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4 de fev. de 2009

O Olhar Estrangeiro: "A ALEMANHA DESCOBRE A ÁFRICA"

As férias acabaram, inclusive aqui. Claro, durante esses períodos muitos de nós viajam. Pois o ano reinicia, agora, com o mote viagem. O Olhar Estrangeiro é a série de posts para fevereiro e trata justamente de obras de diretores que tiveram um olhar diferenciado para determinadas partes do globo. Como Werner Herzog, que já filmou em quase todo canto do planeta. Inclusive, no Brasil, filmou partes de Cobra Verde, filme a ser "dissecado" aqui futuramente.

Se a primeira metade de Cobra Verde se passa no Brasil, a segunda se passa na África, para onde o bandido Cobra Verde é enviado como punição por ter engravidado as filhas do patrão. Lá ele encontra disputas tribais e se vê em luta contra a natureza e os instintos mais primitivos do ser humano. Mas falar de natureza e da ação do homem sobre ela não é novidade na filmografia de Herzog. Em 1969, ele esteve na África do Norte para filmar um dos seus primeiros grandes "delírios", Fata Morgana. Narração em off da origem do mundo, imagens do deserto em que o homem só vai aparecer depois de mais de 20 minutos de filme. Cadáveres de animais que tiraram seu sustento do planeta, para depois tudo devolverem. Restos de aviões, velhos veículos. A criação, o paraíso, a era de ouro. Obsessão por lagartos, futilidades sobre tartarugas. Um duo (horrível) de piano e bateria num salão de festas vazio. Leonard Cohen e tudo isso pra mostrar o fracasso dos deuses. Não se encontram concessões nos filmes de Herzog. E provavelmente não havia mesmo melhor lugar para retratar a miragem (exatamente o significado de Fata Morgana) do ser humano que o deserto norte-africano.

Mais recentes e menos contundentes são duas produçoes alemãs das quais falarei agora. A primeira delas é Lugar Nenhum na África, de Caroline Link. O filme foi o ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2003. Um prêmio estrangeiro sobre um olhar estrangeiro. Seria mais um típico filme de perseguição nazista a judeus, se a família que forma o núcleo do filme não tivesse se instalado no coração da África, mais precisamente, no interior do Quênia. Eis o mote: o desafio da adaptação a uma outra realidade. O pai, antes da chegada de esposa e filha, sofre com a malária e é salvo por um funcionário da fazenda onde vai trabalhar. Este, chamado Owuor, é a figura do africano humilde, servil e amigo. Tanto que "adota" a pequena Regina, filha do casal Redlich. Ela lhe tem tanto apreço que a adaptação torna-se fácil. Na medida em que cresce, é ela quem se torna a ligação dos pais, sobretudo da reticente mãe, com a cultura local, chegando a levar a mãe a uma cerimônia dos nativos.

Linha semelhante segue o filme de Hermine Huntgeburth, A Massai Branca. Neste, a turista suíça Carole, no penúltimo dia de férias no Quênia junto a seu namorado Stefan, conhece Lemalian, guerreiro da tribo Samburu, e se encanta por ele. O encantamento é recíproco e, numa atitude inverossímil (embora o filme seja baseado em fatos reais), ela abandona tudo pra viver com Lemalian. Se nos braços do guerreiro Carole vive grande paixão, a realidade é falsa adaptação. Nascida em berço capitalista, nunca vai se adequar aos costumes do lugar. Todo o tempo ela está tentando remoldar a própria vida e as dos que estão ao seu redor. Ela também pega malária (ah, os clichês...). Há o choque de ver uma mutilação feminina. Há o comércio que ela abre e o hábito local de dar crédito aos amigos. Mas... todos são amigos ali na aldeia. Há o ciúme. Mas não há possibilidade de conciliação.

Pode-se dizer que os filmes de Herzog trazem consigo um olhar fatalista e, no que diz respeito a Fata Morgana, contemplativo e fatalista. Nos filmes de Link e Huntgeburth, o que mais pesa é, além do formato convencional, ora a fascinação pelo diferente ora o conflito. Independente do rótulo que se possa dar a estes filmes, creio que representam bem estes olhares germânicos para a África.

Que venha a próxima viagem!

31 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel Oliveira: "O PRINCÍPIO DA INCERTEZA"

"Tudo o que é interessante é fingimento." É o que afirma Vanessa (Leonor Silveira) durante uma conversa com José Luciano/Touro Azul (Ricardo Trepa), na piscina da casa de Antonio Clara/Cravo Roxo (Ivo Canelas) e Camila (Leonor Baldaque).

Vanessa é a cortesã, a mulher que subiu na vida às custas de atividades duvidosas e mantém um night club onde as roletas e a oferta de sexo dão o tom. Ela é amante de Antonio, amigo de infância de José Luciano. Mas o centro em torno de quem todos esses personagens giram é Camila, vinda de família arruinada do Porto, por conta das dívidas de jogo do pai. Camila é quieta, calada, uma típica "boazinha" e, por isso, para a criada Celsa (Isabel Ruth), que criou os dois rapazes juntos, ela é a garota perfeita para se casar com Antonio. Celsa quer livrá-lo da amante através desse casamento que é arranjado sem quase nenhuma interferência. Camila também esteve com Antonio e José Luciano na infância. O segundo nutre uma paixão secreta por ela. Paixão que só é revelada assim que ele sabe do arranjo casamenteiro, mas ela o responde dizendo que, apesar de ter esperado por essa confissão desde muito tempo, o coração dela não será de José Luciano nem de Antonio. Enfim... um casamento de conveniência. A confissão de Touro Azul é a pequena interferência que não será suficiente para que o sacramento deixe de acontecer.

O casamento não é feliz. Sabemos disso desde o primeiro momento, porque a impassibilidade de Camila incomoda. Num jantar oferecido para amigos mais próximos, Vanessa a compara a uma mutante, justamente por tal qualidade da jovem. Noutro momento, Camila conta a Daniel Roper (Luís Miguel Cintra), amigo e admirador, um homem mais velho que, junto ao irmão Torcato (José Manuel Mendes), intermediara o acerto matrimonial, um episódio violento entre ela e o marido, durante férias na Itália, onde Vanessa também estava presente. "As habilidades que as mulheres fazem para saltar por cima do sofrimento são extraordinárias", ela diz. Mais à frente, no mesmo diálogo, Daniel dá mostras de sua perturbação: "Por que é tão invulnerável? Tão nova e tão invulnerável..."

Ainda que tenha a força de um cinema-teatro e a obra se realize como cinema, há uma marca literária importante. Os diálogos são primorosos. Aqui é preciso lembrar que Manoel de Oliveira contou com a presença de Agustina Bessa-Luís, colaboradora fiel, além de autora do livro que deu origem ao filme, Joia de Família, o primeiro da trilogia O Princípio da Incerteza, que dá nome ao filme.

Mas os diálogos são mesmo marcantes quando as duas mulheres, Camila e Vanessa, duelam. Isto se dá na primeira vez em que Camila encontra Vanessa e Antonio sozinhos na casa. E se repete num momento de desespero, próximo à resolução final do filme, quando a cortesã busca a jovem senhora pra pedir-lhe determinada quantia. Voltaremos a este ponto.

A contida e "boazinha" Camila se revela aos poucos. Num diálogo com a criada dos Roper, fala da dualidade de Joana d'Arc, de quem é devota. Sua bondade é inteligência, frialdade perante aqueles que mantêm um certo poder sobre ela. Isto fica mais evidente quando ela narra uma história de família, em que o pai a leva ao cinema pra que ela sofra abuso de um credor de jogo. Então fica claro que a doce e fria Camila é, na verdade, a "deusa da vingança".

