As sociedades geralmente têm formas de dizer quem é responsável pelos artefatos por ela produzidos. O autor é uma das formas de demarcar essa origem, mas no caso do cinema isso tem sido uma questão controversa. Como colocamos no texto anterior, o autor como o concebemos hoje foi uma idéia que passou décadas se sedimentando. Em cada lugar, isso ocorreu de forma diferente. Dando continuidade à nossa reconstrução da história do autorismo, agora devemos explorar outro lugar no qual se tornou muito importante e poderoso: os Estados Unidos da América. Lá, até os anos 1950, era muito claro que o autor de um filme era tão somente o roteirista. Não havia qualquer confusão entre o papel de um roteirista e de um diretor, de forma que aquele ficava responsável pela elaboração da trama e argumento, enquanto ao segundo cabia a execução das imagens. O nome “autor” só tinha sentido em sua acepção literária e literal, ou seja, aquele que escrevia o texto - e, na boa divisão do trabalho da indústria cinematográfica americana, o responsável por isso era o roteirista.
Nos EUA havia uma perspectiva muito peculiar sobre a forma como a Arte (com “A” maiúsculo mesmo) era concebida. Embora eficientes do ponto de vista comercial, freqüentemente quando atribuíam valor artístico a algo, os norte-americanos recorriam aos aristocráticos modelos europeus da grande arte e tinham dificuldade para legitimar algumas de suas próprias produções, principalmente aquelas da chamada cultura de massa. As grandes obras de arte do cinema, quando havia, eram sempre filmes europeus e não a famigerada produção seriada de Hollywood. Todavia, um estímulo veio da Europa quando a “política dos autores” foi elaborada pelos “jovens turcos” na Cahiers du Cinema, numa revisão do cinema americano como repleto de obras de autores no sentido romântico do termo. A empreitada francesa colocava Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Nicholas Ray, Orson Welles, Samuel Fuller, Anthony Mann, Robert Aldrich e outros, entre os capazes de, através das malhas da indústria, impregnar seus filmes com sua subjetividade e visão de mundo. Viraram artistas.
Alguns poucos críticos americanos nos anos 1950 liam a Cahiers du Cinema, entre eles Andrew Sarris e o pouco conhecido Eugene Archer. Essa foi a época de grande formação de cineclubes. Um deles, fundado em Nova Iorque por Dan Talbot, chamado New Yorker, foi responsável por um movimento de propagação da idéia de autorismo nos EUA. Entre outras pessoas, trabalhava no Cineclube o então crítico em início de carreira Peter Bogdanovich. É desta época também a formação da importante revista Film Culture, na qual escrevia Sarris. Os três, Sarris, Archer e Bogdanovich discutiam juntos o cinema e eram leitores ávidos das novas idéias francesas, promovendo uma revisão e re-exibição constante dos filmes americanos. Começaram a divulgar, em críticas e no cineclube, a idéia de autorismo, incrementando a cultura cinéfila de Nova Iorque num movimento que adquiria grandes proporções através de um acontecimento aparentemente banal, uma das edições da Film Culture.
Na primavera de 1963, Andrew Sarris organizou e escreveu sozinho, mas com a ajuda de Archer, um número da Film Culture dedicado aos diretores americanos defendendo os pontos de vista do autorismo. O impacto da publicação causou reações na comunidade crítica norte-americana. Entre tantas reações, as de Dwight MacDonald, então crítico trotskista da revista Esquire, e Pauline Kael, da Film Quartely, estavam entre as mais intensas, sendo esta última particularmente ácida, chamando todos os defensores da “política dos autores” de adolescentes. Tal polêmica fez a carreira de Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, defensores mais conhecidos do autorismo, e de Pauline Kael, sua mais conhecida e competente adversária e que logo estaria escrevendo para o New Yorker.
A adesão americana ao autorismo não foi pacífica, embora tenha se afirmado definitivamente na cultura cinéfila ianque. Tanto a crítica de direita quanto de esquerda tinham severas restrições. A crítica esquerdista de Dwight MacDonald detestava os excessos de afirmação burguesa que as idéias francesas pareciam defender para o cinema status quo dos EUA. Uma empreitada das mais frutíferas foi a de Pauline Kael, que atacou diretamente o “autor” em seu famoso ensaio Criando Kane, de 1971. Neste, ela tomava um dos mitos da “política dos autores” francesa e americana, a importância de Orson Welles na trama de Cidadão Kane, e o virava do avesso, tentando mostrar que o co-roteirista Herman Mankievicz fora fundamental para a concepção do filme. Na verdade, Kael estava mais interessada em chamar atenção para os roteiristas frente o que considerava um excessivo endeusamento dos diretores. A crítica era agressiva em lembrar que o cinema era interessante porque era cinema e não uma arte obrigatória de expressão subjetiva. Para ela um filme valia por si mesmo e não por seu abstrato valor artístico ou individual.
