19 de jul. de 2008

"A VIAGEM" de Fernando E. Solanas

Para quem conhecia o Fernando E. Solanas de Memórias do Saqueio, como eu, é uma grata surpresa assistir ao filme A Viagem, lançado em 1992, pouco depois do atentado político (pós-guerra fria) sofrido por Solanas. A sua crítica política se mantém, o seu olhar apurado para as contradições latino-americanas também, o que se transforma é a sua linguagem. Em A Viagem, Solanas se vale da ficção para compor uma ácida e bem humorada crítica ao saqueio neoliberal latinoamericano.

As políticas neoliberais foram – e ainda são – articuladas com uma poderosa ideologia do progresso. A modernização, na boca dos chefes de Estado e dos meios de comunicação de massa, parecia não ter um preço. Solanas procura mostrar o preço do progresso de maneira inusitada, transformando esse discurso pelo progresso e pela modernização em bravata. Não o faz, entretanto, valendo-se de mais discurso, mas apela para uma representação dessa bárbarie, escondida pela ideologia política neoliberal.

A bárbarie ganha imagens concretas, cujo absurdo fica à cargo das contradições das políticas neoliberais. Nessas imagens, a Argentina é um grande país alagado, após o dilúvio promovido pelo Dr. Sapo, responsável por afundar o país. As pessoas vivem, de fato, as dificuldades de estar em meio à água. A figura retórica, a imagem-crítica, permite sequências fantásticas que misturam humor e horror em medidas autenticamente latino-americanas. No Brasil, a imagem-crítica é a do ajuste, todos os cidadãos brasileiros também se acostumaram a viver com um cinto, uma espécie de camisa de força, que lhes prende e dificulta o movimento. A mídia os trata com a naturalidade devida, o ajuste é explorado pelo marketing nos vários modelos do tal cinto, para uma ou três pessoas, em vários modelos. Na América Central, existe a Organização dos Países de Joelhos e até o presidente dos EUA, quando vai visitá-los, se curva de joelhos para não deixar clara a assimetria entre os chefes de Estado.

Toda essa cadeia de imagens políticas é costurada pela história do personagem Martin Nunca. Jovem estudante de uma ilha no extremo sul da Argentina, ele decide partir em busca de seu pai, que estaria na cidade de Paraíso, no Amazonas. O pai, geólogo e quadrinista, legou ao jovem Nunca uma série de histórias em quadrinhos que narravam um pouco da America Latina que os discursos oficiais pretendiam esconder em baixo dos sujos tapetes do progresso. Sua epopéia é a busca da paternidade e o encontro com um mundo desconhecido. É crescente a resolução do drama privado pela via do encontro com os dilemas públicos desse continente de sina comum, o fado de ter conhecido a violência européia pelas línguas latinas. Posteriormente, o mesmo fado de se revirar sobre essa herança também em português e espanhol, as línguas do progresso marítimo e comercial.

As imagens de Solanas dão nova expressão a essa crítica da violência política nesses países, pois o absurdo expõe os detentores de poder ao rídiculo, mas também desafiam as pessoas a se perguntarem se é mesmo normal e natural viver sob o dilúvio neoliberal, sob o ajuste dos sintos ou viver de joelhos. Ao contrário da viagem latino-americana de Ernesto Guevara, rodeada nos cinemas de uma apoteose libertadora, a epopéia de Martin é a da surpresa, de um descortirnar das ideologias por meio da experiência de estranhamento da própria vida.

Seria a orfandade de Martin, a qual ele deseja reverter na sua viagem, a orfandade de projetos políticos que abateu a América Latina após as ditaduras civis-militares, após a Guerra Fria e, sobretudo, após as políticas neoliberais? Se sim, o drama de Martin é público e o filme ajuda, por meio de risos rosados, a nos questionarmos: - Devemos enxugar os sapatos, cortar os cintos do ajuste e esticar os joelhos? Mas, como fazer? O filme nos deixa a pergunta sem happy-end, nem Martin encontra seu pai, mas já sabe que valeu a pena procurá-lo.

2 comentários:

Alessandro de Paula disse...

E cá fico eu, curioso com essa terra de Nunca, essa viagem de Nunca por um continente que por vezes se faz tão indecifrável...

Anônimo disse...

Gosto do Fernando "Pino" Solanas. O Quixote do cinema latino-americano. Talvez o único vivo a trabalhar constantemente. Não só no cinema, como se arrisca na política. Na última eleição presidencial argentina, se candidatou.

No sítio oficial dele, tem uma imagem que sintetiza o que é "Pino" para o cinema. Segura uma câmera digital como se tivesse segurando uma arma. E realmente está. Sua arma, a câmera. E as balas são imagens a mostrar o tão falso é o discurso do progresso neoliberal.

Ainda não vi "A viagem". Gosto muito do Solanas das "tanguerías" - "Tangos - o exílio de Gardel" e "Sur".

E mesmo que eu não gostasse dos filmes, não me esqueceria deles, pois as trilhas sonoras que Astor Piazzolla fez para os dois são inesquecíveis.

 
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