Vingança que ela exerce contra Vanessa, quando nega a ajuda financeira e gargalha. Contra Antonio, indiretamente, porque quando os credores da cortesã aparecem no night club para "cobrar sua dívida", é ele quem sofre a pior das consequências. Quando a jovem parece estar livre de todos que a mantiveram sob certo jugo, ainda há tempo de uma revelação aterradora sobre a única mulher nesta história que parecia inocente. Ainda assim, Camila mantém-se invulnerável e colhe para si os louros da vitória. Figura perturbadora essa moça, porque se de Vanessa pode-se esperar tudo, Camila é dissimulada ao extremo. Mas capaz de causar ferimentos mais mortíferos.

Impressionante o domínio de Oliveira sobre os atores. Não há um que não pareça estar à vontade durante a atuação, desde a então estreante Leonor Baldaque - por sinal, neta de Augustina Bessa-Luís; passando pela "atriz-fetiche", Leonor Silveira (atuação e beleza explêndidas) e mesmo pelos discretos (e era necessário que fosse assim - é uma história de mulheres) Ivo Canela e Ricardo Trepa - opa, outro vínculo familiar: Trepa é neto de Oliveira. O Princípio da Incerteza (2002, França/Portugal) é um belíssimo filme em que a complexidade nebulosa dessa figura feminina de Camila é o grande mote, assim como em outros filmes do diretor.

Acreditamos que O Princípio da Incerteza foi uma escolha feliz pra encerrar a homenagem aos 100 anos de Manoel de Oliveira e o ano deste blog. Esperamos que estejam conosco no próximo ano e nos seguintes também, que esta relação entre blog e leitores tenha a longevidade de um Oliveira e o brilho de seu cinema. Entrem com o pé direito em 2009. Sucesso!

A equipe

26 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel Oliveira: "PORTO DA MINHA INFÂNCIA"

A memória. Mais uma vez a memória é a matéria-prima de um filme de Manoel de Oliveira: Porto da Minha Infância, de 2001, que foi encomendado pela organização da iniciativa Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, nos traz as reminiscências de Manoel de Oliveira a respeito da cidade onde nasceu.

O filme principia com um maestro que rege uma orquestra invisível - referência a uma cidade que não mais existe? Assim, como narrador em off, Manoel fala de uma Cidade do Porto de outros tempos, mas que o viu nascer. Lá estão as ruínas da casa onde nasceu e cresceu, além de ali ter surgido sua paixão pelo cinema. Sua narração é entrecortada, em vários momentos do filme, por uma canção na voz de sua esposa, Maria Isabel. Canção cuja letra é a poesia de Guerra Junqueiro, Retorno ao Lar.

Passeamos com o diretor pelos cafés, pelos lugares de operetas (ele próprio, junto com Maria de Medeiros, aparece como ator de uma opereta, sendo observado por sua "versão jovem" da plateia), pelas ruas, os marcos que já não existem... num dado momento, quando ele fala de sua confeitaria preferida durante a infância, ouvimos dele: "Foi-se embora a confeitaria e, com ela, os pastéis." Atualmente, no lugar do luxuoso comércio, há uma decadente loja de roupas.

No Palácio de Cristal havia inúmeras exposições, sobretudo de carros e flores. Numa dessas exposições, encontramos duas figuras - serão eles os poetas Fernando Pessoa e José Régio? Fica a suspeita. Depois, Manoel recorda a família e sua paixão de infância, a prima Guilhermina.

Noutro momento, há a participação da escritora Agustina Bessa-Luis lendo trecho de um texto de própria autoria. Também temos Manoel a divagar sobre seus antigos amigos, com quem costumava dar asas à imaginação pelas ruas do Porto. Entre eles está o poeta Adolfo Casais Monteiro, que foi perseguido e preso pelo regime ditatorial português e que veio a morrer no Brasil.

Conhecemos também a primeira sala de cinema do Porto, a High Life, que mais tarde se tornaria o Cinema Batalha.

Mais uma divagação e estamos com Manoel frente à Camisaria Confiança e à Rua Santa Catarina, santa que era a padroeira das costureiras que participaram involuntariamente do primeiro filme realizado em Portugal, por Aurélio Paz dos Reis. Em seguida, uma reprodução do pioneiro do cinema português filmando a movimentação dos operários da Porto 2001. Manoel diz, antes de calar: "A cidade está a ser renovada. Mas por muito que lhe façam, é sempre o meu porto de infância, com um fio d'ouro a correr a seus pés."

Emociona a sequência em que Porto nos é mostrada mais uma vez e que termina em cena que não só remete, porque é igual, com exceção das luzes, à cena de abertura de seu primeiro filme, Douro, Faina Fluvial, de 1931.

O filme é curto, não alcança 60 minutos. Mas é o suficiente para mais uma vez viajarmos pela memória junto ao longevo diretor.

Encerro este texto com trecho da poesia Europa, de Adolfo Casais Monteiro, cuja leitura durante o filme é um dos momentos marcantes:

I

Europa, sonho futuro!
Europa, manhã por vir,
fronteiras sem cães de guarda,
nações com seu riso franco
abertas de par em par!

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,
virás um dia? virá o dia
em que renasças purificada?
Serás um dia o lar comum dos que nasceram
no teu solo devastado?
Saberás renascer, Fénix, das cinzas
em que arda enfim, falsa grandeza,
a glória que teus povos se sonharam
— cada um para si te querendo toda?

Europa, sonho futuro,
se algum dia há-se-ser!
Europa que não soubeste
ouvir do fundo dos tempos
a voz na treva clamando
que tua grandeza não era
só do espírito seres pródiga
se do pão eras avara!

Tua grandeza a fizeram
os que nunca perguntaram
a raça por quem serviam.
Tua glória a ganharam
mãos que livres modelaram
teu corpo livre de algemas
num sonho sempre a alcançar!

Europa, ó mundo a criar!

Europa, ó sonho por vir
enquanto à terra não desçam
as vozes que já moldaram
tua figura ideal,
Europa, sonho incriado,
até ao dia em que desça
teu espírito sobre as águas!

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,
virás um dia? virá o dia
em que renasças purificada?
Serás um dia o lar comum dos que nasceram
no teu solo devastado?
Saberás renascer, Fénix, das cinzas
do teu corpo dividido?

Europa, tu virás só quando entre as nações
o ódio não tiver a última palavra,
ao ódio não guiar a mão avara,
à mão não der alento o cavo som de enterro
— e do rebanho morto, enfim, à luz do dia,
o homem que sonhaste, Europa, seja vida!

II

Ó morta civilização!
Teu sangre podre, nunca mais!
Cadáver hirto, ressequido,
á cova, à cova!

Teu canto novo, esse sim!
Purificado,
teu nome, Europa,
o mal que foste, redimido,
o bem que deste,
repartido!

Aí vai o cadáver enfeitado de discursos,
florindo em chaga, em pus, em nojo..
Cadáver enfeitado de guerras de fronteiras,
ficções para servir o sonho de violência,
máscara de ideal cobrindo velhas raivas...
Vai, cadáver de crimes enfeitado,
que os coveiros, sem descanso,
acham pouca toda a terra,
nenhum sangue já lhes chega!

Sobre o cadáver dançam
teus coveiros sua dança.
Corvos de negro augúrio
chupam teu sangue de desgraça.
Haja mais sangue, mais dançam!
E tu levada, tu dançando,
os passos do teu bailado
funerário!

Mas do sangue nascerás,
ou nunca mais, Europa do porvir!

E a mão que te detenha
à beira do abismo?
Do sangue nascerá!

E braços que defendam
teu dia de amanhã?
Do sangue nascerão!

O sangue ensinará
— ou nova escravidão
maior há-de enlutar
teus campos semeados
de forcas e tiranos.

De sangue banharás
teu corpo atormentado
e, Fénix, viverás!

17 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel de Oliveira: "VALE ABRAÃO"

No início da década de 1990 Manoel de Oliveira começou a trabalhar junto com Augustina Bessa-Luís para contar novamente a estória de Emma Bovary, imortalizada no romance Madame Bovary, de Flaubert. Todavia a idéia de Oliveira era menos adaptar o romance do que re-escrever a fábula com nova forma. Por isso pediu a ajuda de sua querida amiga, a romancista Bessa-Luís. Escreveram a quatro mãos o roteiro, do qual surgiria não só um novo filme do cineasta, mas também um romance homônimo de Augustina. O filme era Vale Abraão, lançado em 1993.

