A próximidade temática do curta Couro de Gato (1962) de Joaquim Pedro de Andrade e do filme Gato de Madame (1956) de Agostinho Martins Pereira, estrelado por Mazzaroppi e produzido pela Vera Cruz, sugere um confronto entre duas maneiras de representar o Brasil. Em ambos, o montor central da narrativa é a posse de um gato. Em Couro de Gato, a questão central é vender os gatos para fazer tamborins para o carnaval; no filme de Mazzaroppi, o problema motor é a recompensa de 100 mil cruzeiros para quem encontrar o gato da madame.
Na nossa tradição historiográfica e da crítica cinematográfica, convencionou-se ver na Vera Cruz (filme de Mazzaroppi) e nos primórdios do Cinema Novo (curta de Joaquim Pedro) um conflito, uma separação. Para se valer de uma palavra mais comum nas questões historiográficas, via-se nos dois filmes – sobretudo naquilo que estava em jogo por trás dos filmes, nos manifestos políticos – uma ruptura. A Vera Cruz seria a indústria incipiente que adquiriu o sucesso de público, mas pecou na crítica política. O Cinema Novo, por sua vez, teria primado pela crítica política e pelo rigor ideológico, mas ficara reservado ao gozo de um público europeu politicamente erudito e, no Brasil, destinado ao limbo, num país de surdos-alienados que não estavam à altura da arte politizada.
Assistir aos filmes, partir das imagens – como insiste Marc Ferro no seu livro clássico, História e Cinema – é um bom passo para relativizarmos esses estigmas sobre a Vera Cruz e o Cinema Novo.
Nos dois filmes, há uma estrutura onde o personagem principal se relaciona com o gato e tem, em relação ao animal, uma dupla relação. Uma é a sua própria relação com o animal, que nos dois casos é de identificação e amor, cumplicidade, afetividade. Outra relação, é a composta pelo sujeito e pelo gato com a sociedade. É, esquecemos, hoje em dia, que as relações entre pets e donos estão mediadas pela sociedade, mas enfim... Nos filmes, essa relação com a sociedade, a relação homem-animal, se modifica. No curta de Joaquim Pedro, ela é de subsistência, de necessidade extrema. Quando chega o carnaval, o couro do gato se torna uma mercadoria privilegiada e provoca as necessidades dos meninos do morro. Eles irão à caça. No filme de Mazzaroppi, ao contrário, o ganho é pela proteção do gato. Os 100 mil cruzeiros serão entregues àquele que devolver o gato à madame. Essa distinção é crucial para se entender porque um filme é um drama em torno da vida do gato e o outro filme é uma comédia. No primeiro filme, o sujeito, uma criança da favela, deve matar o animal para sobreviver. No filme de Mazzaroppi, o homem do povo, o matuto vai ser seduzido pelo gato e, meio sem querer, vai se deparar com uma fortuna nas mãos, que nada mais era do que um pobre gato encontrado na rua. No filme do Cinema Novo, temos um dilema, no qual a morte é a mediadora mais provável. No filme da Vera Cruz, temos uma peripécia, um acidente, no qual Mazzaroppi se vê, mesmo sem saber, com um pobre gato, que, na verdade, é uma grande fortuna proposta pela madame.
Mas, colocando um pouco de sal nessa receita, não podemos dizer que, no curta Couro de Gato, há, apesar do dilema, uma experiência de reconhecimento da dor do animal, perpassada pela afetividade doada pelo menino? Essa experiência de dor estaria registrada pela câmera e seria o reconhecimento da dor do menino em relação ao gato, mas não apenas isso, estaríamos também reconhecendo a dor do menino em não ter escolhas frente ao dilema imposto pelo mundo em que vive. Apesar do final triste, no qual o menino entrega o gato para ser morto, estariamos experimentando, por meio da dor do menino em relação ao gato, uma compaixão nossa em relação ao menino. O curta assim, apesar de não ter um final feliz, propõe um reconhecimento do sofrimento do menino, o que é uma conquista. Sobretudo nos nossos dias, em que a exclusão social é mediada pelo BOPE, torna-se urgente e feliz um filme que produz um reconhecimento da dor do outro, um pesar pela ausência de escolhas e pelo trauma de um outro.
