curioso é que todos, menos Vince, possuem uma relação profissional (ou vocacional) com os fatos e, no entanto, apenas o bombeiro drogado parece crer que duvidar dos fatos é um bom caminho.

Salter logo deixa claro que quer se esquecer da transa com Amy, pois se arrepende da sua atitude, envergonha-se de como agiu. O cineasta de sucesso, mesmo que independente, é aquele que elabora sua vida através da arte ou aquele que a soterra e a separa da sua biografia? O filme parece nos perguntar.

Interessante é a chegada de Amy, após Salter ter confessado que a estuprou, com direito a uma gravação feita por Vince. Tem-se uma prova, uma fita com uma confissão (daí o título original Tape) para ser mostrada a uma profissional do direito, que é, ao mesmo tempo, vítima de Salter e agente da justiça. Para surpresa geral, ela não tem nenhuma queixa contra Salter, diz inclusive que gostava dele e não de seu ex-namorado, Vince. E se não há vítima, não há crime.

Para Vince, o fato se explica, não da maneira esperada, mas se explica. Ela não transou com ele porque não o amava. Para Salter, fica a decepção por ter recalcado um fato equívoco, por dez anos. Para Amy, a certeza de que Salter não a amava. Assim como no poema Quadrilha de Carlos Drumond de Andrade, quem vence é o desencontro. Nesse filme, o J. Pinto Fernandes, aquele que não havia entrado na história, é o cinema, que é o responsável por observar o desencontro sem dor, pois por trás de tudo o que se faz é um belo filme.


“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.”

Quadrilha, Carlos Drumond de Andrade



Para o cinema, fica a certeza de que um bom filme não é feito apenas de fatos, efeitos especiais e múltiplos cenários. É preciso primeiramente problematizá-los, fazendo-o do mais simples e banal triângulo amoroso escolar uma reflexão sobre o que significa falar sobre algo, o que significa representar um fato e como um fato social se instala na constituição individual, biográfica, de cada um. Mesmo trancada em um quarto, a imagem cinematográfica tem um rico universo a explorar, desde que dentro desse quarto exista algum rastro humano. E isto sempre há, desde que exista um cineasta suficientemente inquieto para enxergar.

5 de ago. de 2008

"Couro de Gato" e "Gato de Madame": controvérsias felinas e proximidades entre a Vera Cruz e o Cinema Novo

A próximidade temática do curta Couro de Gato (1962) de Joaquim Pedro de Andrade e do filme Gato de Madame (1956) de Agostinho Martins Pereira, estrelado por Mazzaroppi e produzido pela Vera Cruz, sugere um confronto entre duas maneiras de representar o Brasil. Em ambos, o montor central da narrativa é a posse de um gato. Em Couro de Gato, a questão central é vender os gatos para fazer tamborins para o carnaval; no filme de Mazzaroppi, o problema motor é a recompensa de 100 mil cruzeiros para quem encontrar o gato da madame.

Na nossa tradição historiográfica e da crítica cinematográfica, convencionou-se ver na Vera Cruz (filme de Mazzaroppi) e nos primórdios do Cinema Novo (curta de Joaquim Pedro) um conflito, uma separação. Para se valer de uma palavra mais comum nas questões historiográficas, via-se nos dois filmes – sobretudo naquilo que estava em jogo por trás dos filmes, nos manifestos políticos – uma ruptura. A Vera Cruz seria a indústria incipiente que adquiriu o sucesso de público, mas pecou na crítica política. O Cinema Novo, por sua vez, teria primado pela crítica política e pelo rigor ideológico, mas ficara reservado ao gozo de um público europeu politicamente erudito e, no Brasil, destinado ao limbo, num país de surdos-alienados que não estavam à altura da arte politizada.

Assistir aos filmes, partir das imagens – como insiste Marc Ferro no seu livro clássico, História e Cinema – é um bom passo para relativizarmos esses estigmas sobre a Vera Cruz e o Cinema Novo.

