27 de ago. de 2008

Glauber Rocha: "TERRA EM TRANSE"

Em qualquer conversa informal, pouco importa o ambiente, se nos corredores das universidades, nas mesas dos bares, nas ante-salas dos cinemas, nos fóruns da internet, ao citarmos o nome de Glauber Rocha, escutaremos opiniões seguras, como se todos conhecessem sua obra completa, os longas-metragens e os curtas-metragens, além de seus roteiros, não deixando de lado, obviamente, seus textos críticos, seu romance Riverão Sussuarana e sua personalidade. É para assustar os inseguros, desestimular os que querem conversar tranquilamente sobre cinema brasileiro e animar os mais ferrenhos polemistas. É uma festa, pena não ser de congraçamento, pois só há inimigos, e, por mais que queiramos ser ponderados, destacando pontos positivos e apontando os negativos, mostrando o que nos agrada e o que não, acabamos por escolher um lado do campo de batalha, porque sabemos que o pior lugar para ficarmos em uma guerra é no meio do fogo cruzado.


Eu, neste espaço, neste agosto (mesmo mês da morte do autor baiano), apresento minhas armas e, como não sou mercenário a movimentar-me como um pêndulo entre os dois lados do campo de batalha, visando apenas benefício pessoal, posiciono-me ao lado dos que veneram Glauber Rocha. Mas esclarecerei algumas coisas, tentei ler Riverão Sussuarana, parei nas primeiras páginas, não vi todos os seus filmes, muito menos tive acesso a qualquer de seus roteiros, li seus textos críticos mais divulgados, faço idéia de sua personalidade – vejo-a como complexa, não monolítica, como louco, incoerente, talvez por ter lido a biografia Glauber Rocha, Esse Vulcão de João Carlos Teixeira Gomes, e por ter visto reprises do programa Abertura, na adolescência, sem saber quem era o apresentador, que, ao mesmo tempo em que provocava, estimulava a conhecer a cultura brasileira, ao apresentar de maneira direta clássicos da literatura brasileira.

Sim, um preâmbulo, cujo objetivo é espantar leitores afoitos, formados por leituras dinâmicas, acostumados com resumos oferecidos por cursinhos, que têm opinião sobre tudo e que não se tocam que ela é alicerçada sob lugares comuns - essas verdades absolutas, intolerantes. E aqueles que chegaram até aqui, pouco importa o que acham de Glauber Rocha, pouco importa se são politicamente corretos, que arrepiaram os pêlos por eu ter falado com ironia de tais leitores, saberão que meu objetivo é esclarecer uma afirmação que gira em torno de Terra em Transe. Para tentar cumpri-lo, esquecerei da guerra, do fogo cruzado e dos antagonistas, apresentarei definições, evitando lugares comuns, se possível desfazê-los, visando o esclarecimento de algo que é freqüentemente afirmado sem ser definido.

Ao pegarmos o DVD da Versátil, leremos: “Considerado o mais importante e polêmico filme de Glauber Rocha e um dos precursores do Cinema Novo e do movimento tropicalista, Terra em Transe tornou-se um clássico do cinema moderno”. Aqui mesmo, duas semanas atrás, em texto dedicado à Idade da Terra, também publicado numa quarta-feira, somos informados que Terra em Transe é tropicalista. Por quê? Não tem nada a ver com o fato de os créditos finais apresentarem uma das músicas do filme como sendo cantada por Maria da Graça, que ganharia fama nacionalmente, no Festival da Record, em 1968, interpretando Divino Maravilhoso, como Gal Costa. Muito menos por tratar-se de um filme psicodélico, um lugar comum referente à tropicália, como se o uso de guitarras distorcidas, no caso da canção, fosse o único elemento definidor de uma estética. Não chegaremos a lugar nenhum se partirmos deste lugar comum e daquela coincidência.


