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29 de dez. de 2008

"2 FILHOS DE FRANCISCO" de Breno Silveira

O filme 2 filhos de Francisco (2005, Breno Silveira) merece ser visto sem preconceitos. Acho que esse filme é um pouco como a fala do presidente Lula, em um comício anos atrás na cidade de Sorocaba. Após o Suplicy contar a história de seu nome e sua família, Lula diz: “Meu sobrenome é Silva. Quantos 'Silva' existem aqui hoje? Eu não preciso contar a história da minha família.”

A história da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano é narrada nesse filme, que narra a história de muitos brasileiros. Não a história completa, mas partes significativas. Apesar do aparente clichê – sofrimento, amor, sucesso – a riqueza do filme não está na particularidade da dupla: o sucesso, mas no que sua história tem de universal, de brasileiro. E é justamente essa parte – muito mais interessante, aliás – que ganha relevância no enredo.

A família protagonista aparece na maior parte do filme vivendo em condições bastante precárias. É a típica família brasileira que costumeiramente é esquecida; que vive em casas onde chove e o chão é de terra; seus membros são engraxates na rua e cada um têm que lutar para não ser mais um faxineiro, mais um "pião" de obra semi-analfabeto.

Sobre a obstinação que Francisco tem em transformar seus filhos em cantores, ela é um exemplo para os sonhos de sucesso contemporâneos. Sua luta é para que eles não sejam mais uns faxineiros ou tenham qualquer outro emprego precário e mal remunerado, e essa luta não se faz de uma hora para outra, mas sim com trabalho e sacrifício de toda a família. Não é o enriquecimento fácil da loteria ou o sucesso instantâneo do Big Brother. É uma vida de dedicação permanente; acordar cedo, ensaiar, ir para a estrada, ficar longe da família, flertar com a miséria e a fome. Essa é também a diferença entre trabalho e esmola, que a fala da criança engraxate carrega.

O filme, apesar de travestido de um romantismo piegas, não é só um final feliz. Essa dupla sertaneja não é a única: não era antes do sucesso, quando dividia as rodoviárias, as filas da rádio, as gravadoras e não é a única agora. No mundo de hoje, qual é o lugar dessa música, o sentido dessas letras? O Credicard Hall cheio, no fim do filme, aponta que sim, ainda há muito espaço para eles, mas a competição e a disputa por reconhecimento é um trabalho permanente desses cantores; vide a carreira de altos e baixos da filha de um deles: Wanessa Camargo, ou da extinta dupla Sandy e Junior, ou dos muitos outros goianos.

Nesse enredo, o critério de avaliação da música não é se ela é boa ou ruim, mas sim sua valorização pela história que carrega. A música “É o Amor”, agora, tem uma história, e isso a retira da banalidade. Da banalidade da própria letra. Da banalidade de ser mais uma música de mais uma dupla sertaneja.

O melhor do filme realmente não é o que seu enredo tem de particular: o êxito de Zezé di Camargo e Luciano, mas o que ele destaca de universal: as tragédias, a luta. É por essa parte que a família de Francisco merece respeito. Ela e a de todos os Franciscos que existem. Os "piões" de obra pais de faxineiros e engraxates.

23 de out. de 2008

A História Oficial, de Luis Puenzo

O filme A História Oficial (Luis Puenzo, 1985) é surpreendente. A surpresa, aliás, é o leitmotiv desse filme. Pode uma professora de história não saber nada do que se passa em seu país?

O filme trata da descoberta dessa mulher (Alicia) – que é um emblema das mulheres e seus sofrimentos; como a maternidade ou sua impossibilidade, da vulnerabilidade ante a violência de um homem, e é emblema também dessa classe média que não gosta de mudanças que, como a personagem mesma diz, “faria qualquer coisa para não perder suas conquistas, para que tudo ficasse como está.”

Em um ponto de sua vida, perto do aniversário de cinco anos de sua filha adotiva (Gaby), alunos começam a lhe perturbar: “a história é escrita por assassinos”, diz um estudante exaltado.