Nos dois filmes, há uma estrutura onde o personagem principal se relaciona com o gato e tem, em relação ao animal, uma dupla relação. Uma é a sua própria relação com o animal, que nos dois casos é de identificação e amor, cumplicidade, afetividade. Outra relação, é a composta pelo sujeito e pelo gato com a sociedade. É, esquecemos, hoje em dia, que as relações entre pets e donos estão mediadas pela sociedade, mas enfim... Nos filmes, essa relação com a sociedade, a relação homem-animal, se modifica. No curta de Joaquim Pedro, ela é de subsistência, de necessidade extrema. Quando chega o carnaval, o couro do gato se torna uma mercadoria privilegiada e provoca as necessidades dos meninos do morro. Eles irão à caça. No filme de Mazzaroppi, ao contrário, o ganho é pela proteção do gato. Os 100 mil cruzeiros serão entregues àquele que devolver o gato à madame. Essa distinção é crucial para se entender porque um filme é um drama em torno da vida do gato e o outro filme é uma comédia. No primeiro filme, o sujeito, uma criança da favela, deve matar o animal para sobreviver. No filme de Mazzaroppi, o homem do povo, o matuto vai ser seduzido pelo gato e, meio sem querer, vai se deparar com uma fortuna nas mãos, que nada mais era do que um pobre gato encontrado na rua. No filme do Cinema Novo, temos um dilema, no qual a morte é a mediadora mais provável. No filme da Vera Cruz, temos uma peripécia, um acidente, no qual Mazzaroppi se vê, mesmo sem saber, com um pobre gato, que, na verdade, é uma grande fortuna proposta pela madame.

Mas, colocando um pouco de sal nessa receita, não podemos dizer que, no curta Couro de Gato, há, apesar do dilema, uma experiência de reconhecimento da dor do animal, perpassada pela afetividade doada pelo menino? Essa experiência de dor estaria registrada pela câmera e seria o reconhecimento da dor do menino em relação ao gato, mas não apenas isso, estaríamos também reconhecendo a dor do menino em não ter escolhas frente ao dilema imposto pelo mundo em que vive. Apesar do final triste, no qual o menino entrega o gato para ser morto, estariamos experimentando, por meio da dor do menino em relação ao gato, uma compaixão nossa em relação ao menino. O curta assim, apesar de não ter um final feliz, propõe um reconhecimento do sofrimento do menino, o que é uma conquista. Sobretudo nos nossos dias, em que a exclusão social é mediada pelo BOPE, torna-se urgente e feliz um filme que produz um reconhecimento da dor do outro, um pesar pela ausência de escolhas e pelo trauma de um outro.


Do mesmo modo, pode-se dizer que, na salvaguarda do gato por Mazzaroppi, não há um percurso onde o matuto, o homem do povo, se resigna com a sociedade em que vive. Mazzaroppi é extremamento crítico com o gangesters (como ele mesmo fala, a língua gostosa do povo, como dizia Oswald de Andrade), com os espíritas ou com a alta burguesia e a madame. Transformar a sociedade é outra história; mas, de fato, a atitude de Mazzaroppi é de não se seduzir com os detentores do poder. Dos 100 mil cruzeiros, só 20 vão para Mazzaroppi, pois ele tem que atender a toda uma gama de parasitas-burgueses que lhe retiram a maior parte da recompensa – seguradoras, publicitários, etc. Desses 20 mil, uma parte o matuto doa para os meninos engraxates (muitos próximos ao menino de Couro de Gato) que o ajudaram na epópeia com o gato. Desse modo, Mazzaroppi rechaça os valores burgueses – estruturados no trabalho e na acumulação – e milita pelo ócio e pelo desprendimento com o valor de troca. Faz, assim, não uma comédia conformada, mas uma comédia que coloca o riso como um escárnio dos valores burgueses, expressos no filme pelo mundo da madame e dos gangesters (como afirma o personagem).