Atentemos-nos ao fato de que Terra em Transe foi o primeiro longa-metragem do Glauber Rocha produzido após o Golpe de 1964, ocorrido num momento de agitação, com vários setores da sociedade civil, até então sem voz, participando ativamente do processo político, pressionando, sendo incorporados na democracia sui generis brasileira (autocrática, como definiu Florestan Fernandes), encarada como um clube exclusivo, para poucos, cujos antagonismos de opiniões e de projetos de nação, em vez de serem considerados legítimos, eram vistos como desordem a ameaçar o país. Os militares, atendendo o chamado das cocotas da Tradição, Família e Propriedade (TFP), depuseram João Goulart sem encontrar resistência dos setores populares - o povo dos populistas, os fortes dos estudantes, os resistentes dos intelectuais. Pouco importa o motivo da desmobilização, ela tem conseqüências de várias ordens: no imaginário nacional-popular da canção, que cantava as glórias dos desvalidos, na visão de mundo dos intelectuais, que acreditavam que os setores populares se mobilizariam facilmente quando as mudanças sociais prementes fossem bloqueadas pelos setores conservadores, e na forma como a arte representava o Brasil, sem as contradições profundas do subdesenvolvimento.

Ao transpor a desilusão de uma geração para as telas de cinema, o diretor baiano desestruturou a forma como o Brasil era pintado nas artes, desestabilizando os paradigmas do conteúdo (quais aspectos da sociedade deveriam ser objetos de representação) e da estrutura (como eles deveriam ser representados). Mesmo eu partindo do pressuposto que todos identificam ambos os paradigmas no filme, uma curta apresentação se faz necessária. O narrador de Terra em Transe é o poeta Paulo Martins (Jardel Filho), um indeciso político, admira o conservador Porfírio Diaz (Paulo Autran) e apóia o populista Felipe Vieira (José Lewgoy). Ambos os lados são apresentados em seus aspectos negativos e positivos, sem um engajamento pleno do narrador, como lembra Glauber Rocha, sem uma síntese: “No fundo o problema que apresenta certo cinema político é de não ser verdadeiramente político enquanto não é fundamentado em uma estrutura dialética. E um cinema político não dialético é sempre e somente idealista” (Revolução do Cinema Novo, p. 241). O anti-naturalismo das performances dos atores contribuiu para o distanciamento do espectador em relação ao conteúdo político do filme, assim como o sincretismo iconográfico torna a representação inverossímil, grotesca, como a seqüência da posse carnavalesca de Porfírio Diaz, em Eldorado.

Delinear os antagonismos sem fazer uma síntese, usando o distanciamento do anti-naturalismo, com uma carnavalização dos elementos iconográficos são as características do movimento tropicalista, pouco importa se na canção, se nas artes plásticas, se no teatro. Como disse Glauber Rocha: “Para nós, o tropicalismo é o amor por nosso país sem ter a vergonha de dizer que ele é subdesenvolvido, bárbaro, corrompido; assim é que se faz, com todas as máscaras no chão, um verdadeiro diálogo com a América Latina” (Ideário de Glauber Rocha, p. 225).

Ao ser visto por José Celso Martinez Corrêa, Terra em Transe influenciou a montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, dedicado ao cineasta. Caetano Veloso, vivendo no Rio de Janeiro, teve acesso ao filme e à peça, e sentiu necessidade de explodir a canção popular, em conjunto com um grupo de amigos. Quando ele mostrou uma nova composição, grotesca, por combinar elementos conflitantes, a bossa e a palhoça, Luiz Carlos Barreto, fotógrafo de Terra em Transe, ao saber que a música não tinha título, sugeriu Tropicália, pelo fato da composição lembrar uma instalação de Hélio Oiticica. A inquietação política encontrou sua forma de manifestação cultural, polêmica, por não agradar a direita, no poder, e a esquerda, idealizando o país e seu povo, em vez de encarar que a realidade era outra, que um país subdesenvolvido, onde as necessidades básicas de alimentação, educação e saúde ainda não faziam parte do horizonte das camadas populares, como querer que elas sejam organizadas suficientemente para se mobilizarem em busca da igualdade.

2 comentários:

TV COL disse...

Belo texto, com uma bem cuidada análise da recepção das idéias de glauber, o que é necessário domar. Glauber é o grande pai de santo de diferentes correntes.

Como diria um professor meu, Francisco Alambert, não foi Terra em Transe que ficou difícil de entender, foi a população brasileira que emburreceu e passou a não entender o filme...

Anônimo disse...

Instrutivo... Gostei...

 
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