Nesse mesmo momento de sua vida, aparece um professor de literatura, com pequenas sutilezas, que a considera do lado do “vocês”; de repente a personagem percebe que ocupa um lugar, que está em um lado da história. Esse professor foi sutilmente demitido da faculdade onde lecionava, depois que seu apartamento foi invadido e nada sutilmente destruído.

Em um reencontro anual com as colegas de faculdade, aparece uma amiga depois de muitos anos, afastada da Argentina e, pela primeira vez, conta as circunstâncias que lhe fizeram fugir: fora presa e torturada por 36 dias, em um lugar cheio de pessoas nas mesmas condições que a sua, vendo, ainda, os filhos dos presos serem levados embora.

Diante de tantos relampejos, Alícia percebe suas verdades ruírem, começa a conhecer uma outra história que não a que estava acostumada a ensinar; começa a “apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.

Alícia inicia um caminho sem volta, porque não é tarefa simples fingir não ver o que realmente vimos ou não saber o que descobrimos.

Sua transformação, sutil, vai aparecendo no novo penteado, na desconfiança em relação ao marido, na aproximação com o cunhado, que é o oposto do irmão. As brigas entre seu marido e o sogro se enchem de sentido. O pai diz ao filho: “Pelo menos, eu tenho a consciência limpa” - será que o desgosto de ter um filho colaborador da ditadura argentina pode se equipar ao sofrimento do filho torturado em seus porões?

Como a história, o enredo do filme se repete. Se, quando menina, Alícia esperava pelos pais que nunca voltariam porque estavam mortos, Gaby espera e balança na mesma cadeira por uma verdade que talvez não virá.

No relacionamento do professor de literatura com essa professora de história, dela com seu marido, com a filha, com o mundo ao seu redor, além de surpresa há muita esperança. A História Oficial é um filme que tem um discurso positivo no sentido de narrar uma história em que é possível mudarmos de lado, quando percebemos que o lado em que estamos pode ser o errado. Além de um certo otimismo, há um apelo para que se perca qualquer inocência; e para pensarmos que talvez as coisas pelas quais estamos dispostos a nos sacrificar para que continuem assim, deveriam, na verdade, ser radicalmente transformadas.

1 de ago. de 2008

Em Cartaz: "UMA GAROTA DIVIDIDA EM DOIS"

O filme Uma garota dividida em dois (La Fille coupée en deux) é sobre um evento que aconteceu em 1906. A história – tanto real, quanto o roteiro do filme – não é exatamente original: um jovem rico que gosta de uma jovem bela que gosta de um velho escritor, que não gosta de ninguém. Ainda que essa narrativa não ofereça, inicialmente, nada de atraente, o diretor Claude Chabrol conseguiu criar um filme interessante.

A construção da personagem de Gabrielle é de uma mulher surpreendentemente livre. É com liberdade que ela se entrega ao escritor Charles Saint-Denis e com igual despreendimento se casa com o rico Paul Gaudens.

É por não dever nada à mãe, não se preocupar com o diretor da emissora em que trabalha, por não se importar com que os outros vão dizer que Gabrielle se envolve intensamente com Charles. E talvez por tamanha liberdade e despreendimento que essa relação seja tão intensa e, para Gabrielle, tão real.

Mas, apesar dessa bonita versão que a personagem constrói para si no filme, a figura do escritor é bastante comum – e presa às suas atribuições como bem-sucedido escritor sedutor. Quando Saint-Denis acredita ser suficiente, ele termina, sem surpresa alguma para o espectador, seu relacionamento com a jovem. Nessa mesma atitude de desprendimento, Gabrielle se deixa levar por Paul. Ao espectador, parece evidente que esse caminho levará a um abismo, mas no filme, a impressão que se cria é que ela é levada; sem objetivos, sem comprometimento, sem crença. Simplesmente caminhando.

Apesar dos clichês que esse triângulo amoroso remete, o filme de Claude Chabrol dá a essa narrativa um olhar peculiar, de uma jovem não ingênua ou burra, mas livre: para amar, para errar, para ser levada.

Talvez a última cena seja um tanto surreliasta (para usar as palavras de uma amiga que estava na sessão): não era exatamente necessário serrar – literalmente – Gabrielle em duas. Mas entre uma história com altos e baixos tão intensos, cabe um desconto.