Vale Abraão poderia ser chamado de um filme pós-moderno (a acusação poderia ser feita ao romance também) por realizar jogadas metalingüísticas, afinal trata-se da estória de uma nova Ema, que possui uma trajetória semelhante a personagem do romance do século XIX, sendo leitora do próprio Madame Bovary. Todavia, acusar a película de pós-modernismo é não perceber como Oliveira se afasta da maior parte da produção do cinema que lhe era contemporâneo e do próprio romance oitocentista.

Primeiro porque a Ema do português é mais sólida, densa e inteligente. Na interpretação de Leonor Oliveira, uma das atrizes favoritas de Manoel, Ema adquire uma densidade assustadora, como fazem questão de perceber a maioria dos outros personagens do filme. Ema é mostrada como uma criatura sedutora e poderosa, cuja condição de manca acentua a ambigüidade como mulher que deseja uma vida intensa e não somente ser a rica esposa refinada e desocupada de seu marido médico. Por se casar com Carlo Paiva (o estupendo Luís Miguel Cintra), médico bem sucedido, o qual não ama, investe na procura de amantes menos para preencher um vazio existencial do que por uma necessidade de viver suas próprias contradições. Desde criança, a personagem é vista por tias, pretendentes, amigos e amantes como um perigo. Os homens a cobiçam pela sua ardência, as mulheres a criticam por sua beleza. No final, exceto por Paiva, que realmente a amava, fica evidente que todos desejam algo da nova bovarinha, mas só conseguem pedaços de tudo. Todos, no fundo, parecem temê-la um pouco.

Só que isso não significa que Ema saia vitoriosa. O filme acompanha sua infância e casamento, encontros com amigos da conservadora alta sociedade do norte de Portugal, sua maternidade, enfim, segue sempre auxiliado por um irônico, onisciente, mas nada cínico narrador em voz over. Por meio dele podemos saber de sua insatisfação, perceber seus deslizes e incoerências. As vezes, a fita desvia da protagonista para mostrar muitos personagens relacionados a trama principal. Assim Oliveira faz uma radiografia do conservadorismo português frisando menos a mente pequena daquela sociedade, mas deixando evidente a profundidade que existe, os sentidos da represália à Ema, aquilo que ela ameaça, o por quê disso e o que ela realmente representa.

Inesquecível neste sentido o encontro de Paiva com Maria do Loreto, participação curta, mas espetacular da atriz Glória de Matos. Paiva fora encontrar a velha senhora e escritora que a leva por sua bela propriedade até uma pequena casa que ela própria havia construído para que seu marido pudesse se encontrar com suas amantes. Lá Maria dá conselhos a Paiva sobre o que são homens e mulheres, tendo como objetivo falar de Ema, e acaba colocando sua concepção da condição feminina: “Que quer dizer saída da costela de Adão? Que ela é algo de semi-real, que é nascida de um significado incompleto, como um costado a que falta uma costela. A sua diferenciação fica sempre imaginária como ‘coisas de mulher’, como um organismo que absorve o outro e o expulsa por ser estranho”. Aqui se reconhece a pena da grande romancista portuguesa, Augustina Bessa-Luís, que fez do romance algo tão lindo quanto o filme.

A fita poderia ser facilmente acusada de ser muito literária pela importância que o texto do narrador ou mesmo das personagens têm na trama. Todavia o aparente “descompasso” entre a câmera quase sempre estática da fita com o texto corrente, os enquadramentos que mostra quadros incompletos da ação na tela enquanto o narrador inunda o espectador de informações, fazem com que a construção narrativa de Vale Abraão acentue a construção imaginária de duas coisas importantes no cinema de Manoel de Oliveira: o tempo humano da trama e a investigação das personagens e de seus sentidos no mundo em que se encontram. Há um enigma a ser resolvido na película: qual o papel de Ema em Vale Abraão, como ela torce as pessoas e o mundo ao seu redor?

Neste sentido o filme vai construindo entre movimentos de câmera, situações e narrações as contradições de subversão de Ema no norte de Portugal. Todavia essa subversão jamais deve ser destruída, mas sim tolerada, pois fornece a uma sociedade culpabilizadora a oportunidade de responsabilizar alguém por ultrapassar os seus limites e se libertar de seus próprios pecados ao apontar a falha alheia. E apesar disso, o sentido daquele mundo humano nunca é completo, não há como chegar a conclusões definitivas sobre Ema ou Paiva ou Loreto ou quem quer que seja. Todos são personagens intrigantes e aprofundados, dos quais a fita mostra muitas coisas, mas jamais todas, sempre surpreendendo em algum momento, sempre introduzindo algum dado novo que nos faz refazer o mundo da trama.

Na saga de Ema nos espaços do vale do Douro em Portugal ninguém sai redimido e muito menos culpado, ao menos pela própria película. O olhar da fita é complacente em sua compreensão pelos personagens, interessado em mostrar-lhes enigmaticamente entre si mesmos e para os espectadores. E talvez o enigma seja a metáfora ideal pela qual Oliveira interroga o mundo com suas imagens. O grande enigma deste filme poderia ser, quem sabe, a mulher, vista pela lente de uma lente masculina (Manoel), mas com o auxílio de um olhar feminino (Augustina), ambos conservadores em muitos sentidos, mas nem por isso desatentos às contradições dos próprios conservadorismos.

Vale Abraão permanece uma das obras máximas de Manoel de Oliveira. Não carrega o lirismo de Viagem ao Princípio do Mundo (1996) ou a amorosidade magnífica de A Carta (1998). Aproxima-se talvez mais da noção de investigação que permeia Um Filme Falado (2004), só que sem a bela veia didática deste. Fica a impressão sempre de que a maturidade e a velhice de Oliveira (que já tinha 85 anos quando fez o filme) tornaram-se os melhores temperos pelos quais cada plano seu se torna uma tentativa de interrogar a vida. E como disse mestre Oliveira, que agora completa 100 anos, cada plano é um risco, como a própria vida.

12 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel de Oliveira: "CRISTÓVÃO COLOMBO - O ENIGMA"

Hoje, oficialmente, Manoel de Oliveira, completa 100 anos. Oficialmente porque ele nasceu em 11 de dezembro de 1908, mas foi registrado apenas no dia 12. O diretor mais velho em atividade construiu uma obra que não é velha. Atuante desde os anos 30 do século passado, viu e segue vendo o desenvolver de uma arte, boa parte de suas técnicas, os movimentos, os autores, atrizes e atores. Assim como ele, seu cinema permanece lúcido e capaz de atrair algum público, ainda que seleto, em diversas partes do mundo.

Enquanto eu, nesta semana, assistia a Cristóvão Colombo - O Enigma (França/Portugal, 2007), ele estava "em campo" pra filmar seu atual projeto, Singularidades de uma Rapariga Loira, baseado em conto de Eça de Queiroz. Mas voltemos à Cristóvão Colombo, o primeiro que o diretor realizou com tecnologia digital. Tal demonstração de interesse pelas novas tecnologias ajudam a provar sua vitalidade, assim como o fato do próprio diretor e sua esposa terem atuado no filme também o faz.

Cristóvão Colombo - O Enigma é baseado no livro de Manuel Luciano da Silva, Cristovão Colon Era Português. O autor do livro é o personagem principal e a experiência de assistir ao filme nos leva a observar duas trajetórias distintas: a da investigação sobre as navegações lusitanas pelo autor, além de sua própria trajetória de vida.

Assim como toda a carreira do diretor português, o filme atravessa os tempos. Começa na década de 1940, quando os jovens irmãos Manuel Luciano (Ricardo Trêpa) e Hermínio (Jorge Trêpa) embarcam pra Nova Iorque. Lá eles se instalam e Manuel Luciano se torna médico. Mais que isso, torna-se um investigador das navegações portuguesas no período em que a América foi "descoberta" e, sobretudo, de questões que concernem à nacionalidade de Cristóvão Colombo. Defende e investiga a teoria de que Colombo não era genovês e, sim, português e natural de Cuba, cidade alentejana. Não à toa, uma das ilhas que Colombo "descobriu" quando chegou à América foi batizada com o nome da cidade portuguesa.

