Falcão, meninos do tráfico, documentário de MV Bill e Celso Athayde, é um filme sufocante. Poucas vezes uma câmera foi utilizada para revirar de forma tão radical a impressão que fazemos do mundo e da vida.
Seu vôo é compatível com a sua falta de chão: quanto mais fundo se vai na vida material brasileira, mais longe ficamos da sua "aparente" verdade formal, noticiada nos jornais. A vida no Brasil é uma ficção elitista. Parece nos informar o filme, ao desmoralizar com imagens um recorrente preconceito da classe média brasileira: o de que a criminalidade dos morros e periferias é um problema de segurança pública.
O combate a esta idéia está impregnado até mesmo na opção estética do filme, que apesar de simples e limitada pelas condições difíceis de filmagem, não deixa de ter muita qualidade, ao manter os planos fechados nos depoimentos dos garotos e, mais ainda, fechados na favela. Não há um só plano amplo, fora da favela, contendo alguma primazia, alguma viagem imagética da cidade rica a caminho das favelas. Não, o cinema nesse filme já está no morro. É da própria periferia a emergência do olhar. A cidade só é vista de relance e como origem misteriosa da barbárie em que eles vivem. Eles estão, antes, apartados da sociedade que muitos deles nem foram expulsos. Já chegaram em um mundo pronto, não muito bom e sem muito futuro, mas que a eles pertencia. Chegaram no mundo do morro, assim como chegou o filme, de imediato e sem firulas, e não com vôos panorâmicos pelo Rio de Janeiro ou pela cidade como costumam se iniciar os filmes que estetizam burguesamente a vida dos morros.
Antes de não possuírem dinheiro ou família (bens essencialmente burgueses), o que é mais grave é que eles não tem liberdade. E este é o grande recado deles. Há um dilaceramento persistente entre a pertença no morro e a capacidade de construção de uma vida por esses meninos. Esse dilaceramento se resolve não de maneira civilizada - no sentido iluminista do termo, embora se resolva na destruição daquilo que impede o pleno exercício da liberdade. Eles matam, roubam e traficam porque, vivendo em completa exclusão e opressão social, a destruição "da sociedade" é a única maneira de ceifar - ainda que de maneira corrosiva - uma nesga de liberdade.
O que "a sociedade brasileira" ainda não percebeu é que os moradores do morro não querem partilhar das sobras, e quando assim agem é por pura falta de opção e jamais por convicção de que a vida "na sociedade" é melhor do que a deles. Até porque a deles só é ruim porque existe essa "sociedade" rica no Brasil, na qual eles precisam de vez em quando se misturar, seja limpando banheiros de restaurantes caros ou assaltando carros. Tanto faz, estão sempre cerceados quando se confudem com uma ficção chamada Brasil. Ficção essa que, seja como for - politicamente, artisticamente ou socialmente - está se desmanchando para a sociedade civil amedrontada e torna-se cada vez mais fantasmagórica para as populações miseráveis. Os disfarces estão cada dia menos úteis - veja o prestígio da instituição policial - e os assaltos mais frequentes.
É a idéia de nação e todas as intituições e investimentos que emanam desse tipo de sociabilidade é que são problemas para a vida dos morros e periferias. No horizonte do Brasil, se põe em retirada a sociedade capitalista clássica e sua sociabilidade. O que é atual, ainda que bárbaro em muitos aspectos, é a vida na periferia. Ela é a única que se põe no horizonte brasileiro com disposição para matar ou morrer, à revelia de todas as fantasias individualistas e edipicas da sociedade amedrontada do Brasil.
Se isso não promete muito, não se trata do problema pontual do tráfico, mas da rediscussão profunda do que se constituí como "sociedade" no Brasil. Dos morros virá algo, pode até ser a destruição completa. E o filme de Mv Bill, sem mostrar uma única cena do Brasil institucionalizado e mantido na ordem da lei, já apresenta elementos suficientes para demonstrar sua falência. Frente à realidade dos morros, a nação e o mundo capitalista institucional corroem-se. E a mais chocante vida material segue ainda mais destrutiva perante a relutância (burra e elitista) de grande parte do país em ver aí um problema de segurança nacional ou de manutenção da ordem, e não um bom motivo para uma revolução profunda.
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