11 de jan. de 2008

Preencher o tempo vazio e homogêneo

Marcela de Paolis



O filme Carandiru, dirigido por Hector Babenco, é um filme esteticamente bonito. Bonitas imagens, luz, fotografia, bons atores. Esse não é o problema do filme.

As histórias narradas no filme são tiradas do livro homônimo; algumas são idênticas outras se misturam, mas a fidelidade à narrativa de Drauzio Varella é bastante alta. Trazer um livro ao cinema é sempre uma tarefa difícil e nesse caso não é diferente. O livro é amplo e contempla histórias bastante diferentes, umas mais alegres e esperançosas outras mais trágicas e absolutamente desesperadoras, que nos fazem pensar sobre o próprio valor e sentido da nossa existência.

O tom geral do filme privilegia as histórias mais otimistas, geralmente que envolvem amor, reconciliação, esperança (Majestade e suas duas mulheres, Seu Chico e o reencontro com a família, o casamento na cadeia, a mãe que se dedica ao filho mesmo preso, o arrependimento e aceitação de Jesus, a mulher que volta para o marido que desconfiara). As trágicas também aparecem: o viciado em crack que mata o amigo de infância, seu assassinato pelos presos pela ordem do presídio, os doentes com poucos recursos, a presença da Aids.

Ao privilegiar as histórias menos amargas o enredo naturalmente se torna mais ameno, o que não significa que Babenco transforma a vida no Carandiru em um período de férias num hotel cinco estrelas.

Impossível seria também, partindo do livro de Drauzio Varella, mostrar a morte dos 111 presos como um acidente, descuido ou resultado de algum confronto violento entre presos e policiais. A tropa de choque é um pastor alemão que ronda os mortos, e os presidiários, um pequeno gatinho.

Não é porque não aparecem ratos, piolhos, ferimentos, dor, raiva e revolta na mesma medida que o documentário filmado pelos próprios presos da Casa de Detenção (O prisioneiro da grade de ferro, Paulo Saramento, 2003) que o filme Carandiru é problemático. O grande problema de Carandiru é seu tom apaziguador.

Onde está a polícia antes da presença da tropa de choque? O Seu Pires é uma figura quase paterna, que ouve, sorri, e até protege os presos. Ele não simboliza violência e opressão estatal tão presente nos relatos de presidiários. E os guardas do muro? Mal trazem alguma presença no filme.

Para não sermos injustos, lembro do guarda que zomba de Seu Chico e do outro que ameaça dissipar a confusão do varal com tiros. Afora esses segundos, não há conflito. E não há conflito no filme inteiro.

Discussões entre os presos não é conflito. É briga de família, entre os que jogam no mesmo time. A morte dos presos e a pancadaria desferida aos sobreviventes é exceção. A violência do estado, o abandono da justiça, as péssimas condições de vida dos presídios não é o principal nesse filme. E esse é seu problema.

Fazer um filme sobre a Casa de Detenção sem ter conflito, opressão, violência, desamparo como tema que sobressai não é falar sobre o mesmo Carandiru de O Prisioneiro da grade de ferro, de O Sobrevivente (livro de André du Rap) ou Diário de um Detento (livro de Jocenir). É um outro presídio que conhecemos com Hector Babenco.

As cenas da invasão da tropa de choque, as mortes, a correria entre os corredores e as celas, os sobreviventes no campo de futebol é uma seqüência muito bonita cinematograficamente, o que nesse caso me parece ter sido uma tarefa difícil de realizar. O diretor foi muito hábil ao conduzir essa seqüência e seu resultado é intenso numa medida que me parece muito adequada.

Mas, o que acontece depois que a tropa de choque vai embora? Lavamos o chão com água e sabão. Os próprios presos não aparecem nessa faxina; ela é conduzida por uma câmera que foca apenas a água ensaboada, que se mistura à enorme quantidade de sangue, até que o sabão prevaleça e o resultado final que fica sugerido é a total limpeza daquele sangue e seu desaparecimento completo.

Depois de recolhido os corpos e lavado o sangue, resta demolir o presídio, assim o que sobra para permanecer? Quem ou o quê contará a história desse massacre? Porque o término do filme é justamente o apagamento do sangue e dos corpos e a destruição do presídio.

O resultado geral do filme é justamente esse; um apanhado de histórias mais para esperançosas do que desalentadoras, uma ação policial desmedida e desastrada, que culminam no apagamento de qualquer existência dessas vidas e mortes.

A música final “Aquarela do Brasil” (Ary Barrosso) toca apenas o instrumental; a letra é desnecessária já que nós brasileiros a sabemos quase toda de cor. Nós, no nosso Brasil brasileiros, conhecemos a música que toca, sabemos de cor o que acontece por aqui, e afinal o Brasil é assim mesmo; desgraça, miséria, morte, mas não desistimos nunca, jogamos um balde de água fria em tudo isso e seguimos em frente.

A frase de Dráuzio Varella tirada do livro e realocada no fim do filme muda completamente de sentido. Se no livro ela manifesta o favorecimento em relação à narrativa dos presos (o que nesta altura do livro está mais do que explícito como posicionamento do escritor), no filme ela praticamente tira o sentido do que acabamos de ver. É como se estivesse escrito “111 presos morreram, nenhum policial foi morto ou ferido, mas veja bem, só ouvi os presos, o que está aqui é só uma parte da história, tem outra parte para ser contada....”

Tudo isso aqui acabou, foi lavado, demolido, foi uma exceção, vamos seguir pra frente.

Podemos escolher qual Carandiru queremos ver, qual Casa de Detenção queremos conhecer. Mas não podemos ser ingênuos e pensar que essa escolha não nos posiciona em um lado da história e nem deixar de perceber que são lados bem diferentes.

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