Daí, por uma temática comum e caminho distintos, ambos os filmes acabam por criticar a realidade brasileira de diferentes formas. Essas formas possuem distinções que necessitam ser reconhecidas na sua diversidade, mas menos para atestar uma oposição estanque e mais para sugerir a sua complementaridade.

21 de jul. de 2008

Em Cartaz: "DO OUTRO LADO"

O filme Do Outro Lado, de Fatih Akin, é um filme sobre exílios. Não só sobre os exílios clássicos, oriundos das repressões estatais mais expressas, mas também de exílios forjados em novas violências e crises menos nítidas. A globalização, filha querida do mundo nascido após a queda do muro de Berlim, ao contrário do que muitos pensam, não acabou com os exílios. Talvez o Estado repressor onipontente (do século XX) tenha apenas perdido o monópolio sobre a capacidade de cercear a liberdade dos seres humanos. Todavia, o filme é interessante ao mostrar quão longe estamos da liberdade, seja na Alemanha – os ricos da sociedade global – ou na Turquia – o campo de mutilados pela globalização.

O filme está estruturado em grupos de personagens que têm suas histórias entrelaçadas, embora nunca se encontrem de fato. Difícil – e talvez indevido - é reconstituir toda a trajetória desses grupos. Este é um daqueles filmes que retiram rapidamente os impacientes da sala. Em boa parte das duas horas de filme, é necessário guardar algumas peças que só serão juntadas ao longo do filme. Algumas dessas peças ficarão mesmo sem uma resposta definitiva.

Durante a montagem do quebra-cabeças, somos convidados a recusar o maniqueísmo ao tratar dos conflitos envolvendo a imigração turca na Alemanha. No filme, nem os imigrantes turcos são santos e coitadinhos, tampouco o alemão “genuíno” é realizado e feliz. Nem por isso pode-se pensar que turcos e alemães têm sinas iguais na Alemanha e fora dela. Aos desavisados, o filme alerta que alguns sangues valem mais do que outros, apesar da eugenia nazista ter sido derrotada há algumas décadas.

O quebra-cabeças também cumpre o papel de fazer o espectador sentir-se parte desse mundo de desencontros, onde tudo parece tão mais fácil e próximo, ainda que não esteja acessível a todos. Familiares perdidos, revoluções socialistas e estados totalitários, vidas descartáveis, fome e remorso parecem ser fatores que se mesclam nesse ponto de contato entre a Alemanha e a Turquia, tão esclarecedor da catástrofe escondida atrás da aparente felicidade da União Européia.


Por ser um filme mais de perguntas do que de respostas, fica aquela sensação curiosa produzida pelos bons filmes: paramos um pouco de viver a nossa trama, a nossa ficção, e vamos ao cinema ouvir e ver a vida dos outros, confiantes de que, ao fazer isso, estamos voltando mais experientes e com mais dúvidas para aquela nossa trama que deixamos de lado durante o filme. O filme bom é aquele que cumpre bem a travessia entre aquilo que sobrou da vida de um outro (desconhecido) e aquilo que nos faltava quando decidimos parar a nossa trama pessoal e entrar no cinema.

19 de jul. de 2008

"A VIAGEM" de Fernando E. Solanas

Para quem conhecia o Fernando E. Solanas de Memórias do Saqueio, como eu, é uma grata surpresa assistir ao filme A Viagem, lançado em 1992, pouco depois do atentado político (pós-guerra fria) sofrido por Solanas. A sua crítica política se mantém, o seu olhar apurado para as contradições latino-americanas também, o que se transforma é a sua linguagem. Em A Viagem, Solanas se vale da ficção para compor uma ácida e bem humorada crítica ao saqueio neoliberal latinoamericano.

As políticas neoliberais foram – e ainda são – articuladas com uma poderosa ideologia do progresso. A modernização, na boca dos chefes de Estado e dos meios de comunicação de massa, parecia não ter um preço. Solanas procura mostrar o preço do progresso de maneira inusitada, transformando esse discurso pelo progresso e pela modernização em bravata. Não o faz, entretanto, valendo-se de mais discurso, mas apela para uma representação dessa bárbarie, escondida pela ideologia política neoliberal.

