14 de nov. de 2008

Herzog & Kinski: Woyzeck

Os créditos de Woyzeck abrem o filme da forma mais direta possível. Herzog mantém a câmera estática diante de um abobalhado e subserviente Kinski. Os únicos movimentos do ator são de continência e preparação para marcha. Em poucos minutos, não nos resta dúvida. Herzog mais uma vez exercerá sua tirania generalesca diante do seu soldado raso cobaia favorito, Klaus Kinski.

O duelo cineasta x protagonista de Woyzeck se repete como em Aguirre, Nosferatu, Fitzcarraldo e Cobra Verde. Herzog mais uma vez explora um texto sobre a influência do natural e do social moldando e perturbando a mentalidade humana. Estamos diante de uma espécie de filme que complementa a obra-prima máxima de Herzog, O Enigma de Kaspar Hauser. Hauser é um personagem selvagem que busca moldar-se ao ambiente socialmente correto, enquanto o pobre Woyzeck é o socialmente enquadrado que se torna selvagem pela influência do mesmo meio.

Baseado na célebre peça de Georg Büchner (já magistralmente encenada no Brasil, com Matheus Nachtergaele no papel de Kinski), Woyzeck é um soldado do exército germânico que beira a patetice. O reflexo direto da opressão oculta do sistema de regras, convenções e morais. Tão oprimido que mal consegue enxergar sua insignificância. É alegre, otimista, patriota e extremamente dedicado à mulher e ao filho bebê.

No entanto, a sombra da dúvida de uma possível traição traz à tona o que os filósofos puristas chamariam de thaumasein. A consciência de se perceber vivo e capaz de reagir e analisar o ambiente que o cerca. Os rumores e olhares de escárnio da população moldam o caráter incorruptível de Woyzeck, desencadeando um processo contínuo de loucura, autocompaixão e, consequentemente, vingança.

A relação opressora de Herzog sobre Kinski se mantém durante toda a projeção de Woyzeck. Algo como se a câmera fosse a força oculta comandando os atos crescentes de insanidade do anti-herói. Criador cadenciando a fúria crescente da sua criatura social. As consequências trágicas dessa relação acabam por promover um dos mais cruéis e arrebatadores desfechos da história do cinema europeu. A fúria de Kinski nos minutos finais se contrapõe de forma assustadora se comparada com o bocó a quem somos apresentados nos minutos iniciais.

Apesar da impressionante simbiose entre esses dois gênios da dramaturgia germânica, o trabalho de Eva Mattes como a esposa também chama atenção. Como uma Capitu machadiana, consegue provocar no espectador pureza e incerteza, numa interpretação que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes. Ainda assim, tudo nesse filme é muito pouco diante do hipnótico Klaus Kinski e sua interpretação, que varia entre o boçal e o monstruoso.

Apesar de quê, do outro lado da câmera tinha um Herzog, o impiedoso cineasta que dedicou boa parte da sua vida a ameaçar (inclusive sob mira de revólver) a verve interpretativa da sua cobaia Klaus Kinski. No final, a dúvida. De onde o ator tirou tanta cólera? Estaria ele esfaqueando o próprio general que o ordenava por trás das câmeras? Irrelevante, já que o resultado foi sublime.

Woyzeck - Werner Herzog - Alemanha - 1979
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Um comentário:

Hudson disse...

Embora eu veja como o "filme médio" (ainda que seja um belo filme) dessa ótima parceria, tem uma frase que me marcou muito "O ser humano é um abismo, a gente fica tonta ao olhar dentro dele", proferida pela mulher de Woyzeck.

Grande estréia no DDF.

 
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