Já em 1960, Manuel Luciano desposa Silvia (Leonor Baldaque) e, com ela, vai à cidade de Cuba. As investigações são sua grande paixão e, mais tarde, em 2007, quando o casal passa a ser interpretado pelo próprio Manoel de Oliveira e sua esposa, Maria Isabel de Oliveira, Silvia irá conversar com Manuel Luciano sobre o fato de ter de competir com esta grande paixão. Juntos, visitam os monumentos que referenciam a presença de Colombo, tanto na América como em Portugal.

Manoel de Oliveira/Manuel Luciano lamenta a pouca importância que as instituições e o povo dão ao resgate da memória portuguesa das grandes navegações e compara o período das grandes aventuras lusitanas no além-mar com a corrida espacial levada a cabo por EUA e União Soviética durante a Guerra Fria. Num dado momento, o investigador, ainda jovem e recém-casado, pergunta a uma senhora a respeito da casa onde teria nascido Colombo. Como resposta, obtem: "Cristóvão Colombo? Nunca ouvi falar e olha que já moro aqui há muito tempo".

Em toda sua trajetória, o investigador é também acompanhado por uma figura, um signo em forma de mulher jovem e em traje vermelho e verde - a personificação do orgulho lusitano (Lourença Baldaque). Poesias de Fernando Pessoa e de Camões, além de um belíssimo fado, temperam o prato que é a busca do casal Silva.


A busca pela real origem de Colombo torna-se, então, parte desse tema tão particular, a identidade portuguesa. Manoel de Oliveira, desse modo, presenteia-nos com um filme rico, simpático, tão capaz de inspirar uma certa nostalgia, ainda que não sejamos portugueses, mas apenas "filhos" de Portugal. Tudo isso sem deixar de ter um toque de contemporaneidade.

Torna-se vital, a partir disso, que façamos uma busca pela obra do centenário diretor.

Repercussão da pré-estreia de Cristóvão Colombo - O Enigma em Cuba do Alentejo

28 de nov. de 2008

Herzog & Kinski: Fitzcarraldo

Não era para ser o quarto filme da parceria entre Werner Herzog e Klaus Kinski. Mas os deuses confabularam. Reconheceram o homem branco a coordenar o trabalho no meio da floresta. E sentiram falta daquele outro com dificuldades de acatar as ordens do diretor. Assim como o primeiro filme da dupla, o quarto também tinha como cenário a Floresta Amazônica. Pior para Jason Robards. Rodou algumas cenas, adoeceu, foi se tratar e os médicos o proibiram de voltar. O alemão desobediente resolveu escalar Jack Nicholson. Assim ficou fácil para os deuses, bastaram incutir a dúvida da dificuldade de se realizar festas no meio do nada. Herzog não teve outra saída, chamou seu melhor inimigo. Para nossa sorte, tanto para o resultado de Fitzcarraldo, de 1982, quanto para o alimento da nossa imaginação, e a realização do desejo dos deuses.

A diferença de idade entre os dois era considerável, Herzog nasceu em 5 de abril de 1942 e Kinski em 18 de outubro de 1926. Na II Guerra Mundial, enquanto o segundo desertava e rendia-se às tropas britânicas, o primeiro brincaria com as armas abandonadas em seu pequeno vilarejo. Ambos tiveram infância pobre.

Somente aos 11 anos Herzog teve contato com o cinema. Assistiu a dois documentários na escola, um sobre esquimós construindo iglus e outro sobre pigmeus levantando uma ponte de liana. Eles acabaram por orientá-lo em seu olhar antropológico e sua necessidade de compreender o desejo do homem de transformar o meio e fracassar quando objetiva realizações que vão além da suas possibilidades. Começou a escrever roteiros aos 15 anos. Estudou Literatura e História em Munique. Após receber o diploma, ganhou uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, mas abandonou a faculdade para viajar o mundo. Em 1967, rodou Sinais da Vida, seu primeiro longa-metragem, influenciado pelo neo-realismo italiano, pela nouvelle vague francesa e pelo cinema novo brasileiro. Ao lado de Rainer Werner Fassbinder e Wim Wenders, formou o triunvirato do novo cinema alemão.
Robards, ao lado de Claudia Cardinale, adoeceu e não pôde ser Fitzcarraldo. Sobrou pra Kinski. Mick Jagger teria um pequeno papel no filme.
Kinski, por sua vez, teve uma ascensão lenta. Foi como prisioneiro de guerra que se descobriu ator. Somente no início dos anos 60 passou a ter maior destaque em filmes de western spaghetti e filmes B. Entretanto seu talento foi reconhecido após iniciar sua colaboração com Herzog em Aguirre, a Cólera dos Deuses, de 1972. Mesmo assim, continuou a escolher papéis de fitas de qualidade duvidosa.

A parceria rendeu cinco grandes filmes, tanto é que existem poucas unanimidades em torno deles, a principal delas é que Cobra Verde seja o mais fraco. No mais, uns acreditam que a melhor atuação de Kinski ocorra em Woyzeck, de 1979; outros que o melhor filme seja Nosferatu, do mesmo ano; para serem desditos por aqueles que preferem Aguirre, a Cólera dos Deuses. Façam as variações que vocês quiserem, acrescentando Fitzcarraldo.

O título deste é uma corruptela, é como os nativos pronunciavam o sobrenome do empreendedor, fã de Enrico Caruso e apaixonado por ópera Brian Sweeney Fitzgerald. Depois de fracassar na construção da estrada de ferro, cujo chefe de estação é interpretado por Grande Otelo, e não ter sucesso com a fábrica de gelo, o protagonista resolve lucrar com o Ciclo da Borracha, no intuito de enriquecer a ponto de construir um grande teatro. Dando a possibilidade de levar para Iquitos, cidade peruana levantada no meio da Floresta Amazônica, os mesmos espetáculos de ópera apresentados em Manaus e que inebriavam as crianças nativas pelo seu fonógrafo.

Poderíamos encarar seu ato como excêntrico, desperdício de dinheiro, mas não, pelo menos para mim. Os barões da borracha mandavam suas roupas para serem lavadas em Lisboa porque julgavam as águas do Rio Amazonas sujas, contratavam cozinheiros para seus cachorros, alimentavam seus peixes com notas de dólares, davam champanhe da melhor qualidade para seus cavalos.

Mas, para enriquecer com a borracha, Fitzcarraldo precisava de milhares de hectares de seringueiras ainda não concedidas aos brancos. Consulta seu amigo Don Aquilino (José Lewgoy), que indica uma região perigosa, uma vez que fica logo acima do Pongo das Mortes e próximo de índios nada amistosos. Ele encontra a fórmula para evitar o primeiro perigo através de uma manobra fora do comum: navegar pelo Rio Pachitea até o ponto em que a faixa de terra a separá-lo do Rio Ucayaly mais se aproxima, transpor o barco fluvial de um lado para o outro, navegar até a sua concessão de terras, fazer o carregamento de borracha e retornar pelo mesmo trajeto. Isso mesmo, atravessar um barco de toneladas pelo meio da Floresta Amazônica.

Arrumando o dinheiro com sua amada Molly (Claudia Cardinale), dona do bordel de Iquitos, compra o barco. Escolhe a tripulação, começando pelo mecânico Cholo (Miguel Ángel Fuentes), exigência de Don Aquilino, que lhe vendeu o barco, passando pelo capitão Orinoco Paul (Paul Hittscher), terminando no cozinheiro e atirador Huerequeque (Huerequeque Enrique Bohorquez), entre tantos outros. Reformam o Molly Aida e a aventura começa.