Já os estudos fílmicos se apropriaram de forma sui generis da idéia de autoria. Misturando o autor com seu maior oponente teórico, o estruturalismo (também) francês, proliferaram-se estudos nos EUA e também na Inglaterra, as tentativas de mostrar as “recorrências temáticas” individuais nos diretores americanos. Na Inglaterra, em particular, produziu-se um texto que teve larga repercussão no outro lado do Atlântico. O maior exemplo de estudo “estruturalista do autorismo”, na verdade, foi o inglês Signos e Significação no Cinema, de 1969, obra de Peter Wollen, que se tornou um dos livros mais importantes e influentes nos estudos fílmicos do meio anglo-saxão como um todo. Sua análise comparativa dos filmes de John Ford e Howard Hawks é, até hoje, antológica.
Ora, assim como os cineastas da nouvelle vague, muitas vezes os defensores do autorismo se tornaram eles próprios cineastas ou roteiristas: Peter Bogdanovich ficou famoso ao concorrer ao Oscar de diretor com o belíssimo A Última Sessão de Cinema, de 1971, assim como o próprio Wollen dirigiu um filme chamado Penthesilea, de 1974, e co-roteirizou Profissão: Repórter com seu diretor, Michelangelo Antonioni, em 1975.
Uma nova forma de os norte-americanos verem seus próprios cineastas se formou. Estava legitimado que seus diretores eram artistas não apenas do porte dos cineastas europeus, mas também dos grandes artistas da humanidade, tais como pintores e escritores clássicos. O ofício da direção mudou de rumo, estabelecendo outro significado à realização cinematográfica.
O maior impacto da idéia de autoria nos EUA, todavia, deu-se no próprio cinema americano. Quando uma nova geração de importantes diretores começou a produzir, na década de 1970, recém-saídos dos cursos de cinema e ávidos leitores da idéia de autorismo, ela se propunha como os novos autores da América, renovando o cinema norte-americano tanto no sentido de produções mais simples, como as realizadas por Martin Scorsese e Michel Cimino, como na de obras mais grandiosas, como as de Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e Georges Lucas. Scorsese, Coppola, Spielberg, Brian De Palma se colocavam como dando continuidade à geração do autorismo de Hawks, Ford e Welles. Esses novos realizadores eram uma geração cinéfila, construída no debate de expansão do autorismo nos EUA. Scorsese, em especial, se tornou também um importante crítico e historiador americano, enquanto Coppola, Lucas e Spielberg, além de obras autorais extremamente comerciais, com dinheiro abundante, freqüentemente socorreram outros autores em tempos de crise, como fizeram com Akira Kurosawa.
O cineasta como autor, idéia imigrada da França, também se tornou um tema americano.
Nos EUA havia uma perspectiva muito peculiar sobre a forma como a Arte (com “A” maiúsculo mesmo) era concebida. Embora eficientes do ponto de vista comercial, freqüentemente quando atribuíam valor artístico a algo, os norte-americanos recorriam aos aristocráticos modelos europeus da grande arte e tinham dificuldade para legitimar algumas de suas próprias produções, principalmente aquelas da chamada cultura de massa. As grandes obras de arte do cinema, quando havia, eram sempre filmes europeus e não a famigerada produção seriada de Hollywood. Todavia, um estímulo veio da Europa quando a “política dos autores” foi elaborada pelos “jovens turcos” na Cahiers du Cinema, numa revisão do cinema americano como repleto de obras de autores no sentido romântico do termo. A empreitada francesa colocava Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Nicholas Ray, Orson Welles, Samuel Fuller, Anthony Mann, Robert Aldrich e outros, entre os capazes de, através das malhas da indústria, impregnar seus filmes com sua subjetividade e visão de mundo. Viraram artistas.
Alguns poucos críticos americanos nos anos 1950 liam a Cahiers du Cinema, entre eles Andrew Sarris e o pouco conhecido Eugene Archer. Essa foi a época de grande formação de cineclubes. Um deles, fundado em Nova Iorque por Dan Talbot, chamado New Yorker, foi responsável por um movimento de propagação da idéia de autorismo nos EUA. Entre outras pessoas, trabalhava no Cineclube o então crítico em início de carreira Peter Bogdanovich. É desta época também a formação da importante revista Film Culture, na qual escrevia Sarris. Os três, Sarris, Archer e Bogdanovich discutiam juntos o cinema e eram leitores ávidos das novas idéias francesas, promovendo uma revisão e re-exibição constante dos filmes americanos. Começaram a divulgar, em críticas e no cineclube, a idéia de autorismo, incrementando a cultura cinéfila de Nova Iorque num movimento que adquiria grandes proporções através de um acontecimento aparentemente banal, uma das edições da Film Culture.
