1 de out. de 2008

Brasil - Cinema e Política: "OS INCONFIDENTES"

Os cineastas brasileiros ainda se recuperavam do impacto do golpe de 1964, quando o A.I. 5 lançou todos numa perplexidade frente o futuro do país. O estado das artes que se seguiu, principalmente entre os politizados realizadores do Cinema Novo refletiu e rebateu seu contexto histórico, inclusive ao montar os chamados filmes históricos, ou seja, fitas que retratassem o passado brasileiro. Os Inconfidentes (1972), neste caso, permanece até hoje um dos maiores e complexos exercícios de reflexão histórica já realizados na cinematografia mundial. Ali o passado é uma porta para (re) ver o presente.

Quando o Cinema Novo dava vista de se desgastar, seus representantes tentaram novas formas de ação. Glauber Rocha finalmente lançou um triunfo comercial com Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969, e Joaquim Pedro de Andrade, lançou no mesmo ano, Macunaíma, outro sucesso comercial. Influenciados pela estética tropicalista, realizadores e público reagiam numa nova sintonia pelo estilo barroco, mas agora brilhante e espetaculoso de lidar com a cultura brasileira que aparecia nas películas. Foi ali que ocorreu a retomada da antropofagia que Joaquim Pedro de Andrade iria explorar ao limite em Os Inconfidentes. Enquanto Glauber seguia carreira internacional, muitos cineastas tentaram reatar as pazes com o público, e outros formaram o cinema marginal, o “udigrundi”, tentando se apartar do fracasso nacional, Joaquim Pedro tentou enfrentar a ressaca da ditadura retratando o mais antigo mito republicano, Tiradentes.

Foi assim que um grande painel histórico e antropofágico foi montado na entrada dos anos 1970, usando o evento da Inconfidência Mineira como forma de retratar um antigo Brasil que ainda estava querendo “ser” independente (de Portugal e da tirania monárquica) para explorar um Brasil atual e dependente (os demônios da época eram o capitalismo internacional e a ditadura militar). Os Inconfidentes foi montado como um painel metafórico para decifração, devido ao quadro da censura local. O uso de tais metáforas foi uma estratégia recorrente dos cineastas da época para poder expressar suas idéias sem ser aprisionados pelas mesmas. Era preciso dizer o país, se comprometer com ele, sem se comprometer com a censura ditatorial. O resultado é que a complexidade do filme de Joaquim Pedro de Andrade foi tanta que a fita foi constantemente acusada de hermética, acusação não de toda injusta, mas também empobrecedora ao não aceitar que determinados trabalhos exigem mais interpretação do que outros – e isso não é um defeito.

Os Inconfidentes foi um golpe nas convenções dos filmes históricos brasileiros. Primeiro porque recusava uma narrativa clássica e realista, usando de metáforas constantes e até criando situações ficcionais que não ocorreram na época da Inconfidência. Segundo porque os personagens históricos, em especial Tiradentes, não são retratados como grandes e heróicos protagonistas da luta republicana. Finalmente ao cruzar cenas ficcionais com cenas documentárias do passado recente, a película lança o passado no presente e vice-versa, fazendo o espectador indagar sobre qual é realmente a dinâmica da história. Senão vejamos cada um desses pontos.

A Inconfidência se deu no século XVIII e um filme histórico convencional teria centrado sua narrativa na tragédia de um homem (Tiradentes) em propor uma revolução e ser traído por seus comparsas. O heroísmo seria acentuado num cenário “fiel” à época histórica, com figurinos, móveis, ruas e casas “de época” que não dariam ao espectador qualquer dúvida do universo ficcional que estava sendo visto. Contra tudo isso, Joaquim escolheu uma “fidelidade visual” (cenários, figurinos, etc.) combinado com narrativa metafórica e truncada, por vezes repleta de cenas oníricas e elipses inesperadas. A própria encenação usa muito de “teatralização”, apelando para certo expressionismo por meio de uma fotografia contrastada em muitas cenas, principalmente nas dos interrogatórios dos rebeldes, um trabalho particularmente espetacular do fotógrafo Pedro de Moraes para o filme.