A bárbarie ganha imagens concretas, cujo absurdo fica à cargo das contradições das políticas neoliberais. Nessas imagens, a Argentina é um grande país alagado, após o dilúvio promovido pelo Dr. Sapo, responsável por afundar o país. As pessoas vivem, de fato, as dificuldades de estar em meio à água. A figura retórica, a imagem-crítica, permite sequências fantásticas que misturam humor e horror em medidas autenticamente latino-americanas. No Brasil, a imagem-crítica é a do ajuste, todos os cidadãos brasileiros também se acostumaram a viver com um cinto, uma espécie de camisa de força, que lhes prende e dificulta o movimento. A mídia os trata com a naturalidade devida, o ajuste é explorado pelo marketing nos vários modelos do tal cinto, para uma ou três pessoas, em vários modelos. Na América Central, existe a Organização dos Países de Joelhos e até o presidente dos EUA, quando vai visitá-los, se curva de joelhos para não deixar clara a assimetria entre os chefes de Estado.

Toda essa cadeia de imagens políticas é costurada pela história do personagem Martin Nunca. Jovem estudante de uma ilha no extremo sul da Argentina, ele decide partir em busca de seu pai, que estaria na cidade de Paraíso, no Amazonas. O pai, geólogo e quadrinista, legou ao jovem Nunca uma série de histórias em quadrinhos que narravam um pouco da America Latina que os discursos oficiais pretendiam esconder em baixo dos sujos tapetes do progresso. Sua epopéia é a busca da paternidade e o encontro com um mundo desconhecido. É crescente a resolução do drama privado pela via do encontro com os dilemas públicos desse continente de sina comum, o fado de ter conhecido a violência européia pelas línguas latinas. Posteriormente, o mesmo fado de se revirar sobre essa herança também em português e espanhol, as línguas do progresso marítimo e comercial.

As imagens de Solanas dão nova expressão a essa crítica da violência política nesses países, pois o absurdo expõe os detentores de poder ao rídiculo, mas também desafiam as pessoas a se perguntarem se é mesmo normal e natural viver sob o dilúvio neoliberal, sob o ajuste dos sintos ou viver de joelhos. Ao contrário da viagem latino-americana de Ernesto Guevara, rodeada nos cinemas de uma apoteose libertadora, a epopéia de Martin é a da surpresa, de um descortirnar das ideologias por meio da experiência de estranhamento da própria vida.

Seria a orfandade de Martin, a qual ele deseja reverter na sua viagem, a orfandade de projetos políticos que abateu a América Latina após as ditaduras civis-militares, após a Guerra Fria e, sobretudo, após as políticas neoliberais? Se sim, o drama de Martin é público e o filme ajuda, por meio de risos rosados, a nos questionarmos: - Devemos enxugar os sapatos, cortar os cintos do ajuste e esticar os joelhos? Mas, como fazer? O filme nos deixa a pergunta sem happy-end, nem Martin encontra seu pai, mas já sabe que valeu a pena procurá-lo.

30 de jun. de 2008

Em Cartaz: "ESTÔMAGO"

pouco mais de 50 anos, os imigrantes nordestinos chegavam ao cinema nacional. Paulo Emílio Salles Gomes afirmou, certa vez, que o cinema brasileiro ainda estava preso aos motivos metropolitanos. A colônia não era digna de nota nas telas. Nesse percurso de ampliação dos olhos do cinema brasileiro, os que não detinham o poder só apareceram decisivamente com os filmes de Nelson Pereira dos Santos, com o CPC e o Cinema Novo. Desde então, a representação do povo mudou muito, adquiriu novas perspectivas. Hoje, vendo um filme brasileiro como Estômago, em cartaz há algumas semanas, podemos dizer que a representação do povo no cinema explodiu numa diversidade tão grande e rica, adquirindo uma certa individualidade?

