1 de jul. de 2008

O Autorismo no Cinema - Parte I: França

Hoje se fala muito em “filme de autor”! Quando se usa tal expressão, diz-se que o autor é, antes de tudo, o diretor, pessoa responsável pela organização da fita. Ninguém discute que o mérito de Gritos e Sussurros seja de Ingmar Bergman, ou que o grande responsável por Cidadão Kane seja Orson Welles. Mesmo diretores “menos artísticos”, numa certa visão purista e aristocrática de cinema, como Steven Spielberg são apontados como a fonte da visão de mundo construído em ET ou Munique. O diretor como autor é figura tarimbada e se tornou moeda de troca no mercado cinematográfico e nos meios cinéfilos. Há quem só goste dos “filmes autorais”, há quem se apegue ao “autor”, como a legião dos fãs de Pedro Almodóvar. Mas nem sempre foi assim: a idéia de autor no cinema, de diretor como autor e de filme de autor foram construídas no tempo e não eram autoevidentes. E foram os franceses quem a popularizaram.

Atualmente, o autor é uma figura controversa e não há consenso sobre o que é ou quem é um autor de um filme na discussão da teoria do cinema. Embora a figura do diretor sempre tenha sido um importante fator na avaliação crítica e se reconhecesse uma certa autoria a figuras ousadas como Sergei Eisenstein, Dziga Vertov e Luis Buñuel, a obrigatoriedade de avaliar um filme como uma “obra de autor” era incomum até os anos 1950. Mesmo críticos eruditos e criativos como André Bazin achavam que o filme importava mais por si próprio do que por quem o realizava. Mas no início dos anos 1950 um grupo de jovens críticos foi aceito na Cahiers du Cinema, que se tornaria a Bíblia da cinefilia mundial na segunda metade do século XX, e passaram a defender outra forma de ver o cinema. François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Jacques Rivette, Claude Chabrol foram os principais representantes do que depois ficou conhecido como “o grupo dos jovens turcos”, críticos responsáveis pela criação da “política dos autores”.

Estes jovens foram extremamente estimulados pela chegada dos filmes norte-americanos após o fim da segunda guerra mundial. Durante a ocupação nazista, os filmes estrangeiros, principalmente os dos países aliados, não tiveram acesso ao mercado francês. O final da guerra trouxe uma enxurrada de fitas que deram novo fôlego ao público da França. Os críticos citados se rebelaram então contra o que consideravam o automatismo e o classicismo ultrapassados dos diretores mais atuantes do cinema francês do pós-guerra e, poupando alguns poucos, como Jean Renoir e Jean Cocteau, atacaram com ferozes resenhas as produções nacionais. Fascinados pelas experiências dos diretores americanos e pelo neo-realismo italiano, os franceses queriam outro cinema, mais ousado e mais subjetivo.

Foi quando começaram a defender a idéia de que um filme era mais importante quanto mais trouxesse, no seu estilo, a visão de mundo de seu diretor. A partir dos anos 1950, os “jovens turcos” atacaram o cinema francês usando como modelo o cinema americano. Em vez de procurarem as visões de mundo dos artistas europeus, faziam interpretações intrincadas e defendiam que havia autoria no mais adverso meio à expressão individual: Hollywood. Alfred Hitchcock, Orson Welles, Howard Hawks, Nicholas Ray, Robert Aldrich, entre outros, passavam a ser considerados artistas, homens que imprimiam uma marca subjetiva e individual no estilo de sua direção, de sua mise em scène (direção de cena) e construíam visões de mundo na produção massificada. Hitchcock e Welles, em especial, viraram dois dos maiores heróis desses críticos. Chabrol e Rohmer chegaram a conceituar uma constante temática nos filmes de Hitchcock: a “culpabilidade intercambiável”, sua moral metafísica, o tema recorrente em todos os filmes do diretor sob tramas diversas. Já Welles era o revolucionário por excelência, autor do filme dos filmes, Cidadão Kane, e sempre a vítima da opressão dos grandes estúdios na tentativa de se expressar.

A idéia de autor dos “jovens turcos” era inspirada na literatura e se baseara num texto de Alexandre Astruc, de 1948, chamado de “La câmera stylo”, no qual defendia a transformação do cinema numa arte capaz de expressar qualquer setor do pensamento humano. Anos depois, os críticos desenvolveram a política dos autores. Por meio dela, teorizaram que um filme era mais importante quanto mais expressasse seu autor, o “eu” que conseguia se expressar nas imagens. Se o modelo de autor era o do autor literário, a autoria não devia ser compreendida apenas como responsabilidade pelo texto ou trama (tarefa de roteirista), mas a subjetividade do próprio estilo de direção em função do tema mestre que rege a “obra”, o conjunto de filmes de um dado autor. Ou seja, um autor é sempre o diretor que tem um tema recorrente, uma repetição de estilo que aponta para sua visão subjetiva.