Chegando ao destino, com boa parte dos tripulantes fugindo, encontram os índios, que os recebem amistosamente, e acabam por ajudá-los a transpor o barco sob a montanha. Não entendem o motivo que levam os índios a trabalharem incansavelmente na tarefa. Saberão ao final da realização, assim como vocês.

Ao lembrarmos as palavras do diretor alemão na longa entrevista concedida a Peter Buchka, disponível nos extras de Aguirre, a Cólera dos Deuses, da Versátil, entendemos o porquê dele ter realizado de fato o que acontece no filme, transpor o barco montanha acima, para ficarmos num exemplo: “O cinema deve remodelar o mundo, ser a nossa realização do sonho”. O humano emerge quando desafia seu limite.

Fitzcarraldo - Werner Herzog - Peru/Alemanha - 1982

23 de nov. de 2008

Herzog & Kinski: "NOSFERATU, O FANTASMA DA NOITE"

O terceiro filme a ser abordado na série Herzog/Kinski é nada menos que um clássico do cinema de terror mundial. Mas, de todos os clássicos do gênero, é um dos que mais se notabilizam. Pela personalidade de Herzog, pela presença de Kinski. Pela beleza onírica de Adjani. Pela fotografia de Jörg Schmidt-Reitwein, que é pouco usual e causa sempre a impressão de que acompanhamos um sonho estranho e ruim.

Nosferatu, o Fantasma da Noite (Nosferatu: Phantom der Nacht, 1979) é a ponte entre o Expressionismo e o Novo Cinema germânicos, este último "movimento", encabeçado pelo próprio Herzog, assim como por Fassbinder, Wenders, Kluge e Schlöndorff, entre outros. Conversa - mas pouco - com a versão de F. W. Murnau, Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, de 1922. Há diferenças na estrutura narrativa, que na versão original não se prende a uma única voz. Na versão de Herzog o foco está em Lucy Harker (Isabelle Adjani). E o contemporâneo diretor teve a sorte que faltou a Murnau: pôde usar os nomes originários da lenda do terrível conde.

Kinski no papel de conde Drácula demorará a aparecer. Apenas no 26º minuto do filme, uma silhueta, envolto em sombras. Um personagem repulsivo, um tipo de rato-vampiro com a frustração e tragédia tão humana de não poder se redimir de sua condição grotesca e eterna através do amor.

Antes disso, um impressionante plano que mostra múmias humanas do Guanajuato Mummy Museum, no México. Um morcego que paira no ar. Lucy acordando, as imagens são de um pesadelo. Jonathan Harker (Bruno Ganz, em ótima atuação), o marido, a consola. Um café da manhã frio, que demonstra distanciamento entre o casal, inclusive no sentido sexual. Não por acaso, Lucy está cercada de certa aura virginal, sempre etérea, quase sempre vestida de branco.

Em seguida, Jonathan recebe uma missão: chegar à Transilvânia para encontrar o conde, que deseja tratar da compra de uma casa em Wismar, onde vivem os Harker. Recebe a incumbência sem pesar algum, despede-se da esposa, que tem uma sensação ruim, e parte. O primeiro sinal, durante a viagem, de que as coisas não vão sair bem vem da estupefação dos ciganos que, na estalagem, escutam Jonathan anunciar que vai ao encontro de Drácula. As coisas vão ficando mais sombrias, até o momento em que há o encontro. Quando o Harker se dá conta, já é tarde demais para qualquer atitude.

Como cada personagem de Kinski, esse Drácula tem um objetivo que transcende a realidade. Se o insano Aguirre pretende encontrar o El Dorado e criar uma linhagem superior por meio de um enlace carnal com a filha e se o obstinado Fitzcarraldo pretende montar uma ópera na selva (incluindo a improvável missão de transportar um navio enorme através de uma montanha), há aqui um angustiado conde que vê em Lucy a oportunidade de tornar a eternidade mais tolerável. Curiosamente, temos em Drácula um personagem de natureza puramente maligna, mas contida, enquanto outros personagens de Kinski sob a "batuta" de Herzog são mais "explosivos". Mas uma característica é comum a todos: são horripilantes em suas obsessões.

Firmado o contrato, o conde parte por rio, levando consigo a morte em forma de peste. Quando um barco sem tripulantes cheio de caixões e ratos chega à cidade, é sinal de que o pior destino não está por vir: já chegou. Também um Jonathan desmemoriado e de natureza transformada retorna à cidade, sem se importar se Lucy está a se bater com o vampiro - ela se escorando na fé em seu amor pelo marido; ele, Drácula, implorando por amor, em cena antológica: o monstro se manifesta pela primeira vez ao seu principal alvo através de uma sombra num espelho.

Não demorará muito a ser vista a cena do banquete dos ensandecidos moradores, enquanto os ratos se apropriam da cidade, assim como a cena em que cortejos fúnebres se sucedem e se somam nas ruas de Wismar. Cenas estas que poderiam ser exibidas daqui a 10 mil anos, de forma que algum ser saiba que existiu algo chamado cinema, se é que fará algum sentido.

A seguir, um sacrifício tem lugar, o que não deixa de ser uma entrega e uma certa satisfação sensual; um monstro encontra seu fim, apenas para dar lugar a outro - o mal permanece, ainda que, para o trio Lucy-Jonathan-Drácula, algum objetivo seja alcançado.

Uma clássica história de amor e morte em que Werner Herzog deixa sua marca, mais uma vez auxiliado por seu melhor inimigo, Klaus Kinski.

14 de nov. de 2008

Herzog & Kinski: Woyzeck

Os créditos de Woyzeck abrem o filme da forma mais direta possível. Herzog mantém a câmera estática diante de um abobalhado e subserviente Kinski. Os únicos movimentos do ator são de continência e preparação para marcha. Em poucos minutos, não nos resta dúvida. Herzog mais uma vez exercerá sua tirania generalesca diante do seu soldado raso cobaia favorito, Klaus Kinski.

O duelo cineasta x protagonista de Woyzeck se repete como em Aguirre, Nosferatu, Fitzcarraldo e Cobra Verde. Herzog mais uma vez explora um texto sobre a influência do natural e do social moldando e perturbando a mentalidade humana. Estamos diante de uma espécie de filme que complementa a obra-prima máxima de Herzog, O Enigma de Kaspar Hauser. Hauser é um personagem selvagem que busca moldar-se ao ambiente socialmente correto, enquanto o pobre Woyzeck é o socialmente enquadrado que se torna selvagem pela influência do mesmo meio.

Baseado na célebre peça de Georg Büchner (já magistralmente encenada no Brasil, com Matheus Nachtergaele no papel de Kinski), Woyzeck é um soldado do exército germânico que beira a patetice. O reflexo direto da opressão oculta do sistema de regras, convenções e morais. Tão oprimido que mal consegue enxergar sua insignificância. É alegre, otimista, patriota e extremamente dedicado à mulher e ao filho bebê.

No entanto, a sombra da dúvida de uma possível traição traz à tona o que os filósofos puristas chamariam de thaumasein. A consciência de se perceber vivo e capaz de reagir e analisar o ambiente que o cerca. Os rumores e olhares de escárnio da população moldam o caráter incorruptível de Woyzeck, desencadeando um processo contínuo de loucura, autocompaixão e, consequentemente, vingança.

A relação opressora de Herzog sobre Kinski se mantém durante toda a projeção de Woyzeck. Algo como se a câmera fosse a força oculta comandando os atos crescentes de insanidade do anti-herói. Criador cadenciando a fúria crescente da sua criatura social. As consequências trágicas dessa relação acabam por promover um dos mais cruéis e arrebatadores desfechos da história do cinema europeu. A fúria de Kinski nos minutos finais se contrapõe de forma assustadora se comparada com o bocó a quem somos apresentados nos minutos iniciais.

Apesar da impressionante simbiose entre esses dois gênios da dramaturgia germânica, o trabalho de Eva Mattes como a esposa também chama atenção. Como uma Capitu machadiana, consegue provocar no espectador pureza e incerteza, numa interpretação que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes. Ainda assim, tudo nesse filme é muito pouco diante do hipnótico Klaus Kinski e sua interpretação, que varia entre o boçal e o monstruoso.