Já o heroísmo dos personagens é relativizado e tornado ambíguo. A começar pelo Tiradentes vivido por José Wilker, quase interpretado como um louco e bufão, homem compromissado com uma causa, mas cheio de intempéries e rompantes, os heróis são “desfeitos” ao serem humanizados. Isso é mais evidente ainda nos outros inconfidentes, do Tomás Antônio Gonzaga (Luiz Linhares) a Alvarenga Peixoto (Carlos Kroeber), passando por Cláudio Manoel da Costa (Fernando Torres) e todos os demais. E eis um ponto chave da fita: a Inconfidência é mais um delírio de intelectuais e artistas do que um projeto político que envolvesse o povo e a transformação da colônia. Aqui a metáfora óbvia foi com a própria geração de Joaquim Pedro de Andrade, cineasta que como tantos outros, acreditava e propagava a revolução, esperando que um povo idealizado pegasse em armas e instaurasse um novo Brasil. Sua surpresa com a apatia popular frente ao Golpe Militar mostrava que o povo não foi alcançado pelo “ideal revolucionário”, e que na verdade os intelectuais e artistas brasileiros haviam se encastelado em delírios pequeno-burgueses portando-se como os cavaleiros da esperança.

Finalmente a fita conclui com uma magnífica cena de parada cívica comemorando em Ouro Preto o feriado de 21 de Abril, dia de Tiradentes. Quando Tiradentes vai ser enforcado e seu corpo cai no cadafalso, um boneco é suspenso numa festa Cívica do tempo presente. Meninas vestidas com os célebres uniformes de marinheiro desfilam pela tela em uma montagem rápida enquanto sons de batidas se fazem ouvir. Em cortes rápidos aparece carne sendo cortada e logo cenas de carne exposta preenchem o quadro completo do filme. De quem é essa carne? De Tiradentes sem dúvida, condenado a ser enforcado e esquartejado e seus pedaços espalhados, mas não somente. A carne é a dilacerada nação brasileira, destruída por líderes sonhadores e militares opressores, incapazes de enfrentar a dominação externa, seja portuguesa ou americana. Não seria o Brasil, nessa perspectiva, a carne mais barata do mercado, para frasear a canção!? Ora, perto do final da fita, uma infeliz fatia é focada em plano fixo e uma mosca pousa sobre ela.

O filme utiliza ainda de alegorias interessantes, sendo a mais estupenda delas a “aparição” da própria Rainha Maria de Portugal para os inconfidentes que rastejam a seus pés implorando-lhe perdão. Ela os condena cada um a uma pena, mas a Tiradentes reserva a pena capital por seu crime de Lesa Majestade, que além de morto e esquartejado terá sua casa derrubada e o terreno banhado de sal para que mais nada cresça. A cena magnífica conta com a interpretação soberba de Margarida Rey cujo tom de voz e postura em meio ao espetáculo dos condenados reserva uma assustadora impressão. É sabido que a rainha não veio ao Brasil para condenar os rebeldes, mas esta cena demonstra a qualidade estética e as possibilidades que o cinema oferece quando retrata um passado histórico, sem necessariamente seguir a “fidelidade” aos fatos.

O ganho de Os Inconfidentes é de um espectador mais inteligente e decifrador de mistérios históricos. A sobreposição de alegorias com cenas documentais dá oportunidade ao espectador criar sua própria visão do passado que é ali visto. Joaquim Pedro usou dos Autos da Devassa, principal e mais conhecido documento da época, e o Romanceiro da Inconfidência, obra poética de Cecília Meirelles inspirada no evento. Finalmente ao cruzar ficção com cenas documentais e a famigerada carne esquartejada, o diretor deixa claro que seu filme é menos sobre o passado em si, senão sobre a forma como o passado permanece vivo no presente e permite ver este com outros olhos.

Os Inconfidentes permanece uma das obras-primas do cinema mundial, antropofágico ao colocar em pauta quem devora a carne de nossos sacrificados. Sua resposta cruel é que é o próprio povo brasileiro. A fita consegue ser mais poderosa do que o famoso quadro Tiradentes Esquartejado de Pedro Américo. O ultraje do corpo do “herói” acaba sendo substituído pelo ultraje de uma nação inteira.

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