Dizer que o povo adquiriu uma individualidade na r
epresentação cinematográfica talvez signifique dizer que não é mais possível falar em povo, como uma massa genérica e uniforme de pessoas oprimidas pelas diferentes modalidades de poder existentes. No filme Estômago temos duas narrativas paralelas que só se encontram no final do filme. Em ambas, Raimundo Nonato, migrante nordestino, está privado do poder e sob forte ameaça de violência. Na primeira, perambula em São Paulo sem dinheiro e sem teto, indo se abrigar nos fundos de um bar sujo, depois de não ter como pagar pelo que comeu. Na segunda, está na mais baixa escala de poder dentro de uma cela de presídio. Vencido na “maior cidade da América do Sul” e vencido numa pequena cela de presídio, Raimundo Nonato alcança, em dois momentos paralelos, o ápice da opressão. Ele pode ser morto a qualquer momento, ele é nada mais que um ser matável, um potencial não-ser.

Até aí estamos muito próximos dos primeiro
s filmes que ousaram representar os irrepresentáveis. Próximos da opressão existente no curta Um Favelado (de 1962), dos meninos de Rio Quarenta Graus, do sambista Espírito de Rio Zona Norte ou dos camponeses de Deus e o Diabo. O diferencial aqui é que a opressão exercida em Raimundo é o princípio e não o fim da narrativa. Todo o filme desenrola-se sob a autoridade do sem autoridade, no galgar de pequenos degraus que fazem o “sem nada” passar a possuir algo que ninguém pode possuir.

Esse algo que o permite galgar degraus é o seu talento culinário. Com ele, Nonato adquire prestígio na cadeia e reconhecimento no bar onde tinha aportado como semi-escravo. O não-ser Nonato começa a manipular o desejo dos outros. A fome serve no filme como alegoria do desejo de poder, da vontade de potência. Nonato é, nesse sentido, um operário do desejo. E, nessa condição, manipula os reais detentores de poder nas duas narrativas: na primeira, o dono do restaurante chique onde foi convidado a trabalhar; na segunda, o dono da “cela” que o utilizou como instrumento de saciedade, fazendo de Nonato seu cozinheiro titular.

Não se trata de louvar a reviravolta de um migrante nordestino que faz da sua individualidade o ingrediente único para resolver o problema social e histórico da desigualdade social no país. É nesse ponto que se localiza a genialidade do filme. Nonato não é, embora pareça ser, um self made man. Ele parece ser por possuir um talento nato, capaz de lhe permitir lutar e se confrontar com o poder estabelecido. Entretanto, não há ilusão: esse seu talento serve mais para mostrar a fragilidade dos que detêm o poder – o dono do restaurante e o chefe da cela que precisam dele – do que para emancipar Nonato.

A paixão de Nonato por uma prostituta (Íria) amplia os lugares de desejo propostos pelo filme. Só a ela o cozinheiro de talento expõe-se sem reservas e manifesta ali o seu desejo, a sua necessidade de tê-la. Fraquejado por ela, ele também entra para o hall dos fracos ou dos que precisam do outro, pois a grande idéia que perpassa o filme é a de que o desejo enfraquece, expõe à necessidade, à falta e deixa ao léu todos os viventes. E Íria, apesar de se envolver com Nonato, deseja a estabilidade material de Giovanni, o dono do restaurante. Com o noivado marcado com Íria, Nonato flagra-a em um jantar íntimo com Giovanni.

