Estamira, a protetora paciente da verdade nacional, provavelmente jamais pensou em participar de um filme, quem dirá protagonizar um documentário. A escolha desse documentário parte do olhar e não do ser olhado. E esse pequeno detalhe é que faz de Estamira - a portadora da verdade sobre o mundo - uma personagem que, simultaneamente, explica e crítica a história do Brasil, cravada em seu próprio corpo, na sua própria vida.
Estamira sempre esteve lá? Esperando? Claro que não. Estamira foi encontrada, descoberta pela geração que a seguiu. Pelos homens que fizeram Ônibus 174 e se perderam no silêncio de Sandro. Quando o encontraram - e todos nós também o encontramos só naquele momento - naquela tarde onde ele sequestrou um ônibus nas ruas do Rio. Nessa tarde, ele dera o seu último grito, muito bem compreendido pela arqueologia feita pelo filme de Padilha, com produção de Marcos Prado. Mas já era tarde. A vida de Sandro começara na rua e terminara no camburão, no assassinato permitido, meio western, meio navio negreiro. Tudo vale, pois o Rio de Janeiro estava com medo, o Brasil estava com medo.
Do grito atrasado de Sandro, os documentaristas passaram ao discurso de Estamira. Agora sim! Não era mais tão tarde como no caso de Sandro. Não precisavam cavar a história pessoal de um grito silenciado, pois Estamira estava paciente e pronta para falar, para discursar, pois ela tem a vida toda para dizer a verdade. O discurso confuso das primeiras frases, o choque visual das primeiras cenas faziam crer que, embora viva e pronta para falar, não haveria comunicação. Mas foi Marcos Prado que instituiu a verdade de Estamira, ao racionalizar e estetizar(no bom sentido) o discurso de Estamira. Quem pagar o ingresso vai ser obrigado a mergulhar no discurso de Estamira e se assustará quando perceber, ao longo do filme, que começou a entender perfeitamente tudo o que ela diz.
Essa compreensão crescente do discurso de Estamira implode facilmente a auréola divina que os demais discursos sociais possuem. Se estamos compreendendo o que Estamira diz, não podemos concordar com o discurso médico que a diagnostica como doente mental. Podemos inclusive adotar o discurso de Estamira e nos convencer que o discurso médico está tomado por "dopadores", como ela mesmo diz. O grande mérito do filme é erigir o discurso de Estamira(antes condenado) ao plano da cultura, da política, onde os homens discursam como iguais. Ao fazer isso, não mistifica Estamira, mas só a coloca com o direito de falar contra os médicos, contra Deus. Por que não?
O problema é que o discurso médico e o religioso tratados no filme desqualificam Estamira como um ser humano livre, adulto, capaz de dialogar. Para os médicos ela é insana e deve tomar remédios, para os neopentecostais ela é possuída pelo demônio.
Mas o que o Deus e os remédios tem a dizer sobre o mundo? Que ele está replento de doentes e pessoas demoníacas? É inegável que o discurso de Estamira nos convida a pensar sobre bases mais complexas, refletindo por exemplo sobre qual sociedade a produziu. Nesse ponto, Estamira é de longe muito superior aos seus opositores.
Estamira é a porta-voz do Brasil Ornitorrinco, pois no Brasil a verdade não vem dos consultórios, nem das igrejas e das instituições formais. Assim como na economia, no plano cultural o valor provém da informalidade, dos lixões. Por isso filmar Estamira é elencá-la como discurso sobre o Brasil que a produziu e concordar com ela é uma tentativa de transformá-lo. No Brasil, até a defasada autoridade da velhice também tem as suas particularidades.
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