Na década de 50, a Cidade da Bahia vivia uma efervescência poucas vezes vista, de modo que, no cinema, mesmo que Glauber Rocha não tivesse existido, a Bahia já teria se inscrito na história mundial, com autores como Rex Schindler (colaborador, aliás, de Glauber), Sganzerla e Edgar Navarro, e obras como A Grande Feira e Tocaia No Asfalto.
Deste grupo, uma figura solitária pairava na sétima arte, como talvez, o maior formador de público e crítico de cinema que o Brasil jamais conheceu: Dr. Walter da Silveira, advogado trabalhista ligado ao PTB de Vargas. O Cineclube de Walter, no cinema que anos depois levaria o nome de Glauber, formou-se não só a geração que viria a fazer o Cinema Novo e o Udigrudi, como toda a geração seguinte na Bahia. Walter formou até a geração que não o conheceu vivo, como este que vos escreve, e cuja devoção religiosa a religião da luz surgiu na sala pública que leva seu nome, na Biblioteca Estadual dos Barris.
Este processo, no qual se dizia que Salvador não seria mais um balneário carioca, aconteceu não por acaso concomitantemente com a eleição de Antonio Baobino para o governo estadual, rompendo com a UDN de Juracy Magalhães, e retomando o projeto varguista/desenvolvimentista de Octávio Mangabeira. O principal efeito econômico disso se deu através da figura de Rômulo Almeida, alçado a Secretaria da Fazenda, e sem o que a base infra-estrutural desta virada não seria possível.
É neste contexto que o jovem Glauber Rocha chega a Salvador, vindo de Vitória da Conquista (cidade que por pouco não é mineira), então com 19 anos de idade. Uma cidade no auge do seu dinamismo, especialmente no cinema. Porque é preciso lembrar que Glauber (a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol) causa um “efeito Fernando Pessoa” no cinema baiano. O modernismo de Portugal teria, sem Fernando Pessoa, nomes de envergadura mundial como Mario Sá Carneiro, Almada Negreiros, Casais Monteiro, José Régio – mas a figura maiúscula de Pessoa acabou ofuscando a todos, em quantidade e qualidade da obra.
Diante da existência de Glauber, tendemos a esquecer os outros autores importantíssimos de então, já citados aqui.
Se começo o presente ensaio com esta panorâmica da economia cultural do Recôncavo de então, não é por acaso, e nem é meramente explicativo. Hoje, vivemos situação similar, e é nesse sentido que a figura de Glauber ganha novos significados. Depois de passarmos quase duas décadas sob a mediocridade cultural tipo exportação da Axé Music, só agora a cidade está se abrindo para uma pluralidade que Recife, por exemplo, alcançou a mais de década (em parte porque proibiu legalmente a entrada da industria fast-food musical da Bahia de então). Este processo se dá concomitantemente com a derrocada recente do carlismo, que o acelera – embora tal derrocada não seja sua causa, antes seu efeito.
Contudo, há algumas diferenças marcantes entre o processo vivido durante Antonio Baobino, e agora, no fim do carlismo. A começar, pelo óbvio: lá não se tratava de uma retomada, como hoje. Isso trás conseqüências. Nos 50-60, tratava-se de um projeto algo iluminista/positivista de Progresso, bem dentro do clima dos Anos JK – projeto esse que se era critico ao arrasa-quarteirão pseudo-modernista e ecletista tardio de J. J. Seabra, mantinha a idéia de patrimônio barroco apenas no que tange a preservação arquitetônica.
Não entrava em jogo ali a multietnicidade própria nossa, nem a profunda religiosidade anti-clerical tipicamente baiana. Era como se a Bahia tivesse de ser uma cidade arrojada, que mantém suas igrejas e terreiros como peças de museu – e não como parte viva e intestina dela. Modernizar a Bahia tinha como preço fazer com que ela deixasse de ser barroca, negra, pós-colonial.
Definitivamente, este não parece ser o contexto atual. Se retoma-se o projeto baobiniano, é levando em conta a nossa herança diaspórica de mais de uma cultura, negando-se a seguir o padrão cerebral de Recife, embora dialogando com ele – e embora rejeitando o imperialismo paulista a que o axé-tipo-exportação atendeu.
É no tocante a criticidade barroca em relação ao projeto modernista que o primeiro filme de Glauber, Barravento, chama atenção. Logo nas primeiras cenas se nota que não está ali a “câmera na mão com idéias na cabeça”: o filme tem roteiro linear, sem espaço para o improviso que a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol se tornará central no modo de produção glauberiano; a câmera não treme, está quase sempre parada, e sua maestria aparece mais na decupagem e no recorte cênico do que na mobilidade da mesma.