As duas narrativas encontram-se no momento da violência, quando o desejo dá lugar à morte. Nonato mata Giovanni (o dono do restaurante em que trabalha), Íria (a dona do seu sonho) e Bujiú (o dono da sua cela). O operário do desejo se rende à insuficiência do seu ofício. Instala-se um anticlímax que vai além do pessimismo glauberiano de Terra em Transe. Se lá no filme de Glauber a classe média esclarecida (Paulo Martins) balançava o povo para provocar uma reação, no filme Estômago o povo tem nome próprio, talento e sina individualizada. Burguesia e proletariado, elite e povo sucumbem com nomes próprios, alheios a qualquer projeto maior e mais duradouro que vença a voracidade do desejo mais imediato da fome, da carne, do sexo, do indivíduo. Estômago, nessa perspectiva, é um olhar apurado sobre a miséria do nosso mundo, que individualiza todos os personagens, fazendo-os transitar facilmente entre o imediatismo do prazer e a radicalidade irrevogável da violência. Nesse transitar macabro entre desejo e morte, ficam de fora os projetos políticos (a revolução), os projetos de vida (o noivado, a tradição da burguesia) e a identidade entre os grupos oprimidos (o povo).

20 de jun. de 2008

Em Cartaz: "CORPO"

O filme Corpo, dirigido por Rossana Foglia e Rubens Rewald, reflete de maneira interessante sobre o lugar da história e da memória. O filme tem como personagens principais dois médicos legistas e grande parte do enredo se passa dentro do IML cheio de cadáveres. O trabalho do legista – como reforça insistentemente a legista-chefe – é descobrir de que causa (médica) aquele corpo morreu. E só. Contra essa determinação, o personagem Artur (Leonardo Medeiros) especula sobre a condição da causa mortis: sobre o socorro que poderia ter salvo aquele corpo, da bala que poderia ter sido evitada, da bebida excessiva para descontar o desgosto da vida. A perseguição pela situação que leva a morte de um corpo é tanta que, mesmo com os vivos, Artur continua fazendo seus diagnósticos imaginários.

A imaginação e a especulação estão presentes de tal maneira no filme, que poderíamos dizer que praticamente toda a narrativa se trata da imaginação e das especulações do médico legista. Pouco de fato acontece no filme, mas as histórias sugeridas são muitas. E esse trabalho imaginativo é o que enriquece o enredo: o que verdadeiramente acontece não é tão significativo quanto o exercício de pensar, de procurar, criando respostas e situações. O importante é que se olhe criticamente para cada corpo que chega à sua mesa.

O ponto central do enredo é uma grande quantidade de ossadas que chega ao IML: todos ossos sem identificação, possivelmente despachados em uma vala comum para que não fossem nunca achados nem identificados. O trabalho dos legistas será, dali para frente, tentar identificar esses ossos e responder pelos anseios dos parentes de desaparecidos políticos.

Esses ossos são de desaparecidos políticos torturados e mortos pela ditadura militar? Será possível identificar todas as ossadas? Junto com esse material, chega o corpo de uma mulher; o corpo que dará título ao filme e sobre o qual Artur irá ansiosamente se debruçar.

O mistério para o personagem de Leonardo Medeiros é se esse corpo é mais um dos possíveis torturados e assassinados na ditadura, que milagrosamente teria se conservado por décadas. O foco da imaginação de Artur e do filme está sobre isso e as possibilidades de como ela teria morrido.

“Eles já estão mortos e não podemos fazer nada por eles”, diz a legista-chefe Lara (Chris Couto). Reconstituir a vida daquele corpo é o que mais perturba o legista e não o fato dela estar morta. Para a história, interessa-nos justamente isso: o que fazer com nossos mortos? Esquecê-los e jogá-los na vala dos “não reclamados” ou narrar sua vida, o que se passou? Relembrá-los?

A história fala dos mortos e não para tentar revivê-los, mas para dar a eles um lugar entre os vivos. Estamos sempre lembrando do passado, dos mortos, portanto. E é a isso que devemos nos dedicar; nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin: “Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados.”

Neste sentido, o personagem de Leonardo Medeiros persegue a história daquele corpo, com a ânsia de um historiador que, perseguindo, narra e relembra o passado que não deve ser esquecido. Não podemos ensacar nosso passado em sacos sem nome e jogá-los na vala comum, dar memória àquele corpo não é um simples delírio; é uma “tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror. (...) as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que deve nos ajudar, a nós, os vivos, a lembrar dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro.[1]


[1] Trechos tirados do texto Verdade e Memória do Passado. Em: Lembrar, escrever, esquecer. SP: Ed. 34, 2006.