Apesar de quê, do outro lado da câmera tinha um Herzog, o impiedoso cineasta que dedicou boa parte da sua vida a ameaçar (inclusive sob mira de revólver) a verve interpretativa da sua cobaia Klaus Kinski. No final, a dúvida. De onde o ator tirou tanta cólera? Estaria ele esfaqueando o próprio general que o ordenava por trás das câmeras? Irrelevante, já que o resultado foi sublime.

Woyzeck - Werner Herzog - Alemanha - 1979
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7 de nov. de 2008

Herzog & Kinski: "AGUIRRE, A CÓLERA DOS DEUSES"

O plano inicial do filme em uma tomada panorâmica evidencia a magnitude da natureza sobre o homem que almeja desbravá-la. Essa relação homem-natureza é transposta para o cinema por um dos realizadores mais radicais e excêntricos do cinema autoral: o alemão Werner Herzog.

Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972) é o primeiro e quiçá, o melhor resultado da conturbada e exitosa parceria entre Herzog e o ator Klaus Kinski. A trama é baseada em fatos históricos ocorridos no século XVI, inspirada nas expedições enviadas pelo conquistador espanhol Gonzalo Pizarro em busca de El Dorado, a cidade de ouro, ainda sob o espírito da reconquista (herança ainda medieval das monarquias ibéricas). Egocentrismo, ganância, obsessão e submissão são os aspectos humanos em confronto com a natureza primitiva e desconhecida, paulatinamente permeados pela insanidade do personagem Aguirre (Kinski).

O narrador da expedição é Frei Carvajal, cujo diário foi fonte primária para o embasamento do filme. Don Pedro Ursua (Ruy Guerra) é o comandante da expedição, que configura a hierarquia dos colonizadores em suas conquistas na América Espanhola, um representante da coroa espanhola, nobreza, exército, igreja e os escravos indígenas. E essa exploração colonial sobre o indígena, forçando-o ao trabalho compulsório, remete também à imposição dos costumes europeus aos índios, causando, dessa forma, uma aculturação.

No embate das ações entre homem e natureza, as ambições e efeitos emocionais e mentais vêm à tona quando Aguirre boicota Ursua e, num golpe de tomada da liderança da expedição, causa a degradação estrutural do comboio. A natureza e as condições adversas impostas por ela ganham força, assim como a degradação mental de Aguirre e a submissão de seus comandados. Aguirre, no alto da loucura, rompe com o Estado Espanhol e auto proclama-se o líder e destinado a encontrar o El Dorado.

O mito do El Dorado é uma criação indígena como forma de resistência à exploração imposta pelos conquistadores europeus que, por sua vez, continuam com a mentalidade medieval de conquista e imposição de sua cultura e fé. Os sons da floresta na Amazônia Peruana enfatizam o quanto a natureza ainda reservaria aos europeus: dificuldades extremas, da alimentação a um rumo, aliadas à insanidade de seu líder, Aguirre. Essa relação extrema entre o homem e natureza é vital no cinema de Herzog, o homem é consumido perante o gigantismo dessa natureza e por suas peripécias ambiciosas.

Em meio à degradação mental de Aguirre, a expedição segue cada vez mais desfalcada, o europeu sucumbe ao estranhamento e às deserções dos escravos indígenas, uma balsa de madeira é construída com o intuito de conduzir os desbravadores Rio Amazonas abaixo. E quando parece que não há mais perspectiva de um contato com a humanidade, eis que surge um princípio de civilização indígena. Uma civilização que, assim como a natureza e a insanidade do comandante da expedição, é extrema: o canibalismo. Os desbravadores demonstram fome, medo, aflição, com exceção de Aguirre e sua cólera contra o improvável destino almejado.

Um dos últimos lapsos de contato com indígenas da região acontece quando encontram uma tribo desconhecida que, por sua vez, desconhece o valor da fé cristã imposta pelo Frei Carvajal. No malogro dessa empreitada, cada um dos ocupantes da balsa sucumbe à natureza local ou aos ataques sutis dos índios. Exceto Aguirre que, quase imponente e já mergulhado no ápice de sua insanidade, é consumido por sua cobiça e loucura de enfrentar a natureza primitiva amazônica.

As relações extremas não ficaram somente no campo da ficção onde a expedição foi consumida pela cólera de Aguirre e a magnitude da natureza. Kinski encarnou o personagem em muitos momentos nas locações, chegou a abandonar as filmagens e brigar inúmeras vezes com Herzog, fato que assustou os índios que, por sua vez, ofereceram-se para matar o ator. Tal egocentrismo de ambas as partes (ator-diretor) rendeu um filme memorável sob os aspectos humano e ambientail, retratados com maestria pela lente da câmera do diretor de fotografia Thomas Mauch.

29 de out. de 2008

Brasil: Cinema e Política - Eles Não Usam Black-Tie

Às vezes temos a sensação de que a biografia de alguém precisaria de mais anos para comportar tantos acontecimentos. Talvez induzimos nosso sentimento por incorporarmos os desdobramentos sócio-políticos ao indivíduo. Contudo, se ele for espectador bovino da História, o exercício será vazio. O diretor Leon Hirszman exemplifica a hipótese. Sua biografia poderia resumir-se à sua condição de filho de judeus poloneses foragidos das perseguições antissemitas da Europa Central e ao fato de ter passado quase metade da sua vida numa ditadura. Mas não. Viveu um período turbulento do Brasil e participou ativamente do turbilhão.

Nasceu no Rio de Janeiro em 22 de novembro de 1937. Pai comunista e mãe praticante do judaísmo ortodoxo. Educação tradicional na escola israelita Scholem Aleichem e atração pelo futebol de rua. Ingressou na Escola Nacional de Engenharia e nela participou da criação do seu primeiro cineclube. Em 1958, com Paulo Cezar Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade, fundou a Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, visando não só a exibição, como a discussão e a produção de um cinema brasileiro, com linguagem e temática próprias. Como não poderia deixar de ser, trocou a engenharia pelo cinema.

Juntou-se ao grupo do Teatro de Arena, formado por Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Ovuvaldo Vianna Filho. Em 1961, participou da fundação do Centro Popular de Cultura da UNE, que produziria no ano seguinte seu primeiro filme, Pedreira de São Diogo, exibido ao lado de outros quatro curta-metragens como Cinco Vezes Favela, um dos marcos iniciais do Cinema Novo. Com o Golpe de 1964, refugiou-se no Chile, para um ano depois voltar e fundar com Marcos Faria a Saga Filmes, que iria a falência devido as dívidas de S. Bernardo, produzido em 1972.

Sua participação política como cineasta era intensa, trabalhou pela organização da categoria, pela regulamentação das leis de cinema e pelo fim da censura, anota Carlos Augusto Calil no livreto que acompanha a Coleção Leon Hirszman 01-02 da Videofilmes. No início dos anos 80, participou da fundação da Cooperativa Brasileira de Cinema. Antes de falecer, em decorrência do HIV, concluíra a trilogia Imagens do Inconsciente, sobre o trabalho pioneiro da dra. Nise da Silveira, e preparava-se para filmar Canudos.

Mas o filme que o consagrou definitivamente foi lançado 6 anos antes da sua morte, em 1981. Trata-se de uma revisão de Leon Hirszman da cultura brasileira, do Cinema Novo, do movimento social, da política sob a ótica de alguém que viveu a idealização da realidade brasileira pré-Golpe de 1964 e a certeza de que a construção de uma sociedade mais justa tem como obstáculos as contradições do país. Não é à toa que o movimento social em Pedreira de São Diogo é monolítico enquanto em Eles Não Usam Black-Tie tem antagonistas que podem levá-lo para lá e para cá, além de indivíduos no interior dele que rejeitam-no por acreditarem que a conquista de uma categoria é ilusão, de que ela apenas dá-se egoisticamente.

