24 de out. de 2008

Brasil - Cinema e Política: "CABRA MARCADO PARA MORRER"

Eduardo Coutinho começa em fevereiro de 1964 a produção de um dos trabalhos mais emblemáticos da cinematografia brasileira, a princípio um documentário sobre a história política de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé (Paraíba), assassinado em 1962 por dois soldados da PM. Esse é foco do documentário, finalizado somente 18 anos depois. É onde entra a contextualização histórica abordada com um olhar minucioso por um dos realizadores mais eficazes do cinema brasileiro, Eduardo Coutinho, que, ao lado do seu assistente de direção, Vladimir Carvalho proporciona um material histórico fundamental por meio da imagética.

A historicidade em questão é um dos fatores que fazem de Cabra Marcado para Morrer (1984), um objeto de análise sobre a situação política e histórica vivenciada pelo Brasil em um período de instabilidade política no governo de João Goulart (1961-64), que, por consequência, ocasionou um malogro na democracia brasileira – o Golpe Militar de 64. Os termos que derivam da História irão se repetir ao longo dessa pequena análise sobre o filme, o que é inevitável nesse caso, pois é assaz desnecessário ressalvar a importância da visão sobre a História, a fim de compreendermos e questionarmos o processo civilizatório da sociedade brasileira nos anos 60. Feita a ressalva, voltamos ao que o documentário proporciona, a luta política das Ligas Camponesas para exigir melhores condições de vida e de trabalho e a repressão sobre essa ação.

Muitos entendem a Ditadura Militar ocorrida no Brasil como um fato que atingiu apenas (ou em quase sua totalidade) as camadas urbanas, além das elites intelectuais e culturais do país, ai está um equívoco que é configurado através da abordagem cinematográfica. O interior do Brasil, especialmente o sertão brasileiro, foi esquecido pelo processo de desenvolvimento, desde a época em que éramos América Portuguesa (Brasil Colônia), passando pelo Império (onde o interior e o sertão foram pauta apenas na contenção das revoltas populares) até a República Velha, com suas contradições urbanas se estendendo até o Regime Militar. Aliás, esse Brasil esquecido foi bem retratado por autores da nossa rica Literatura até metade do século XX.

Saindo um pouco da contextualização histórica e entrando no viés cinematográfico, Coutinho mostra porque é referência no meio, partindo pela construção do documentário, que teve as filmagens interrompidas devido ao Golpe Militar, até sua montagem final, mesmo tendo boa parte do material captado apreendido. O diretor tem como premissa, em seus filmes, não ser o centro das atenções, pois suas poucas inserções no texto fílmico (aí notamos o grande mérito do cineasta, por valorizar a situação e os acontecimentos e, dessa forma, extrair com a naturalidade dos personagens os objetivos de seus filmes) exaltam o factual da realidade ou o conteúdo da ficção. Coutinho consegue manter o controle absoluto da situação, pois quando questiona algo a um personagem, não espera respostas prontas e nem o que quer ouvir. Aliás, ele não cria perspectivas internas sobre o que lhe será respondido e, sim, configura as imagens e as respostas com o seu objetivo, levando dessa forma a naturalidade e o real sentimento de quem está à frente da câmera, facilitando a narrativa do filme e a compreensão do espectador.

Finalmente, vamos ao foco central do documentário: a luta dos líderes camponeses para melhores condições de trabalho.

É bom ressaltar que essa consciência de classe operária surge no Brasil durante a sindicalização ocorrida no governo Vargas, vindo a eclodir nos movimentos sindicais do ABC Paulista no fim da década de 1970, mas não tangenciemos do foco. O assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira (Liga Camponesa de Sapé), no ano de 1962, morto por dois soldados da Policia Militar da Paraíba que viriam a ser absolvidos em uma manobra política, tendo a omissão e negligência parlamentar do Estado da Paraíba, por meio de seus deputados, como maior aliado da impunidade a um crime cometido.

Em 1964, as filmagens foram interrompidas mediante a apreensão dos equipamentos e do material filmado no engenho da Galiléia (Pernambuco), sob a seguinte justificativa macartista de intervenção subversiva.
“Armas primitivas das Forças Armadas, filmes para a formação agitadora dos camponeses, holofotes para as projeções noturnas (o treinamento é intenso e diuturno), foram apreendidos pelo exército no Engenho Galiléia.”
Com o pouco material registrado, o filme mostra a repressão militar contra os camponeses e configura o ambiente do meio rural e suas perspectivas de vida como: o desaparecimento e morte de outros dois líderes (algo corriqueiro na Ditadura Militar, principalmente nos anos de chumbo); alta adesão por outros líderes e suas famílias à Igreja Batista (mais uma vez a religião surge como válvula de escape para um sociedade reprimida e sem maiores expectativas de melhora). Os depoimentos de moradores e líderes camponeses são exibidos pelo diretor em uma projeção incompleta (ainda sem a montagem e edição final do filme) para a população de Sapé, isso já na década de 1980, quando o diretor acompanhou a atual condição de alguns personagens do filme.

Um caso particular que pauta o processo final da fita é a história da viúva de João Pedro, a agricultora Elisabeth Teixeira, que foi forçada a fugir de sua propriedade com alguns de seus filhos, tendo que viver na clandestinidade, sendo obrigada a mudar de nome (perda parcial de sua própria identidade) para Marta. O fato curioso é que, tendo vivido mais de 18 anos em insegurança, Elisabeth chega a ponto de ressaltar e agradecer por várias vezes à abertura política (“lenta, gradual e segura”) proporcionada pelo General Figueiredo, voltando ao seu estado natal (Paraíba) em 1983.

João Pedro Teixeira não pregava iconoclastia, muito menos subversão aos latifundiários, almejava melhores condições de trabalho e subsistência para os camponeses, gerando dessa forma um melhor desenvolvimento para a agricultura desse lugar esquecido do Brasil, o sertão. Contudo, o líder camponês mostrou ser um cabra-macho, conforme expressão conhecida e utilizada na região, e teve sua história retratada de forma magistral pela lente de Eduardo Coutinho, que mostrou assim como outros cabras que lutaram por melhorias de suas condições foram cabras marcados para morrer, durante a repressão do nefasto período militar que vigorou no país por cerca de 20 anos.

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