17 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel de Oliveira: "VALE ABRAÃO"

No início da década de 1990 Manoel de Oliveira começou a trabalhar junto com Augustina Bessa-Luís para contar novamente a estória de Emma Bovary, imortalizada no romance Madame Bovary, de Flaubert. Todavia a idéia de Oliveira era menos adaptar o romance do que re-escrever a fábula com nova forma. Por isso pediu a ajuda de sua querida amiga, a romancista Bessa-Luís. Escreveram a quatro mãos o roteiro, do qual surgiria não só um novo filme do cineasta, mas também um romance homônimo de Augustina. O filme era Vale Abraão, lançado em 1993.

Vale Abraão poderia ser chamado de um filme pós-moderno (a acusação poderia ser feita ao romance também) por realizar jogadas metalingüísticas, afinal trata-se da estória de uma nova Ema, que possui uma trajetória semelhante a personagem do romance do século XIX, sendo leitora do próprio Madame Bovary. Todavia, acusar a película de pós-modernismo é não perceber como Oliveira se afasta da maior parte da produção do cinema que lhe era contemporâneo e do próprio romance oitocentista.

Primeiro porque a Ema do português é mais sólida, densa e inteligente. Na interpretação de Leonor Oliveira, uma das atrizes favoritas de Manoel, Ema adquire uma densidade assustadora, como fazem questão de perceber a maioria dos outros personagens do filme. Ema é mostrada como uma criatura sedutora e poderosa, cuja condição de manca acentua a ambigüidade como mulher que deseja uma vida intensa e não somente ser a rica esposa refinada e desocupada de seu marido médico. Por se casar com Carlo Paiva (o estupendo Luís Miguel Cintra), médico bem sucedido, o qual não ama, investe na procura de amantes menos para preencher um vazio existencial do que por uma necessidade de viver suas próprias contradições. Desde criança, a personagem é vista por tias, pretendentes, amigos e amantes como um perigo. Os homens a cobiçam pela sua ardência, as mulheres a criticam por sua beleza. No final, exceto por Paiva, que realmente a amava, fica evidente que todos desejam algo da nova bovarinha, mas só conseguem pedaços de tudo. Todos, no fundo, parecem temê-la um pouco.

Só que isso não significa que Ema saia vitoriosa. O filme acompanha sua infância e casamento, encontros com amigos da conservadora alta sociedade do norte de Portugal, sua maternidade, enfim, segue sempre auxiliado por um irônico, onisciente, mas nada cínico narrador em voz over. Por meio dele podemos saber de sua insatisfação, perceber seus deslizes e incoerências. As vezes, a fita desvia da protagonista para mostrar muitos personagens relacionados a trama principal. Assim Oliveira faz uma radiografia do conservadorismo português frisando menos a mente pequena daquela sociedade, mas deixando evidente a profundidade que existe, os sentidos da represália à Ema, aquilo que ela ameaça, o por quê disso e o que ela realmente representa.

Inesquecível neste sentido o encontro de Paiva com Maria do Loreto, participação curta, mas espetacular da atriz Glória de Matos. Paiva fora encontrar a velha senhora e escritora que a leva por sua bela propriedade até uma pequena casa que ela própria havia construído para que seu marido pudesse se encontrar com suas amantes. Lá Maria dá conselhos a Paiva sobre o que são homens e mulheres, tendo como objetivo falar de Ema, e acaba colocando sua concepção da condição feminina: “Que quer dizer saída da costela de Adão? Que ela é algo de semi-real, que é nascida de um significado incompleto, como um costado a que falta uma costela. A sua diferenciação fica sempre imaginária como ‘coisas de mulher’, como um organismo que absorve o outro e o expulsa por ser estranho”. Aqui se reconhece a pena da grande romancista portuguesa, Augustina Bessa-Luís, que fez do romance algo tão lindo quanto o filme.

A fita poderia ser facilmente acusada de ser muito literária pela importância que o texto do narrador ou mesmo das personagens têm na trama. Todavia o aparente “descompasso” entre a câmera quase sempre estática da fita com o texto corrente, os enquadramentos que mostra quadros incompletos da ação na tela enquanto o narrador inunda o espectador de informações, fazem com que a construção narrativa de Vale Abraão acentue a construção imaginária de duas coisas importantes no cinema de Manoel de Oliveira: o tempo humano da trama e a investigação das personagens e de seus sentidos no mundo em que se encontram. Há um enigma a ser resolvido na película: qual o papel de Ema em Vale Abraão, como ela torce as pessoas e o mundo ao seu redor?

Neste sentido o filme vai construindo entre movimentos de câmera, situações e narrações as contradições de subversão de Ema no norte de Portugal. Todavia essa subversão jamais deve ser destruída, mas sim tolerada, pois fornece a uma sociedade culpabilizadora a oportunidade de responsabilizar alguém por ultrapassar os seus limites e se libertar de seus próprios pecados ao apontar a falha alheia. E apesar disso, o sentido daquele mundo humano nunca é completo, não há como chegar a conclusões definitivas sobre Ema ou Paiva ou Loreto ou quem quer que seja. Todos são personagens intrigantes e aprofundados, dos quais a fita mostra muitas coisas, mas jamais todas, sempre surpreendendo em algum momento, sempre introduzindo algum dado novo que nos faz refazer o mundo da trama.

Na saga de Ema nos espaços do vale do Douro em Portugal ninguém sai redimido e muito menos culpado, ao menos pela própria película. O olhar da fita é complacente em sua compreensão pelos personagens, interessado em mostrar-lhes enigmaticamente entre si mesmos e para os espectadores. E talvez o enigma seja a metáfora ideal pela qual Oliveira interroga o mundo com suas imagens. O grande enigma deste filme poderia ser, quem sabe, a mulher, vista pela lente de uma lente masculina (Manoel), mas com o auxílio de um olhar feminino (Augustina), ambos conservadores em muitos sentidos, mas nem por isso desatentos às contradições dos próprios conservadorismos.

Vale Abraão permanece uma das obras máximas de Manoel de Oliveira. Não carrega o lirismo de Viagem ao Princípio do Mundo (1996) ou a amorosidade magnífica de A Carta (1998). Aproxima-se talvez mais da noção de investigação que permeia Um Filme Falado (2004), só que sem a bela veia didática deste. Fica a impressão sempre de que a maturidade e a velhice de Oliveira (que já tinha 85 anos quando fez o filme) tornaram-se os melhores temperos pelos quais cada plano seu se torna uma tentativa de interrogar a vida. E como disse mestre Oliveira, que agora completa 100 anos, cada plano é um risco, como a própria vida.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns pelo blog, realmente tem muita coisa interessante sobre cinema por aqui.

 
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