Eles Não Usam Black-Tie é baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri, que assina o roteiro com o Leon Hirzsman e interpreta um dos protagonistas, e influenciado pela Greve do ABC de 1979, acompanhada de perto pelo diretor e por sua equipe de filmagens, no qual originará o documentário ABC da Greve, finalizado em 1990 pelo fotógrafo Adrian Cooper. A dialética entre ficção e realidade é orgânica, ao mesmo tempo que o filme é inteligível enquanto obra ficcional, qualquer espectador desconhecedor da política e do sindicalismo envolve-se com a trama, joga luz sob os embates ideológicos da abertura política e do surgimento de um ator social que também quer participar ativamente da reconstrução da democracia no Brasil. A trajetória do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema revela a lenta gestação da participação política dos trabalhadores: Lula empregou-se como torneiro mecânico em 1963, filiou-se ao sindicato em 1968, no ano seguinte entrou para a diretoria, assumiu a presidência em 1975 e foi reeleito em 1978, quando estouraram as grandes greves, ainda sob a repressão da ditadura civil-militar, radiografa ABC da Greve.

A sinopse, por si só, revela a complexidade da luta social. O operário Tião (Carlos Alberto Riccelli) namora a colega de fábrica Maria (Bete Mendes). Ele marca o casamento quando ela revela sua gravidez. As perspectivas são limitadas pela falta de dinheiro. Estoura a greve, mesmo a julgando precipitada, o líder sindical Otávio (Gianfrancesco Guarnieri), pai de Tião, participa ativamente. A precipitação ocorre por causa de demissões, entre elas de lideranças. Tudo leva a crer que foram escolhidos a dedo. Tião fura a greve porque vê no pacto com o patrão a possibilidade de ascensão na fábrica, com melhores salários, seguindo o conselho de Zino (Anselmo Vasconcelos). Fica isolado, sua namorada também participa da greve. O conflito explode no interior da família.

A condução de Leon Hirszman deixa as contradições do movimento social tomarem conta da tela, sem deixar de enfatizar que a força dele não é produto do heroísmo de um líder, mas do esforço conjunto de todos. Mesmo assim ele deixa Tião seguir seu caminho. Sem esquecer jamais dos dramas individuais de todos os envolvidos. Não é à toa que Romana (Fernanda Montenegro) surge como personagem a manter a perseverança de seu marido Otávio e a do seu filho Tião. Ambos têm em seus bolsos o endereço de casa posto por ela, o primeiro quando sai para os piquetes e o segundo ao escolher seu modo de viver.

24 de out. de 2008

Brasil - Cinema e Política: "CABRA MARCADO PARA MORRER"

Eduardo Coutinho começa em fevereiro de 1964 a produção de um dos trabalhos mais emblemáticos da cinematografia brasileira, a princípio um documentário sobre a história política de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé (Paraíba), assassinado em 1962 por dois soldados da PM. Esse é foco do documentário, finalizado somente 18 anos depois. É onde entra a contextualização histórica abordada com um olhar minucioso por um dos realizadores mais eficazes do cinema brasileiro, Eduardo Coutinho, que, ao lado do seu assistente de direção, Vladimir Carvalho proporciona um material histórico fundamental por meio da imagética.

A historicidade em questão é um dos fatores que fazem de Cabra Marcado para Morrer (1984), um objeto de análise sobre a situação política e histórica vivenciada pelo Brasil em um período de instabilidade política no governo de João Goulart (1961-64), que, por consequência, ocasionou um malogro na democracia brasileira – o Golpe Militar de 64. Os termos que derivam da História irão se repetir ao longo dessa pequena análise sobre o filme, o que é inevitável nesse caso, pois é assaz desnecessário ressalvar a importância da visão sobre a História, a fim de compreendermos e questionarmos o processo civilizatório da sociedade brasileira nos anos 60. Feita a ressalva, voltamos ao que o documentário proporciona, a luta política das Ligas Camponesas para exigir melhores condições de vida e de trabalho e a repressão sobre essa ação.

Muitos entendem a Ditadura Militar ocorrida no Brasil como um fato que atingiu apenas (ou em quase sua totalidade) as camadas urbanas, além das elites intelectuais e culturais do país, ai está um equívoco que é configurado através da abordagem cinematográfica. O interior do Brasil, especialmente o sertão brasileiro, foi esquecido pelo processo de desenvolvimento, desde a época em que éramos América Portuguesa (Brasil Colônia), passando pelo Império (onde o interior e o sertão foram pauta apenas na contenção das revoltas populares) até a República Velha, com suas contradições urbanas se estendendo até o Regime Militar. Aliás, esse Brasil esquecido foi bem retratado por autores da nossa rica Literatura até metade do século XX.

Saindo um pouco da contextualização histórica e entrando no viés cinematográfico, Coutinho mostra porque é referência no meio, partindo pela construção do documentário, que teve as filmagens interrompidas devido ao Golpe Militar, até sua montagem final, mesmo tendo boa parte do material captado apreendido. O diretor tem como premissa, em seus filmes, não ser o centro das atenções, pois suas poucas inserções no texto fílmico (aí notamos o grande mérito do cineasta, por valorizar a situação e os acontecimentos e, dessa forma, extrair com a naturalidade dos personagens os objetivos de seus filmes) exaltam o factual da realidade ou o conteúdo da ficção. Coutinho consegue manter o controle absoluto da situação, pois quando questiona algo a um personagem, não espera respostas prontas e nem o que quer ouvir. Aliás, ele não cria perspectivas internas sobre o que lhe será respondido e, sim, configura as imagens e as respostas com o seu objetivo, levando dessa forma a naturalidade e o real sentimento de quem está à frente da câmera, facilitando a narrativa do filme e a compreensão do espectador.

Finalmente, vamos ao foco central do documentário: a luta dos líderes camponeses para melhores condições de trabalho.

É bom ressaltar que essa consciência de classe operária surge no Brasil durante a sindicalização ocorrida no governo Vargas, vindo a eclodir nos movimentos sindicais do ABC Paulista no fim da década de 1970, mas não tangenciemos do foco. O assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira (Liga Camponesa de Sapé), no ano de 1962, morto por dois soldados da Policia Militar da Paraíba que viriam a ser absolvidos em uma manobra política, tendo a omissão e negligência parlamentar do Estado da Paraíba, por meio de seus deputados, como maior aliado da impunidade a um crime cometido.

Em 1964, as filmagens foram interrompidas mediante a apreensão dos equipamentos e do material filmado no engenho da Galiléia (Pernambuco), sob a seguinte justificativa macartista de intervenção subversiva.
“Armas primitivas das Forças Armadas, filmes para a formação agitadora dos camponeses, holofotes para as projeções noturnas (o treinamento é intenso e diuturno), foram apreendidos pelo exército no Engenho Galiléia.”
Com o pouco material registrado, o filme mostra a repressão militar contra os camponeses e configura o ambiente do meio rural e suas perspectivas de vida como: o desaparecimento e morte de outros dois líderes (algo corriqueiro na Ditadura Militar, principalmente nos anos de chumbo); alta adesão por outros líderes e suas famílias à Igreja Batista (mais uma vez a religião surge como válvula de escape para um sociedade reprimida e sem maiores expectativas de melhora). Os depoimentos de moradores e líderes camponeses são exibidos pelo diretor em uma projeção incompleta (ainda sem a montagem e edição final do filme) para a população de Sapé, isso já na década de 1980, quando o diretor acompanhou a atual condição de alguns personagens do filme.

Um caso particular que pauta o processo final da fita é a história da viúva de João Pedro, a agricultora Elisabeth Teixeira, que foi forçada a fugir de sua propriedade com alguns de seus filhos, tendo que viver na clandestinidade, sendo obrigada a mudar de nome (perda parcial de sua própria identidade) para Marta. O fato curioso é que, tendo vivido mais de 18 anos em insegurança, Elisabeth chega a ponto de ressaltar e agradecer por várias vezes à abertura política (“lenta, gradual e segura”) proporcionada pelo General Figueiredo, voltando ao seu estado natal (Paraíba) em 1983.