Do mesmo modo, pode-se dizer que, na salvaguarda do gato por Mazzaroppi, não há um percurso onde o matuto, o homem do povo, se resigna com a sociedade em que vive. Mazzaroppi é extremamento crítico com o gangesters (como ele mesmo fala, a língua gostosa do povo, como dizia Oswald de Andrade), com os espíritas ou com a alta burguesia e a madame. Transformar a sociedade é outra história; mas, de fato, a atitude de Mazzaroppi é de não se seduzir com os detentores do poder. Dos 100 mil cruzeiros, só 20 vão para Mazzaroppi, pois ele tem que atender a toda uma gama de parasitas-burgueses que lhe retiram a maior parte da recompensa – seguradoras, publicitários, etc. Desses 20 mil, uma parte o matuto doa para os meninos engraxates (muitos próximos ao menino de Couro de Gato) que o ajudaram na epópeia com o gato. Desse modo, Mazzaroppi rechaça os valores burgueses – estruturados no trabalho e na acumulação – e milita pelo ócio e pelo desprendimento com o valor de troca. Faz, assim, não uma comédia conformada, mas uma comédia que coloca o riso como um escárnio dos valores burgueses, expressos no filme pelo mundo da madame e dos gangesters (como afirma o personagem).
Daí, por uma temática comum e caminho distintos, ambos os filmes acabam por criticar a realidade brasileira de diferentes formas. Essas formas possuem distinções que necessitam ser reconhecidas na sua diversidade, mas menos para atestar uma oposição estanque e mais para sugerir a sua complementaridade.
Na nossa tradição historiográfica e da crítica cinematográfica, convencionou-se ver na Vera Cruz (filme de Mazzaroppi) e nos primórdios do Cinema Novo (curta de Joaquim Pedro) um conflito, uma separação. Para se valer de uma palavra mais comum nas questões historiográficas, via-se nos dois filmes – sobretudo naquilo que estava em jogo por trás dos filmes, nos manifestos políticos – uma ruptura. A Vera Cruz seria a indústria incipiente que adquiriu o sucesso de público, mas pecou na crítica política. O Cinema Novo, por sua vez, teria primado pela crítica política e pelo rigor ideológico, mas ficara reservado ao gozo de um público europeu politicamente erudito e, no Brasil, destinado ao limbo, num país de surdos-alienados que não estavam à altura da arte politizada.
Assistir aos filmes, partir das imagens – como insiste Marc Ferro no seu livro clássico, História e Cinema – é um bom passo para relativizarmos esses estigmas sobre a Vera Cruz e o Cinema Novo.
Nos dois filmes, há uma estrutura onde o personagem principal se relaciona com o gato e tem, em relação ao animal, uma dupla relação. Uma é a sua própria relação com o animal, que nos dois casos é de identificação e amor, cumplicidade, afetividade. Outra relação, é a composta pelo sujeito e pelo gato com a sociedade. É, esquecemos, hoje em dia, que as relações entre pets e donos estão mediadas pela sociedade, mas enfim... Nos filmes, essa relação com a sociedade, a relação homem-animal, se modifica. No curta de Joaquim Pedro, ela é de subsistência, de necessidade extrema. Quando chega o carnaval, o couro do gato se torna uma mercadoria privilegiada e provoca as necessidades dos meninos do morro. Eles irão à caça. No filme de Mazzaroppi, ao contrário, o ganho é pela proteção do gato. Os 100 mil cruzeiros serão entregues àquele que devolver o gato à madame. Essa distinção é crucial para se entender porque um filme é um drama em torno da vida do gato e o outro filme é uma comédia. No primeiro filme, o sujeito, uma criança da favela, deve matar o animal para sobreviver. No filme de Mazzaroppi, o homem do povo, o matuto vai ser seduzido pelo gato e, meio sem querer, vai se deparar com uma fortuna nas mãos, que nada mais era do que um pobre gato encontrado na rua. No filme do Cinema Novo, temos um dilema, no qual a morte é a mediadora mais provável. No filme da Vera Cruz, temos uma peripécia, um acidente, no qual Mazzaroppi se vê, mesmo sem saber, com um pobre gato, que, na verdade, é uma grande fortuna proposta pela madame.