12 de mai. de 2008

"Fantástico" tem maior audiência do ano e pico de 43 pontos com mãe de Isabella


O varejo das almas


?quanto vale a vida?
?quanto vale a vida na última cena
quando todo mundo pode ser herói?


Engenheiros do Hawaii


O "Fantástico" teve sua maior audiência do ano neste domingo (11) com a exibição de entrevista de Ana Carolina Oliveira, mãe de Isabella Nardoni. O programa registrou 33 pontos de média no Ibope e 50% de participação. O pico foi de 43 pontos no horário da exibição da entrevista. O programa foi ao ar das 20h51 às 23h15. Cada ponto no Ibope representa cerca de 55,5 mil domicílios na região pesquisada (Grande São Paulo).

No Brasil, não há nada mais cinematográfico que a TV Globo. Cinematográfico no sentido de alcançar o objetivo primordial e mais elementar do cinema: fazer crer. Como um gigante desgovernado em meio a um país com uma pré-disposição histórica para o autoritarismo e as mais variadas formas de violência, essa emissora associou o "caso Isabella" e a crise do Fantástico.

A Isabella (esse nome ecoa pelos ouvidos e se propaga pelo ar em todo o Brasil) já está morta e o Fantástico está em coma, em vias de morrer, mas a TV Globo, para salvar o Fantástico, prossegue o martírio televisivo em torno desse crime, assassinando a Isabella diariamente há mais de um mês. É um fabuloso exercício da liberdade de imprensa em nome do ibope, das contas publicitárias. Frente a isso, quanto vale o luto, a dor, o sentimento dos mais próximos à vítima? A desfaçatez é tanta que o show já doou aos milhares uma intimidade tal com a vítima, capaz de dotá-los de uma intromissão afetiva no luto alheio. Há massas inteiras que amam uma Isabella que só conheceram morta. Isso, só um espetáculo cinematográfico dos mais refinados poderia produzir.

Nunca é dito que expor essa morte por mais de um mês é uma violência contra as pessoas envolvidas, pois é inevitável não aparecer no espetáculo global, que dorme em frente à casa das pessoas e carrega atrás de si uma multidão que, órfã da justiça e de deus, quer esfolar o primeiro que as câmeras apontarem. Nesse momento, as câmeras de TV, singelos instrumentos da liberdade de imprensa, se tornam armas de violência. Mas, de uma violência mais sutil e poderosa, disfarçada na curiosidade falsa dos que vendem as almas alheias para que as contas publicitárias dos sabonetes, dos carros e dos bancos tenham consumidores garantidos. No reino da liberdade absoluta da imprensa de violentar a todos, os cidadãos se tornaram consumidores, munidos do seu direito universal de consumir.

O nome "Isabella" não pára de ecoar nos ouvidos. A TV Globo e seus parceiros agradecem.


3 de mai. de 2008

Histórias e Memórias dos Aflitos


A Batalha dos Aflitos é um filme memorável, pois retira da banalidade, do continuum da história, um jogo de futebol. Conclama os espectadores ao refletir, à rememoração de um evento ímpar, que extrapola o campo temático do futebol para detonar todo um conjunto memóravel de sentimentos, de valores, de experiências que, ao se catalisarem no evento futebolístico, relembram o significado do esporte e do futebol como evento social e político, motor das relações humanas entre os homens, em confronto com o tempo.

Esse tempo, narrado por meio da trajetória de superação do time gremista, tem tudo a ver com a história. Com a história que não é um amontoado de fatos e jogos, como deixa transparecer a chata e conservadora cobertura da imprensa futebolística, em meio aos seus devaneios pseudo-técnicos. Esse filme é uma afronta ao futebol técnico, à discussão de especialistas, o que é, na verdade, o triunfo do vazio político dos dias atuais também sobre o futebol, um evento social que, por essas e outras, tem sido esvaziado de sentido, dia a dia, em nome do espetáculo da fama e dos astros particulares.