O título sugere que haverá uma escolha, mas é exatamente o que não acontece nesse enredo. A protagonista não é capaz de escolher nada, ela vai para um lado ou outro, sempre levada pelos homens que a cercam e sempre livre em relação à qualquer outro compromisso.


Talvez a personagem não termine a história exatamente livre, no sentido de que Gabrielle não se liberta completamente do amor que sente por Charles; ainda assim, é com muito desprendimento que se casa, que depõe a favor do marido, que se torna assistente de mágico. Claude Chabrol constrói com cuidado e êxito todos os personagens desse mundo caricato.

Gostaria de finalizar comentando a personagem da mulher do escritor; que me pareceu autenticamente doentia: ela administra a casa, a vida sexual do marido e a paz que ele precisa para ser um escritor de sucesso. Sua figura me parece ser a mais doentia no sentido de anulação, devoção, não existência. Entre as opções apresentadas, ainda me parece mais atrante a liberdade suicida de Gabrielle.

28 de jul. de 2008

Em Cartaz: "A VIDA DOS OUTROS"


O filme A vida dos outros (Das Leben der anderen, Florian Henckel von Donnersmarck) pode ser compreendido em paralelo ao Do outro lado ( Auf der anderen Seite, Fatih Akin).

No enredo de Florian Henckel, preconceitos são minuciosamente desfeitos e os personagens são jogados de um lado a outro. Esses dois filmes abordam as contradições da vida, contradições no sentido hegeliano, em que o que é; não é e o que não é; é – no clássico exemplo do senhor/escravo: o senhor não é escravo, mas também é (porque do escravo depende) e o escravo não é senhor, mas também é.

“É possível que um homem que realmente ouça essa música, possa ser uma pessoa ruim?” Essa pergunta é feita ao som de Beethoven e a cena seguinte é o oficial “HGW” (interpretado por Ulrich Mühe) da Stasi (abreviação de Staatssicherheit, “Ministério de Segurança”) com uma lágrima discreta no rosto. A discussão que o diretor propõe não é humanizar os clássicos soldados carrascos e desalmados da Alemanha Oriental, mas sim propor que o que está aparentemente de um lado, pode, na verdade, estar de outro.

Se não é possível que um homem que verdadeiramente ouça Beethoven seja uma má pessoa, é possível que um oficial da Stasi, ao espionar um artista com o intuito de desmoralizá-lo, acabe por protegê-lo?

É na vida desse outro, do escritor, que HGW encontra o sentido para a sua. Nesse outro, nesse outro lado, HGW preenche e dá sentido a sua existência – tão diferente e aparentemente oposta àquela.

Ao personagem do escritor Georg Dreyman (interpretado por Sebastian Koch) há uma trajetória semelhante. Ele é condenado por seus pares por continuar escrevendo durante o regime comunista; o que, naquele momento, significava ser aceito pela censura, ser bem visto pela burocracia e não representar uma ameaça à ordem vigente. Mas se olharmos com atenção essa situação, poderíamos nos lembrar dos atores e escritores envolvidos com o CPC da UNE na década de 1960. Muitos deles, como o Ferreira Gullar e Oduvaldo Viana Filho, foram trabalhar na Rede Globo, sofrendo (alguns até hoje) forte recriminação. Mas estar na Globo, naquele momento, era uma maneira de encontrar uma brecha para fazer política e mesmo resistência. Para além da obviedade de que pessoas no século XX precisam de trabalho-dinheiro-comer-pagar-aluguel, estar na Globo – ou publicar sob a DDR – era uma forma de ser visto, ouvido e falar.

O escritor pôde perceber seu espaço, o oficial perceber seu poder e dessa maneira mostrarem de que lado efetivamente estão, apesar das aparências.

Retomando a definição da contradição hegeliana, o oficial da Stasi é e não é um oficial; porque não age completamente como tal e o artista autorizado pela censura é e não é um mero pau-mandado dos políticos. Simples mesmo, só a vida da novela das 20hs de hoje.
 
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