Mas, colocando um pouco de sal nessa receita, não podemos dizer que, no curta Couro de Gato, há, apesar do dilema, uma experiência de reconhecimento da dor do animal, perpassada pela afetividade doada pelo menino? Essa experiência de dor estaria registrada pela câmera e seria o reconhecimento da dor do menino em relação ao gato, mas não apenas isso, estaríamos também reconhecendo a dor do menino em não ter escolhas frente ao dilema imposto pelo mundo em que vive. Apesar do final triste, no qual o menino entrega o gato para ser morto, estariamos experimentando, por meio da dor do menino em relação ao gato, uma compaixão nossa em relação ao menino. O curta assim, apesar de não ter um final feliz, propõe um reconhecimento do sofrimento do menino, o que é uma conquista. Sobretudo nos nossos dias, em que a exclusão social é mediada pelo BOPE, torna-se urgente e feliz um filme que produz um reconhecimento da dor do outro, um pesar pela ausência de escolhas e pelo trauma de um outro.
Do mesmo modo, pode-se dizer que, na salvaguarda do gato por Mazzaroppi, não há um percurso onde o matuto, o homem do povo, se resigna com a sociedade em que vive. Mazzaroppi é extremamento crítico com o gangesters (como ele mesmo fala, a língua gostosa do povo, como dizia Oswald de Andrade), com os espíritas ou com a alta burguesia e a madame. Transformar a sociedade é outra história; mas, de fato, a atitude de Mazzaroppi é de não se seduzir com os detentores do poder. Dos 100 mil cruzeiros, só 20 vão para Mazzaroppi, pois ele tem que atender a toda uma gama de parasitas-burgueses que lhe retiram a maior parte da recompensa – seguradoras, publicitários, etc. Desses 20 mil, uma parte o matuto doa para os meninos engraxates (muitos próximos ao menino de Couro de Gato) que o ajudaram na epópeia com o gato. Desse modo, Mazzaroppi rechaça os valores burgueses – estruturados no trabalho e na acumulação – e milita pelo ócio e pelo desprendimento com o valor de troca. Faz, assim, não uma comédia conformada, mas uma comédia que coloca o riso como um escárnio dos valores burgueses, expressos no filme pelo mundo da madame e dos gangesters (como afirma o personagem).
Daí, por uma temática comum e caminho distintos, ambos os filmes acabam por criticar a realidade brasileira de diferentes formas. Essas formas possuem distinções que necessitam ser reconhecidas na sua diversidade, mas menos para atestar uma oposição estanque e mais para sugerir a sua complementaridade.
2 comentários:
Vi os dois filmes este ano. O curta no DVD "O padre e a moça" e o longa na TV Brasil. Gostei de ambos.
No caso do filme com Mazzaroppi, ri muito. No meio "intelectualizado", acho que cometi uma heresia. Pois temos que ser cosmopolitas. Traduzindo cosmopolita na linguagem de Nelson Rodrigues, temos de aceitar nossa condição de vira-latas. No meio "intelectualizado", tal aceitação se passa como "erudição". Em outras palavras, as leituras que fazemos de "cosmopolitismo" e "erudição" são diversas, dependendo do modo que focamos, mudamos o juízo de valor.
Por isso mesmo gostei do uso "gangesters" no texto. Aceitar o modo de falar é algo em falta. Se os modernistas sofreram em 22, sofreriam muito hoje em dia. Mostrando como o paradigma que eles tentaram quebrar ainda resiste. Talvez por isso Elomar, um gênio, continua marginal na música popular brasileira, outra torre de marfim da cultura brasileira.
Ótimo texto. E a analogia entre os dois filme tá ótima.
Como faço para ver este curta? Consigo no youtube??? Obrigado
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