O triunfo gremista é a resistência futebolística da coletividade, do esforço que não advém da fama dos jogadores de botique, mas sim do abraço apertado em meio ao suor de um ano inteiro de sofrimento e agonia. Por isso um filme é necessário, não para mostrar as jogadas deste ou daquele jogador, mas para mostrar a camisa tricolor numa variedade de corpos, que só são êxitosos se vistos em conjunto, na sua obra construída ao passar dos dias, e não nos instantes de genialidade individual, tão efêmeros quanto à bestialidade dos astros, antes pobres, que adentram vorazes a sociedade de consumo aos olhos de um conjunto de fãs, ora invejosos, ora movidos por um culto doentio à fama.

O tempo do filme é o tempo do discurso, o tempo da narrativa. Um tempo que corre ao mostrar os jogos que levaram o Grêmio à segunda divisão e à fatídica partida contra o Naútico. Durante a Batalha dos Aflitos, o tempo se dilata e dá voz aos depoimentos de figuras como Jorge Furtado, Humberto Gessinger, Gerbase, ao jornalista "exílado" num pub europeu. Duas histórias contidas nos extras do DVD, estranhamente, ou infelizmente, não compuseram o corpo do filme, mas são da maior importância para dimensionar o filme como um documento da história futebolística do país. O médico que lê a batalha do Grêmio no prisma da dor familiar, numa ponte de rendenção da dor de não ter o irmão ao seu lado, pois falecera sem assistir àquele momento. O outro depoimento é o do torcedor que adiou a lua-de-mel para assistir ao jogo, depois da devida autorização da recém esposa, que já, tão logo, deveria se abrir às concessões de âmbito passional.

Essas histórias dão um calor ao episódio e são acaloradas por ele. Há uma via de mão dupla, de modo que a paixão pelo futebol jamais se faz de maneira incondicional. Ao contrário, ela é posta, ora a favor, como no caso do médico, ora contra, no caso da lua-de-mel. Muito ao sabor da crônica esportiva que já se faz escassa na atualidade, o futebol se presta como ponte social, ao estabelecer mediações com uma série de eventos trágicos ou cotidianos, que se relacionam com a sociabilidade esportiva. Sem esse diálogo, o esporte se torna um evento naufrágo em meios aos homens que jogam e assistem, alheio ao comércio e ao espetáculo desprovido de sangue e carne. E como bem mostra o filme, desprovido também de lágrimas.

Por tudo isso, a narrativa audiovisual criada não é um evento gremista, como o torcedor mais fanático poderia se deixar iludir. As imagens são metáforas que nós conclamam a olhar para a diversidade dos sujeitos que compõem a história, seja ela do Grêmio, de outro time ou de qualquer outra situação fora do futebol. Assim como o hino da torcida corintiana "Corinthians minha vida, Corinthians minha história", estamos sempre diante de significados que extrapolam o esporte e se inscrevem de diversas formas na vida social, política e econômica.

Por mais que a mídia televisiva, e até mesmo a escrita, contribua para deslocar o futebol da esfera cultural, social e política da sociedade, não se pode dizer que esta esfera não esteja aí disfarçada em meio da sisudez das tabelas, dos números e, até mesmo, nas falcatruas e robalheiras frequentes. Resta ao olhar astuto e socializante arrancar da frieza dos resultados o calor do fenômeno cultural.

Gremistas, não se enganem. As batalhas não são exclusividade dos que vão "aonde o Grêmio estiver". Elas estão aí, acontecendo a cada jogo, e contuarão acontecendo. Resta saber o que o olhar fará delas. Os cineastas de
A Batalha dos Aflitos fizeram dela um evento histórico. Há os que preferem fazer da cultura futebolística uma bolsa de valores. O jogo ainda não acabou, não podemos desistir agora. Ainda mais depois desse filme.
 
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