O cineasta metido a crítico que escreve estas linhas confessa sua dupla admiração pelo artista finlandês e o escritor sul-africano. Há um longo caminho entre Helsinki e Cidade do Cabo, mas ambos autores são vizinhos silenciosos, discretos, tanto que não se conheciam até agora. O que o finlandês Kaurismäki adapte para a tela ao sul-africano Coetzee não supõe mais estranheza que a que se desprende de cada um deles por separado. Diário de um ano ruim é um filme respeitosamente desesperado, de uma tristeza elegante, com um personagem razoavelmente apaixonado, um tal JC, que é trasunto do próprio Coetzee na novela - ainda que o autor se apresente a si mesmo mais velho do que é, com 10 anos mais -. No entanto, Kaurismäki confia o papel a um ator com menos anos, que não aparenta nem sequer os sessenta e tanto do novelista. O filme transpõe o argumento da novela mais do que como uma adaptação baseada na fidelidade ou infidelidade ao texto, com vínculos de verdadeira amizade para ele.
O argumento é mais ou menos este: o escritor JC se sente atraído por uma jovem. A contrata como datilógrafa, pese a sua evidente imperícia, para tê-la cerca. Anya, que é como se chama a jovem, conta-lhe a seu noivo Alan seu trabalho com o escritor, que consiste em deixar-se olhar enquanto passa ao computador os escritos deste. O escritor jamais lhe faz nenhum avanço, nem lhe diz nada que possa interpretar-se como uma tentativa. JC tem um olhar frio, correto, mas se lhe nota uma rédea interior, um freio invisível. Alan concede a idéia de roubar ao escritor, de extorquir-lhe e acabar com seu olhar frio, imperioso, perversamente correto.
O texto original de Coetzee tem uma curiosa disposição tipográfica, por andares na mesma página. Acima está o que dita JC; abaixo, o que pensa e faz o mesmo JC, e um andar ainda mais abaixo aparece a relação violentamente sexual entre Anya e seu colega Alan.
Kaurismäki não divide a tela em partes para traspassar isto a imagens. Simplesmente situa a ação em dois apartamentos, um em cima do outro. E muda de uma cena a outra segundo lhe convém, em montagem paralela. Quando quer dar as cenas do casal simultaneamente com as cenas de JC, abre-se a um plano geral, com os dois apartamentos ao mesmo tempo. A simplicidade deste procedimento comprazerá a alguns e assombrará a outros. A dignidade dos personagens da narração, inclusive nos momentos mais baixos de seu comportamento, sempre está a salvo. Se cada um de nós escava no profundo de seu coração, encontrará alguma classe de culpa. Mas se todos cometemos uma falta, um delito, isso nos isenta ou nos condena por igual. Sou culpado ergo sum. Coetzee e Kaurismäki efetuam seu ponto de encontro em Dostoievski. Crime e castigo foi adaptado por Kaurismäki faz uns anos, e, a sua vez, Coetzee confessa ler e reler, e ainda saltar-se as lágrimas, com Dostoievski, sobre o que escreveu a novela O mestre de Petersburgo. Não, não é fácil julgar uma película como Diário de um ano ruim, nem muito menos a novela preexistente ao filme. Se trata de um desses casos em que a narração mesma é mais rica conceitualmente do que a estrita reflexão, por muito rigorosa e indagatória que esta seja. A narração se medita e raciocina melhor no decorrer mesmo de sua andadura que abstraída de seu próprio caminhar. A crítica, por muito iluminadora que pretenda ser, afasta-nos destes personagens complexos mas simplesmente contados, cruéis e tímidos. Aqui, narrar é pensar sem deter-se, sem a cortesia novelística com que um autor costuma acompanhar a seus personagens. O verossímil se substitui por uma verdade que é como uma porrada na nuca.
É um filme seco, sóbrio, mas não sombrio. Há uma luz especial, colorista. No meio dessa secura, qualquer ação cotidiana - sacar o bilhete de metrô, abrir uma janela, acender um cigarro - a agradecemos como uma festa. Que singelo pode ser viver, mas que misterioso.