João Pedro Teixeira não pregava iconoclastia, muito menos subversão aos latifundiários, almejava melhores condições de trabalho e subsistência para os camponeses, gerando dessa forma um melhor desenvolvimento para a agricultura desse lugar esquecido do Brasil, o sertão. Contudo, o líder camponês mostrou ser um cabra-macho, conforme expressão conhecida e utilizada na região, e teve sua história retratada de forma magistral pela lente de Eduardo Coutinho, que mostrou assim como outros cabras que lutaram por melhorias de suas condições foram cabras marcados para morrer, durante a repressão do nefasto período militar que vigorou no país por cerca de 20 anos.

15 de out. de 2008

Brasil - Cinema e Política: "OPINIÃO PÚBLICA"

I. Ponto cego nas representações cinematográficas da ditadura

Opinião Pública de Arnaldo Jabor destoa do tom geral dos filmes sobre a ditadura militar. Sem menção explícita ao Estado autoritário, Jabor faz uma minuciosa colagem de cenas documentais de uma suposta "classe" da sociedade brasileira, a classe média.

Entrecortado entre os mais diversos embarços cotidianos, o que se monta é um quadro de decadência da sociedade brasileira, marcada pelo seu conservadorismo, machismo e suas pequenas violências cotidianas. Desde a mulher que faz um balanço negativo de sua vida, narrando a decadência material de sua casa e sua família, enquanto o marido vivia em "farras", até a vedete ensinando as meninas "recatadas" o que é o amor, encontramos uma sociedade convulsionada e decadente, muito diferente das cenas combativas que estamos acostumados a ver nas centenas de filmes que abordam a luta armada.

O filme de Jabor ilustra um pouco o povo que as organizações de esquerda nunca encontraram na sua luta. A partir do filme, fica mais evidente o grau de descolamento existente entre as expectativas desses grupos e o seu poder de recepção por uma sociedade que, se não era um espelho não menos podre da ditadura que os governava, tinha com esse governo muitas afinidades, expressas não na vida pública ou nas idéias políticas, mas na sua miséria privada.

Um documento precioso pela sua peculiaridade na filmografia da ditadura, o filme faz um contraponto com a hipertrofia existente nos filmes e livros, da força das lutas contra a ditadura militar no Brasil. Na época em que foi feito, em 1967, o filme poderia ter gerado repulsa ou vergonha. Hoje, certamente nos permite perceber uma certa continuidade com o período ditatorial, insistentemente visto como um hiato e não como uma constante na história brasileira. A continuidade com o período se expõe na precariedade da sociedade brasileira, sempre passível à crise, ao autoritarismo e à fome.


II. Ponto cego no Cinema Novo

Com a Opinião Pública, apareceram alguns ruídos dissonantes nos acordes do Cinema Novo. Os problemas brasileiros e a força da "ruptura" feita pelos cinemanovistas pareciam carecer de algo mais do que a denúncia dos problemas sociais. O filme de Jabor parece ser um sintoma desse mal-estar de uma estética que foi derrotada, paulatinamente, a partir de 1964, pelas armas. Era necessário responder esteticamente ao ataque feito pelo golpe civil-militar. Descobrir os nexos civis dessa quartelada que contou, novamente, assim como em 1889, com a perpexidade apática dos que não possuíam armas.

Menos rancoroso que Terra em Transe, o filme de Jabor procura, sob a tutela atenta do narrador over, ouvir a "opinião pública" e não chacoalhá-la como fez Paulo Martins no filme de Glauber, como se o problema se tratasse nos termos de um encontro histórico, no qual o "povo" de Nelson Werneck Sodré faltou ao encontro.

Se, por um lado, percebe-se a necessidade ouvir seja lá o que for desses micro-ditadores, que há três anos eram uma fonte de esperança; por outro lado, o filme deixa sempre as suas falas incompletas, cortadas, não os deixando falar até o fim. Assim que diagnóstico é feito, corta-se a fala e o narrador entra para julgá-la, invariavelmente reprovando e desmerecendo o que foi dito. O filme deixa falar e ouve o que quer. Desse modo, aproxima-se de Terra em Transe, embora busque encontrar as raízes do golpe por baixo e não por cima, como fez Glauber.


III. A ancoragem movediça

Nos extras, Arnaldo Jabor (em depoimento contemporâneo ao lançamento do DVD) compara o seu filme com o que Eduardo Coutinho faria em Edifício Master (2002).

A comparação é feliz no sentido de que tanto Jabor quanto Coutinho perceberam que para mostrar a miséria brasileira inteira era necessário abandonar a idéia "demiúrgica" de estado tão presente em Terra em Transe. Isto implicava em reconhecer que o poder não emanava apenas de uma só fonte, mas é disseminado na sociedade, sob diferentes lutas e amplitudes.

A comparação é infeliz no sentido de que Eduardo Coutinho não se esconde em um narrador over. Ao fazer isso, não deixa a luta, a tensão entre diretor e sociedade, para a estúdio de montagem. Ele a faz ali, na frente das câmeras. Não que ele não se oponha às falas que ouve, não despreze algumas, não compreenda outras, mas o fundamental é que o diálogo se coloca dentro da representação, e só por isso é que há diálogo. No caso do filme de Jabor, o diálogo entre o povo, que felizmente ele foi encontrar, não acontece porque o cineasta se resguarda para a sua tacada final contra tudo que ouviu. Faz dos cortes da montagem sua resposta para àqueles que encontrou, complementadas pelo posicionamento a posteriori do narrador, rebatendo a sociedade que foi buscar. A pergunta que fica é a seguinte: o cineasta em 1967 se achava apartado desse povo que desejou ouvir?


IV. Jabor, ontem e hoje

Ao que tudo indica, ontem e hoje, sim. Jabor achava e parece continuar achando, ao contrário de Coutinho, que não faz parte da sociedade brasileira. Seus editoriais no Jornal da Globo, alguns até interessantemente críticos e linguisticamente bem elaborados, preservam essa marca indisfarçável de seu filme: o desprezo do intelectual pela sociedade.

Ambos, Jabor e Coutinho, fizeram parte do Centro Popular de Cultura da UNE na década de 60. Uma das discussões capitais no Centro era a posição que deveria ser ocupada pelo artista em uma sociedade que ele deseja ver transformada. Como entender o povo? Produto social, produtor ou transformador? Como entender o intelectual? Dentro ou fora do povo?

Jabor em 67 procurou entender o povo como produtor e produto da sociedade, retirando-lhe toda a carga transformadora, que havia sempre seduzido os membros do GT de Cinema do CPC. Em relação ao lugar do intelectual ou do cineasta dentro do povo, Jabor permanece inalterado. Tudo faz crer que, ontem e hoje, sob diversos contextos, ele permanece acreditando que ao intelectual é reservado o dever de "editorializar" o mundo, ao povo é reservado o papel imundo de vivê-lo.

A cada ano que passa, a inalterabilidade dessa postura de Jabor tem ganhado mais prestígio, visto que a tensão presente no CPC foi violentada pelo golpe de 64 e impediu que eles as resolvessem em um diálogo cultural e político com a sociedade. Depois do golpe, ficou mais fácil ser um intelectual elitista, basta ter dinheiro e espaço na mídia. Os argumentos político-culturais, únicos meios de fazer o diálogo dessa prática, foram sepultados em 1964 e aguardam a ressureição. Se é que ela virá.

Eduardo Coutinho, que optou por outro caminho, amarga o ostracismo midiático, o que parece não lhe incomodar. Seus filmes deixarão mais rastros éticos-culturais que os editoriais de Jabor, que andam servindo bastante à "opinião pública" para se esquivar moralmente da corrupção. Mas, qual a responsabilidade de todos - intelectuais e "opinião pública" nessa porno-política brasileira? Ela é só cinismo petista? O filme Opinião Pública (1967) de Jabor está aí, relançado em DVD, para nos mostrar que o problema é mais complicado do que parece.
 
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