Na primavera de 1963, Andrew Sarris organizou e escreveu sozinho, mas com a ajuda de Archer, um número da Film Culture dedicado aos diretores americanos defendendo os pontos de vista do autorismo. O impacto da publicação causou reações na comunidade crítica norte-americana. Entre tantas reações, as de Dwight MacDonald, então crítico trotskista da revista Esquire, e Pauline Kael, da Film Quartely, estavam entre as mais intensas, sendo esta última particularmente ácida, chamando todos os defensores da “política dos autores” de adolescentes. Tal polêmica fez a carreira de Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, defensores mais conhecidos do autorismo, e de Pauline Kael, sua mais conhecida e competente adversária e que logo estaria escrevendo para o New Yorker.
A adesão americana ao autorismo não foi pacífica, embora tenha se afirmado definitivamente na cultura cinéfila ianque. Tanto a crítica de direita quanto de esquerda tinham severas restrições. A crítica esquerdista de Dwight MacDonald detestava os excessos de afirmação burguesa que as idéias francesas pareciam defender para o cinema status quo dos EUA. Uma empreitada das mais frutíferas foi a de Pauline Kael, que atacou diretamente o “autor” em seu famoso ensaio Criando Kane, de 1971. Neste, ela tomava um dos mitos da “política dos autores” francesa e americana, a importância de Orson Welles na trama de Cidadão Kane, e o virava do avesso, tentando mostrar que o co-roteirista Herman Mankievicz fora fundamental para a concepção do filme. Na verdade, Kael estava mais interessada em chamar atenção para os roteiristas frente o que considerava um excessivo endeusamento dos diretores. A crítica era agressiva em lembrar que o cinema era interessante porque era cinema e não uma arte obrigatória de expressão subjetiva. Para ela um filme valia por si mesmo e não por seu abstrato valor artístico ou individual.
Já os estudos fílmicos se apropriaram de forma sui generis da idéia de autoria. Misturando o autor com seu maior oponente teórico, o estruturalismo (também) francês, proliferaram-se estudos nos EUA e também na Inglaterra, as tentativas de mostrar as “recorrências temáticas” individuais nos diretores americanos. Na Inglaterra, em particular, produziu-se um texto que teve larga repercussão no outro lado do Atlântico. O maior exemplo de estudo “estruturalista do autorismo”, na verdade, foi o inglês Signos e Significação no Cinema, de 1969, obra de Peter Wollen, que se tornou um dos livros mais importantes e influentes nos estudos fílmicos do meio anglo-saxão como um todo. Sua análise comparativa dos filmes de John Ford e Howard Hawks é, até hoje, antológica.
Ora, assim como os cineastas da nouvelle vague, muitas vezes os defensores do autorismo se tornaram eles próprios cineastas ou roteiristas: Peter Bogdanovich ficou famoso ao concorrer ao Oscar de diretor com o belíssimo A Última Sessão de Cinema, de 1971, assim como o próprio Wollen dirigiu um filme chamado Penthesilea, de 1974, e co-roteirizou Profissão: Repórter com seu diretor, Michelangelo Antonioni, em 1975.
Uma nova forma de os norte-americanos verem seus próprios cineastas se formou. Estava legitimado que seus diretores eram artistas não apenas do porte dos cineastas europeus, mas também dos grandes artistas da humanidade, tais como pintores e escritores clássicos. O ofício da direção mudou de rumo, estabelecendo outro significado à realização cinematográfica.
O maior impacto da idéia de autoria nos EUA, todavia, deu-se no próprio cinema americano. Quando uma nova geração de importantes diretores começou a produzir, na década de 1970, recém-saídos dos cursos de cinema e ávidos leitores da idéia de autorismo, ela se propunha como os novos autores da América, renovando o cinema norte-americano tanto no sentido de produções mais simples, como as realizadas por Martin Scorsese e Michel Cimino, como na de obras mais grandiosas, como as de Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e Georges Lucas. Scorsese, Coppola, Spielberg, Brian De Palma se colocavam como dando continuidade à geração do autorismo de Hawks, Ford e Welles. Esses novos realizadores eram uma geração cinéfila, construída no debate de expansão do autorismo nos EUA. Scorsese, em especial, se tornou também um importante crítico e historiador americano, enquanto Coppola, Lucas e Spielberg, além de obras autorais extremamente comerciais, com dinheiro abundante, freqüentemente socorreram outros autores em tempos de crise, como fizeram com Akira Kurosawa.
O cineasta como autor, idéia imigrada da França, também se tornou um tema americano.
2 comentários:
Não há palavras, além destas, pra expressar o quanto este texto está bom!
Só me pergunto se a última geração de "autores" do cinema estadunidense é a da década de 1970.
Eu considero Quentin Tarantino um "autor". Mas será que ele faz parte de uma geração ou é apenas um fenômeno isolado?
Ou seja, no cinema estadunidense atual, há espaço para o surgimento de uma geração de "autores" ou apenas espaço para o surgimento de "autores" isolados entre si?
Não sei. O tempo dirá.
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