

Desde pequenos somos influenciados nos mais mínimos atos das nossas vidas. E na arte, como um dos mais excitantes atos humanos, não poderia ser diferente nos apogeus de sua originalidade. Apogeus esses que, não imunes ao festival da volubilidade humana, mais exercem do que sofrem influencia, tornando-se marcos, estabelecendo padrões a serem reproduzidos e, inclusive, sepultando tudo o que poderia chamar de suas bases.
A personagem da mãe, apesar de idosa, é dotada de força extrema. Suas debilidades físicas não lhe impedem de seguir sozinha para a casa dos filhos ou de interferir na vida da família. Os problemas começam justamente porque Dina não é uma velhinha como todas as velhinhas. Ela se impõe como personagem ativa da casa que ocupa, tanto é assim que o seu papel é desempenhado por um ator. Por essas e outras, o filme é um longo silêncio sobre o problema dos velhos em nosso país. A velhinha enfrenta as esposas dos filhos e os assaltantes. Seu grande problema não é precisar do abrigo dos filhos, é exercer poder na casa deles, onde eles se mostram pouco poderosos.
O drama é privado, doméstico. Os problemas sociais aparecem (tiroteio entre a polícia e traficantes, assaltos, corrupção), mas são tomados como dados condicionantes da vida privada. A família dos Rocha é claustrofóbica. Sua comunicação com o mundo que os circunda é ativa quando o privado é favorecido (corrupção) e míope quando o mundo os ataca - não interessa o tiroteio, interessa escapar dos tiros. O risível é essa economia das trapaças, dos favorecimentos e dos problemas íntimos (traições, influências), garantida pela imunidade que os personagens possuem frente aos conflitos sociais. Desde que eles não violentem (e é claro que em todos os filmes inquietos eles violentam), a comédia está garantida porque o drama é familiar, autoregulado, conhecido.
Este filme é um espelho de um lugar social brasileiro. Pretende trazer risos às agonias mais dramáticas da classe média e da classe alta, àqueles que podem pagar por um ingresso de cinema que custa 30 reais – o meu foi cortesia. Um filme para conversar sobre com o analista, pautando comportamentos e problemas da vida privada. Isso é entreter? Isso é falar privadamente, por meio da arte, a algumas classes sociais que pagam um ingresso caro para rir do que outrora lhes fez chorar. Há quem goste do esporte, e ele dá lucro. O estranho é que, como cinema, esse esporte não dá tão certo. Jorge Fernando não é um diretor de cinema de sucesso, embora obtenha sucesso na TV. Sinal de que o cinema não retira do sofá todos os membros dessas classes retratadas? Ou de que o cinema é um lugar que possui, ao menos no caso dos filmes brasileiros, uma vocação para a reflexão pública e social, posição que a literatura ocupava há algumas décadas atrás?
Esse algo que o permite galgar degraus é o seu talento culinário. Com ele, Nonato adquire prestígio na cadeia e reconhecimento no bar onde tinha aportado como semi-escravo. O não-ser Nonato começa a manipular o desejo dos outros. A fome serve no filme como alegoria do desejo de poder, da vontade de potência. Nonato é, nesse sentido, um operário do desejo. E, nessa condição, manipula os reais detentores de poder nas duas narrativas: na primeira, o dono do restaurante chique onde foi convidado a trabalhar; na segunda, o dono da “cela” que o utilizou como instrumento de saciedade, fazendo de Nonato seu cozinheiro titular.
Não se trata de louvar a reviravolta de um migrante nordestino que faz da sua individualidade o ingrediente único para resolver o problema social e histórico da desigualdade social no país. É nesse ponto que se localiza a genialidade do filme. Nonato não é, embora pareça ser, um self made man. Ele parece ser por possuir um talento nato, capaz de lhe permitir lutar e se confrontar com o poder estabelecido. Entretanto, não há ilusão: esse seu talento serve mais para mostrar a fragilidade dos que detêm o poder – o dono do restaurante e o chefe da cela que precisam dele – do que para emancipar Nonato.
A paixão de Nonato por uma prostituta (Íria) amplia os lugares de desejo propostos pelo filme. Só a ela o cozinheiro de talento expõe-se sem reservas e manifesta ali o seu desejo, a sua necessidade de tê-la. Fraquejado por ela, ele também entra para o hall dos fracos ou dos que precisam do outro, pois a grande idéia que perpassa o filme é a de que o desejo enfraquece, expõe à necessidade, à falta e deixa ao léu todos os viventes. E Íria, apesar de se envolver com Nonato, deseja a estabilidade material de Giovanni, o dono do restaurante. Com o noivado marcado com Íria, Nonato flagra-a em um jantar íntimo com Giovanni.
As duas narrativas encontram-se no momento da violência, quando o desejo dá lugar à morte. Nonato mata Giovanni (o dono do restaurante em que trabalha), Íria (a dona do seu sonho) e Bujiú (o dono da sua cela). O operário do desejo se rende à insuficiência do seu ofício. Instala-se um anticlímax que vai além do pessimismo glauberiano de Terra
A imaginação e a especulação estão presentes de tal maneira no filme, que poderíamos dizer que praticamente toda a narrativa se trata da imaginação e das especulações do médico legista. Pouco de fato acontece no filme, mas as histórias sugeridas são muitas. E esse trabalho imaginativo é o que enriquece o enredo: o que verdadeiramente acontece não é tão significativo quanto o exercício de pensar, de procurar, criando respostas e situações. O importante é que se olhe criticamente para cada corpo que chega à sua mesa.
O ponto central do enredo é uma grande quantidade de ossadas que chega ao IML: todos ossos sem identificação, possivelmente despachados em uma vala comum para que não fossem nunca achados nem identificados. O trabalho dos legistas será, dali para frente, tentar identificar esses ossos e responder pelos anseios dos parentes de desaparecidos políticos.
Esses ossos são de desaparecidos políticos torturados e mortos pela ditadura militar? Será possível identificar todas as ossadas? Junto com esse material, chega o corpo de uma mulher; o corpo que dará título ao filme e sobre o qual Artur irá ansiosamente se debruçar.
O mistério para o personagem de Leonardo Medeiros é se esse corpo é mais um dos possíveis torturados e assassinados na ditadura, que milagrosamente teria se conservado por décadas. O foco da imaginação de Artur e do filme está sobre isso e as possibilidades de como ela teria morrido.
“Eles já estão mortos e não podemos fazer nada por eles”, diz a legista-chefe Lara (Chris Couto). Reconstituir a vida daquele corpo é o que mais perturba o legista e não o fato dela estar morta. Para a história, interessa-nos justamente isso: o que fazer com nossos mortos? Esquecê-los e jogá-los na vala dos “não reclamados” ou narrar sua vida, o que se passou? Relembrá-los?
A história fala dos mortos e não para tentar revivê-los, mas para dar a eles um lugar entre os vivos. Estamos sempre lembrando do passado, dos mortos, portanto. E é a isso que devemos nos dedicar; nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin: “Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados.”
Neste sentido, o personagem de Leonardo Medeiros persegue a história daquele corpo, com a ânsia de um historiador que, perseguindo, narra e relembra o passado que não deve ser esquecido. Não podemos ensacar nosso passado em sacos sem nome e jogá-los na vala comum, dar memória àquele corpo não é um simples delírio; é uma “tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror. (...) as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que deve nos ajudar, a nós, os vivos, a lembrar dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro.[1]”
[1] Trechos tirados do texto Verdade e Memória do Passado. Em: Lembrar, escrever, esquecer. SP: Ed. 34, 2006.