30 de jun. de 2008

Em Cartaz: "ESTÔMAGO"

pouco mais de 50 anos, os imigrantes nordestinos chegavam ao cinema nacional. Paulo Emílio Salles Gomes afirmou, certa vez, que o cinema brasileiro ainda estava preso aos motivos metropolitanos. A colônia não era digna de nota nas telas. Nesse percurso de ampliação dos olhos do cinema brasileiro, os que não detinham o poder só apareceram decisivamente com os filmes de Nelson Pereira dos Santos, com o CPC e o Cinema Novo. Desde então, a representação do povo mudou muito, adquiriu novas perspectivas. Hoje, vendo um filme brasileiro como Estômago, em cartaz há algumas semanas, podemos dizer que a representação do povo no cinema explodiu numa diversidade tão grande e rica, adquirindo uma certa individualidade?

Dizer que o povo adquiriu uma individualidade na r
epresentação cinematográfica talvez signifique dizer que não é mais possível falar em povo, como uma massa genérica e uniforme de pessoas oprimidas pelas diferentes modalidades de poder existentes. No filme Estômago temos duas narrativas paralelas que só se encontram no final do filme. Em ambas, Raimundo Nonato, migrante nordestino, está privado do poder e sob forte ameaça de violência. Na primeira, perambula em São Paulo sem dinheiro e sem teto, indo se abrigar nos fundos de um bar sujo, depois de não ter como pagar pelo que comeu. Na segunda, está na mais baixa escala de poder dentro de uma cela de presídio. Vencido na “maior cidade da América do Sul” e vencido numa pequena cela de presídio, Raimundo Nonato alcança, em dois momentos paralelos, o ápice da opressão. Ele pode ser morto a qualquer momento, ele é nada mais que um ser matável, um potencial não-ser.

Até aí estamos muito próximos dos primeiro
s filmes que ousaram representar os irrepresentáveis. Próximos da opressão existente no curta Um Favelado (de 1962), dos meninos de Rio Quarenta Graus, do sambista Espírito de Rio Zona Norte ou dos camponeses de Deus e o Diabo. O diferencial aqui é que a opressão exercida em Raimundo é o princípio e não o fim da narrativa. Todo o filme desenrola-se sob a autoridade do sem autoridade, no galgar de pequenos degraus que fazem o “sem nada” passar a possuir algo que ninguém pode possuir.

Esse algo que o permite galgar degraus é o seu talento culinário. Com ele, Nonato adquire prestígio na cadeia e reconhecimento no bar onde tinha aportado como semi-escravo. O não-ser Nonato começa a manipular o desejo dos outros. A fome serve no filme como alegoria do desejo de poder, da vontade de potência. Nonato é, nesse sentido, um operário do desejo. E, nessa condição, manipula os reais detentores de poder nas duas narrativas: na primeira, o dono do restaurante chique onde foi convidado a trabalhar; na segunda, o dono da “cela” que o utilizou como instrumento de saciedade, fazendo de Nonato seu cozinheiro titular.

Não se trata de louvar a reviravolta de um migrante nordestino que faz da sua individualidade o ingrediente único para resolver o problema social e histórico da desigualdade social no país. É nesse ponto que se localiza a genialidade do filme. Nonato não é, embora pareça ser, um self made man. Ele parece ser por possuir um talento nato, capaz de lhe permitir lutar e se confrontar com o poder estabelecido. Entretanto, não há ilusão: esse seu talento serve mais para mostrar a fragilidade dos que detêm o poder – o dono do restaurante e o chefe da cela que precisam dele – do que para emancipar Nonato.

A paixão de Nonato por uma prostituta (Íria) amplia os lugares de desejo propostos pelo filme. Só a ela o cozinheiro de talento expõe-se sem reservas e manifesta ali o seu desejo, a sua necessidade de tê-la. Fraquejado por ela, ele também entra para o hall dos fracos ou dos que precisam do outro, pois a grande idéia que perpassa o filme é a de que o desejo enfraquece, expõe à necessidade, à falta e deixa ao léu todos os viventes. E Íria, apesar de se envolver com Nonato, deseja a estabilidade material de Giovanni, o dono do restaurante. Com o noivado marcado com Íria, Nonato flagra-a em um jantar íntimo com Giovanni.

As duas narrativas encontram-se no momento da violência, quando o desejo dá lugar à morte. Nonato mata Giovanni (o dono do restaurante em que trabalha), Íria (a dona do seu sonho) e Bujiú (o dono da sua cela). O operário do desejo se rende à insuficiência do seu ofício. Instala-se um anticlímax que vai além do pessimismo glauberiano de Terra em Transe. Se lá no filme de Glauber a classe média esclarecida (Paulo Martins) balançava o povo para provocar uma reação, no filme Estômago o povo tem nome próprio, talento e sina individualizada. Burguesia e proletariado, elite e povo sucumbem com nomes próprios, alheios a qualquer projeto maior e mais duradouro que vença a voracidade do desejo mais imediato da fome, da carne, do sexo, do indivíduo. Estômago, nessa perspectiva, é um olhar apurado sobre a miséria do nosso mundo, que individualiza todos os personagens, fazendo-os transitar facilmente entre o imediatismo do prazer e a radicalidade irrevogável da violência. Nesse transitar macabro entre desejo e morte, ficam de fora os projetos políticos (a revolução), os projetos de vida (o noivado, a tradição da burguesia) e a identidade entre os grupos oprimidos (o povo).

4 comentários:

Tatta barboza disse...

Fiquei com mais vontade ainda de ver!

Alessandro de Paula disse...

Tô com fome de ver!

Anônimo disse...

Eu também!

Anônimo disse...

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