Como sempre foram próprios aos radicalismos ideológicos das artes e ciências dos franceses, sempre entusiasmados com suas novas idéias, os “jovens turcos” logo hierarquizaram os cineastas entre grandes autores e os outros diretores. Segundo Truffaut, um filme menor de um autor era melhor do que um filme bom de um não-autor. O futuro diretor de Os Incompreendidos achava que as peças menos bem feitas de Welles, Hitchcock e Ray eram mais importantes do que o melhor dos filmes de John Ford, um não-autor, diretor artesão em sua opinião.

Embora o autorismo na França não estivesse reduzido a esse grupo, logo a idéia se propagou pelo mundo. Os meios intelectuais e os nascentes estudos cinematográficos franceses tentaram inicialmente fazer fusões entre a política dos autores e a semiologia, mas pensadores como Michel Foucault e Roland Barthes começavam a popularizar a idéia da “morte do sujeito” e da “morte do autor”, dizendo que importava era o texto (e o filme) e seu leitor (e o espectador). A política dos autores surgia em consonância com algumas das ideias do existencialismo de Jean-Paul Sartre, mas concorria com a crítica ferrenha da ideia de autoria como a origem do sentido das obras de arte feita pelo estruturalismo desenvolvido a partir de Claude Lévi-Strauss e dos primeiros estudos de Foucault.

Mesmo nos meios da crítica, a ideia tinha seus opositores. O próprio Bazin achava que o cinema era um meio impuro demais para ser interpretado apenas com relação à figura do diretor e que, muitas vezes, as melhores coisas de um dado filme não vinham da mise em scène, mas da capacidade do próprio cinema de se tornar uma forma realista de ver o mundo. Importava mais o que o filme mostrava do mundo e menos o que ele mostrava de quem o havia feito. Finalmente contra o autor-diretor, erguia-se o autor-roteirista, inventor da trama mostrada e que era o sustentáculo dos grandes filmes de Hollywood.

A ideia original dos “jovens turcos” era romântica: o cinema como expressão subjetiva de quem o dirigiu. De fato, passariam da teoria à prática e realizariam seus próprios filmes, tornando-se eles próprios auteurs. Sua política dos autores virou uma poderosa moeda de troca e sobreviveu a eles, mas teve diferentes repercussões em outros países, como veremos nas próximas oportunidades.

4 comentários:

Hudson disse...

Lembro que após a morte de Bergman e Antonioni, muitos críticos trouxeram à tona o tema de "Cinema de Autor", questionando e sugerindo que com a morte dos dois mestres esse "autorismo" também morreria junto. Tese na qual discordo e tendo o belo texto e suas referências como base, podemos analizar por diversos prismas o que realmente é o "Cinema de Autor".

O que me causou um certo espanto foi saber que Truffaut considerava John Ford um diretor "artesão', o que não significa que ele não gostasse do cinema de Ford, é claro.

Excelente o texto, parabéns!

Anônimo disse...

Hudson, não sabia desse lance.

Acho que o Cinema de Autor não acabará e talvez se fortalecerá por causa das várias formas de acessos aos filmes.

Só que ele fará parte da segmentação que tá ocorrendo com o público do cinema.

Quero dizer que as formas de acessos aos filmes acabou por segmentar o público. Cada filme terá seu público, tanto faz se pelas telas da tevê ou pelas telas do cinema.

Por exemplo, se navegarmos pela Internet, vemos um público fiel ao Horror Europeu, que não tem espaço nas salas de cinema, mas é "distribuído" pela boa vontade dos fãs.

Enfim, ou relativizamos o sucesso ou não notaremos que muitos sucessos ocorrem embaixo dos nossos narizes.

Ah, o texto do blog tá muito bom.

Anônimo disse...

Hud
depois o Truffault mudou de ideia. com o avançar dos anos, Ford entrou no rol dos grandes diretores, mas isso foi quando o próprio francês já se lançava na carreira de diretor de cinema

Alessandro de Paula disse...

Queria ter dito antes, embora talvez tenha dito em outro espaço: brilhante este texto!

 
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