20 de jan. de 2007

A origem e os corpos

“... sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos, os erros...” M. Focault, A Genealogia e a História, p. 22.


“o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate.” M. Focault, A Genealogia e a História, p. 18.



A origem e os corpos

Cidade Baixa” funda por meio dos corpos uma contra-identidade nacional. Toda busca de identificação, toda construção mais ou menos duradoura é destruída pelo suor, pela violência cotidiana que emana, ao mesmo tempo, dos corpos e da cidade baixa. O jogo da proximidade e da invisibilidade forjam a destruição como destino, dando unidade ao filme que, no fundo, é o rito da desunião.

A durabilidade da dor, a demora na cura da facada e a ritualização da violência feita no filme não apresenta distinção entre os galos e os homens. Afinal, quem está disposto a instituir tal distinção? Quem dará sua vida, o seu corpo por tal distinção? Ninguém no século XX foi capaz disso quando se lutou por nações em meio às disputas do capitalismo agonizante. Então, por que justo agora, num filme nacional, feito na Bahia, haveríamos de propalar uma distinção “humana”? A carne não confia na falácia e talvez seja por isso que nesse filme não haja saídas, mas apenas um mísero pedido: - por favor não me mate! A súplica é mais afinada com as carnes nacionais. E olha que nem se fala de identidade.

O filho de ninguém, a facada, e os ferimentos unidos pela mesma bacia. A cena final é um prólogo bem acabado que poderia ser o fio condutor de toda a história. Explicar ou tentar, ao menos, distinguir o sangue daqueles dois corpos, intimamente ligados ao terceiro que lhes limpa as feridas. Limpar as feridas talvez seja a metáfora mais próxima ao expectador que desejaria tocar no fundo, mas está impossibilitado. Esse aproximar do limite entre o projetar e o acontecer talvez seja a única explicação para o motivo pelo qual se limpa as feridas, se restitui os corpos de seus erros, se busca compreender o disparate.

Outro tipo de representação se institui em “Cidade Baixa”, buscando o seu limite como contra-representação. A trama pretende silenciar toda linguagem, criar o indiscernível, mostrar com o corpo o que é desnecessário dizer. Torna-se uma seqüência de descaracterizações de qualquer conjugação do verbo ser. A contingência do capitalismo brutal associado a um mar de subjetividades pouco convictas provoca uma provisoriedade que ganha traços de sistema.

Cabe aos personagens serem agentes desse turbilhão de contingências estranhas, opressivas e violentas. Da ação desses seres desmistificados pelos desejos, pelos erros e pelo disparate nasce uma construção minimamente autêntica (embora também nada prometa): o ritual do sangue, do enxugamento dos ferimentos, da negação da morte como destino, da negação da violência como fado tropical, o nascimento do prólogo da história. Enfim, a origem (ou a reincidência) dos erros do corpo, fundamentos para qualquer história.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá Thiago!
Li teu texto e apesar de certas partes serem confusas, achei muito interessante. Estava pensando se nesse filme há mitos. Vc notou algum?

 
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