Texto escrito por Manuel Gutiérrez Aragón, extraído e traduzido do jornal espanhol "El País" do dia 17/07/2008.
O argumento é mais ou menos este: o escritor JC se sente atraído por uma jovem. A contrata como datilógrafa, pese a sua evidente imperícia, para tê-la cerca. Anya, que é como se chama a jovem, conta-lhe a seu noivo Alan seu trabalho com o escritor, que consiste em deixar-se olhar enquanto passa ao computador os escritos deste. O escritor jamais lhe faz nenhum avanço, nem lhe diz nada que possa interpretar-se como uma tentativa. JC tem um olhar frio, correto, mas se lhe nota uma rédea interior, um freio invisível. Alan concede a idéia de roubar ao escritor, de extorquir-lhe e acabar com seu olhar frio, imperioso, perversamente correto.
O texto original de Coetzee tem uma curiosa disposição tipográfica, por andares na mesma página. Acima está o que dita JC; abaixo, o que pensa e faz o mesmo JC, e um andar ainda mais abaixo aparece a relação violentamente sexual entre Anya e seu colega Alan.
Kaurismäki não divide a tela em partes para traspassar isto a imagens. Simplesmente situa a ação em dois apartamentos, um em cima do outro. E muda de uma cena a outra segundo lhe convém, em montagem paralela. Quando quer dar as cenas do casal simultaneamente com as cenas de JC, abre-se a um plano geral, com os dois apartamentos ao mesmo tempo. A simplicidade deste procedimento comprazerá a alguns e assombrará a outros. A dignidade dos personagens da narração, inclusive nos momentos mais baixos de seu comportamento, sempre está a salvo. Se cada um de nós escava no profundo de seu coração, encontrará alguma classe de culpa. Mas se todos cometemos uma falta, um delito, isso nos isenta ou nos condena por igual. Sou culpado ergo sum. Coetzee e Kaurismäki efetuam seu ponto de encontro em Dostoievski. Crime e castigo foi adaptado por Kaurismäki faz uns anos, e, a sua vez, Coetzee confessa ler e reler, e ainda saltar-se as lágrimas, com Dostoievski, sobre o que escreveu a novela O mestre de Petersburgo. Não, não é fácil julgar uma película como Diário de um ano ruim, nem muito menos a novela preexistente ao filme. Se trata de um desses casos em que a narração mesma é mais rica conceitualmente do que a estrita reflexão, por muito rigorosa e indagatória que esta seja. A narração se medita e raciocina melhor no decorrer mesmo de sua andadura que abstraída de seu próprio caminhar. A crítica, por muito iluminadora que pretenda ser, afasta-nos destes personagens complexos mas simplesmente contados, cruéis e tímidos. Aqui, narrar é pensar sem deter-se, sem a cortesia novelística com que um autor costuma acompanhar a seus personagens. O verossímil se substitui por uma verdade que é como uma porrada na nuca.
É um filme seco, sóbrio, mas não sombrio. Há uma luz especial, colorista. No meio dessa secura, qualquer ação cotidiana - sacar o bilhete de metrô, abrir uma janela, acender um cigarro - a agradecemos como uma festa. Que singelo pode ser viver, mas que misterioso.
Texto escrito por Manuel Gutiérrez Aragón, extraído e traduzido do jornal espanhol "El País" do dia 17/07/2008.
3 comentários:
Olá, tenho visitado frequentemente o blog. Achei bastante interessante saber da adaptação do romance "Diário de um ano ruim" de Coetzee. No entanto, estive procurando mais informações sobre o filme e não consegui encontrar nada além do que foi traduzido do jornal "El País". Será que vocês podem me ajudar nisso?
Agradeço
PS: a tradução do texto ficou um pouco truncada em diversas passagens... e o livro "O maestro de Petesburgo" foi traduzido para português como "O mestre de Petersburgo". É isso.
Obrigado pela correção.
É... Kaurismäki está longe de ser meu diretor favorito, tampouco conheço a obra de Coetzee. Mas para isso existem os sebos, não é?
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