“Um discurso que seja capaz de tomar o discurso ideológico e não contrapor a ele um outro que seria verdadeiro por ser ‘completo’ ou pleno, mas que tomasse o discurso ideológico e o fizesse desdobrar todas as suas contradições, é um discurso que se elabora no interior do próprio discurso ideológico como o seu contradiscurso. Esse contradiscurso é o discurso crítico, que não deve ser tomado como um discurso da objetividade.”
Marilena Chauí, Cultura e Democracia; p.22-23
Em O Homem do Sputnik, o grande personagem é o riso. Um riso permeado pela desconstrução das diversas falas do poder instituído. A desconstrução, no entanto, não tem ares heróicos e tampouco os oprimidos pelo poder são vistos como vítimas ingênuas. O riso do filme não resolve o mundo. Costura-o sob o olhar corrosivo do riso, explicitando o jogo desavergonhado da violência e do poder.
Anastácio Fortuna, protagonista do filme, é um artesão das galinhas. No seu galinheiro, os animais têm nome e qualidade própria. Se sua esposa não resistisse à idéia, ele colocaria as suas pupílas dentro de casa, evitando desastres, como o do dia em que um estranho objeto cai no seu quintal, matando as galinhas. Chateado pela morte de suas filhas, Anastácio descobre que a tragédia poderá não ser tão trágica. Na mesma noite caíra na terra o Sputnik, em lugar ainda não identificado. Comparando o objeto com a foto do jornal, ele desconfia que ganhou na loteria sem jogar. O Sputnik é todo coberto de ouro e Anastácio não hesita em embrulhá-lo e levá-lo ao penhor, acreditando ser possível construir um galinheiro livre das contingências naturais e, também, a partir de então, das políticas.
No penhor, a notícia se espalha. A imprensa carioca, os EUA, a Europa (na sua vertente francesa) e a URSS mobilizam seus instrumentos de poder para capturar o objeto. O Sputnik, produto mais bem acabado da técnica (leia-se política) capitalista, está sendo gerido por um criador de galinhas do interior do Brasil. O problema não é tanto o fato dele ser um criador de galinhas, é mesmo a idéia de um Brasil selvagem, atrasado e tropical que preocupa os, também caricaturais, membros das potências mundiais.
A caricatura é um artifício engenhoso a desdenhar do poder. Os estrangeiros, que não se lembram sequer a localização do Brasil, terão que aportar no atraso se quiserem de volta a galinha favorita do progresso. E, é claro, aportarão e irão se misturar de maneira bastante tranquila às negociatas, às fraudes e ao favor tropical. Ao longo do filme, Anastácio e o jornalista fracassado (que o descobriu) vão se tornando calmamente sofisticados frente à pressa e à sedução infantil dos poderes em prol da sua reprodução.
O final, que não vou contar, demonstra a complexidade narrativa de Carlos Manga – muitos diriam que é um crime nomear assim o esquecido diretor, ofuscado pela genialidade política de um Glauber Rocha. Anastácio não fica rico com o objeto e os poderes não conseguem capturá-lo. O caipira não sente saudade da temporada no Copacabana Palace e despreza os sonhos(fetiches) da técnica(reificação). Sua grande lição é o desprezo, a indiferença frente àquele mundo que poderia lhe dar um galinheiro novo. Os estrangeiros, frente ao fracasso em domesticar sua criatura, voltam para os seus postos do mesmo modo que chegaram. A história do filme, entretanto, nos faz questionar a diferença existente entre o criador de galinhas e o criador de naves espaciais. A questão (por si só) é urgente, num mundo que não consegue ver a técnica como uma ideologia. A resposta à questão aberta é algo que o filme não quer dar. A resposta do espectador, contudo, pode se dar na sua prática cotidiana, valendo-se do filme como um contradiscurso, capaz de nos fazer desconfiar que uma fundamental diferença entre a personificação das galinhas e a do Sputnik deve-se à capacidade de destruição e de opressão imposta (e não negociada) pelos pupílos queridos do discurso científico e da ciência.
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