
Christopher Nolan, o diretor, surpreendeu ao conseguir juntar com sucesso elementos de três histórias muito bem escritas e antológicas da cultura norte-americana nas quais, entre outras coisas, se encontram Batman e o Coringa: Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller; A Piada Mortal, de Alan Moore; e Asilo Arkhan, de Grant Morisson. Os que têm cultura de gibis sabem o que significam essas histórias para o contexto do quadrinho americano e mundial. O novo filme trouxe de volta algumas das coisas mais interessantes sob um embate que os anos 1980 tornou mítico: o encontro de uma força invencível (Coringa) com um objeto irremovível (Batman), um dos corolários mais usados nos gibis americanos para uma série de HQs, mas que serve magnificamente bem (chegando a ser usado no próprio filme) neste caso.
Há tantas diferenças entre filmes e HQs que seria desnecessário frisar. Talvez a visualmente mais gritante seja mesmo a brilhante, ainda que perigosa, Gotham City, sem a névoa que sempre a caracterizou, sem ter encarnada no seu céu cinzento a condição de lado escuro imaginário de New York. A outra é, novamente, a perda de interesse pelo Batman em si, esse personagem decidido e profundo. O Coringa (novamente) ficou tão forte na fita, que o impacto de sua existência na vida de Batman não foi avaliado, como ocorre nos gibis. Uma pena, pois era justamente a evidência de Bruce Wayne como um arquiteto profundo e consciente de sua própria loucura sui generis que o torna um personagem formidável.

Diria mesmo que Coringa se compreende como o dono do mundo: sua Gotham, seu Batman, com os quais pode construir sua auto-imagem e se divertir com ela. Sem eles, sem este espelho, desapareceria. Ele só pode ser invencível na medida em que encontra uma força que o desafia, algo irremovível. Não é esta uma qualidade da ordem: tentar ser estática, pousar o sentido? Não é essa uma característica do caos: forçar a mudança, afanar o sentido? O empreendimento do personagem de Heath Ledger é o mesmo sempre: divertir-se com a inutilidade de sentido alheia. Mostrar que um dia ruim pode transformar um herói num monstro, como ocorre com Duas Caras. E o objetivo de Batman é evitar isso, mostrando que pode ser só com o Coringa, ou com alguns outros, que dias ruins mudam homens em bestas, mas não com todos. O jogo mítico dos personagens tornou-se, no novo filme, um embate sobre o viver em sociedade.
Novamente o problema foi a redução de Bruce Wayne a um rico esperto que gosta de dar pancada. Um neurótico da ordem de Coringa, mas dotado de menor auto-consciência. O inimigo o joga no espelho, mas o filme aproveita pouco isso, transformando Bruce Wayne num crente inveterado do espírito americano, que não cansa de tentar ajudar aos outros. Um escoteiro e justiceiro. Uma pena: seria mais rico se o filme reconhecesse o fato de que não há alternativa para Batman, que sua boa vontade é só um aspecto de sua própria loucura e que se Coringa quer ver o circo pegar fogo, como diz sabiamente Alfred, para Bruce só resta sua vingança, cujo único limite é a regra de não matar.

Um comentário:
Ótimo texto.
Acho que TDK é o melhor filme de super-herói de todos os tempos.
Um roteiro invejável, digno de um Poderoso Chefão. O filme é todo fundamentado em opostos, e em contradições; sendo a mais básica delas a oposição palhaço-mal-caos/morcego-bem-ordem, o que insere uma antítese em cada parte da oposição (palhaço deveria ser o bem, o colorido; morcego deveria ser o mal, o negro).
Nesse contexto, o duas-caras se encaixa perfeitamente; e o filme se encarrega de deixar isso claro quando o discurso de Gordon fala do white knight e do dark knight.
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