Desde que assisti Barravento pela primeira vez (em película, e aliás na Sala Walter da Silveira), chamou-me atenção como os recursos de imagem neste longa são mais próximos da escola do Realismo Poético da Pathé de 1930, do que da Nouvelle Vague ou do Realismo Social italiano (que seriam suas referências ao longo de sua obra). Há uma cena especialmente que parece Jean Renoir: a câmera filma apenas duas mãos que longamente remendam uma rede de pesca, sob uma luz forte e pictórica. É o recurso de sinédoque, de tomar a parte pelo todo, tão comum ao cinema francês pré-vague – que sendo popular, mas de poucos recursos (devido a Guerra), tinha de se prender a detalhes, e não ao cenário.
Renoir comparece também no roteiro, de uma crítica social quase naturalista, platiforme, com vilões e mocinhos bem ao gosto de Emile Zola tardio, que me faz lembrar A Besta Humana. Pode-se argumentar que o roteiro é esquematicamente marxista, e sendo na beira-mar evoca A Terra Treme, do Visconti realista-didático. Mas até nisso poderíamos taxar Barravento de um filme Iluminista.
Uso este termo para contrapor justamente uma observação que Jean Renoir fez a Glauber Rocha sobre Terra em Transe. Renoir pergunta em que cidade do Recôncavo Terra em Transe foi filmado. Glauber diz que foi em Minas, Ouro Preto. Renoir diz: “não diria: é um filme tão barroco que mesmo feito em Minas, continua sendo baiano”. Entendo com isso não uma referência a arquitetura barroca do cenário (neste sentido, Minas também é barroca, embora de um barroco esquemático, tardio, rural, algo entre o maneirismo e o rococó – especialmente, um barroco sem ordens religiosas, o que parece um contra-senso). Antes, compreendo que Renoir aponta para dois recursos que Glauber, e só Glauber, soube imprimir ao cinema de Salvador: a câmera que se move em volutas, causando surpresas ao olhar e inclusive deixando que o diretor ou camera-man se surpreendam com o imprevisto; e, do ponto de vista do conteúdo, uma disposição sempre ao contraditório, ao dialético, de modo que toda verdade seja vazada – inclusive a verdade da “revolução”.
Ora, em Barravento isso é tudo que não acontece! É de uma linearidade quase infantil o seu roteiro. Tomam-se aforismos materialista-históricos como axiomas a serem demonstrados: “a religião é o ópio do povo” – então todas as religiões, inclusive o candomblé, são alienantes. Apenas o pescador que morou na cidade e voltou tem “consciência crítica de classe” (curiosamente, é o único que não mais trabalhar com as mãos – e nem nisso Glauber vê qualquer indicio de alienação: alienados são os pescadores manufatureiros...). E por aí vai.
Este discurso é, em boa medida, o mais a anti-reconvexo possível. Se por um lado esse “heroísmo solitário em comunismo didático e simplório” é típico de personagens (detestáveis) de Jorge Amado, por outro é Jorge Amado (como ensaísta e repórter – no que ele tinha de melhor) que nos pode esclarecer. No seu Bahia de Todos os Santos, nos diz: o baiano (de Salvador) é profundamente religioso (em mais de uma religião ao mesmo tempo), e justo por isso anti-hierárquico e anti-eclesiástico. A figura central do catolicismo do Recôncavo é um padre jesuíta anti-papista, julgado pela Inquisição três vezes: Antonio Vieira. Dito de outra forma, poderíamos entender a partir de Jorge Amado, que em Salvador a religião é antes fator de mobilização social, de se opor ao poder instituído, e não um anestésico para as massas: isso é mais válido para o candomblé, e menos para o catolicismo – entretanto, valido para ambos.
A partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber se apercebe disso. Note-se que o catolicismo popular do sertão é um dos fatores de revolta contra “os poderosos” no filme. Em Barravento, até o candomblé é tomado (erradamente, ao meu ver) como fator de aquiescência.
Não obstante, esse Iluminismo de Barravento mostra um autor que aos 19 anos dominava as melhores soluções semiológicas na imagem em movimento, comparáveis, como disse, a Jean Renoir. Não tinha contudo achado voz própria, de autor neo-barroco ou pós-barroco (anti-iluminista portanto, crítico do projeto moderno qualquer que seja ele, inclusive o modernista no qual se insere), no sentido inclusive de pós-diaspórico e pós-colonial. Barravento é um dos grandes filmes do cinema baiano de então, imageticamente melhor do que A Grande Feira e Tocaia no Asfalto (mas não em termos de roteiro, estes dois mais intrincados e de cunho verdadeiramente popular); mas é um filme feito por Glauber, sem ser um filme de Glauber. Não estão ali suas marcas principais: a dialética da imagem e das idéias, uma derivando em outra sempre contraditória em relação a anterior. O Glauber capaz de admirar ao mesmo tempo Jango e Geisel, e criticar igualmente Baobino e Juracy, só surgirá depois do Golpe de 1964 – que, sendo nossa segunda maior tragédia, é por isso mesmo nossa maior possibilidade de retificação.
Texto escrito por Lucas Jerzy, convidado especial do DDF.
Lucas Jerzy - lucasjerzy@gmail.com
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