É. E é outras coisas. É também sobre desencanto, sobre a tentativa de purificar-se através de uma longa e solitária jornada.
O personagem principal, vivido por Emile Hirsch, é um: Chris McCandless. Sim, este cercado de família, pais, irmã... toda essa coisa que é tão importante para a maioria, mas com a qual não consegue sentir-se a vontade, apesar da vida confortável de alguém que acaba de se formar na universidade e que dá seus passos para se tornar, digamos assim, uma pessoa produtiva para a sociedade. A fonte de seu desencanto é justamente a família. Tão tipicamente inseridos nos padrões sociais, sr. e sra. McCandless não poupam esforços em se ferir mutuamente com desentendimentos homéricos e, consequentemente, também ferem a prole.
Então o recém-formado moço doa toda a grana que tem pra uma entidade e corta todos os laços. Nosso personagem passa a ser outro, ainda que o mesmo (o mesmo?): Alexander Supertramp, o que se perde na natureza selvagem. Tolstoi, Thoreau e London são seus guias na jornada que empreende, assim como Virgilio foi o guia de Dante na Divina Comédia. Enquanto a narração em off da irmã McCandless revela alguns detalhes da vida familiar e como isso afeta aquele que parte, Supertramp vai descobrindo uma outra vida pelas estradas dos EUA. É isso: da Virginia para o mundo. De um canto qualquer para a vastidão imensurável.
Há esta nova vida, que no filme nos é revelada como se fossem capítulos de um livro: nascimento, adolescência, maturidade e sabedoria. Em sua jornada, Supertramp conhece gente que sempre tem algo a mostrar a ele: o casal hippie; o traficante travestido de homem do campo, que se torna o grande amigo a quem ele endereça cartas; o casal de maluquetes dinamarqueses; a artista adolescente, que se apaixona e está disposta a tê-lo; o velho Ron, a quem procura devolver um pouco de sentido na vida... mas se Supertramp interage com eles por algum tempo, não abandona seu jogo de aparições e despedidas. Da mesma forma que entra, sai da vida de cada um deles. O viajante está com eles, mas está sozinho, porque só é seu caminho de tentativas.
Toda a saga de McCandless/Supertramp não nos é mostrada a partir de uma linha regular de acontecimentos. Tudo começa com uma mãe acordando ao ouvir um estranho chamado e, de repente, presenciamos a chegada de nosso protagonista ao Alaska, tão somente para encontrar o Magic Bus, um ônibus velho e abandonado que ele faria de morada. Apenas depois saberemos quem é Wayne, com quem o andarilho se corresponde, por exemplo.
Somos nós os agraciados com paisagens belíssimas de várias localidades estadosunidenses, de Arizona a Alaska, passando por Colorado, Califórnia... a despeito da beleza das imagens, quase um “Mochilão MTV” destituído do discurso “turístico”. E isso incomoda em alguns momentos – talvez o único senão. Pra bem ou pra mal, culpa de Sean Penn, diretor que paga o preço por seu posicionamento contrário à política externa norte-americana. Culpa, também, de Eric Gautier, diretor de fotografia responsável por um road-movie consagrado como Diários de Motocicleta, onde já exibia sua qualidade como bom “orquestrador” de imagens. Aqui, talvez seja mesmo o caso de dizer, um pouco over.
Mas, falando no diretor, Sean Penn também se diz em Supertramp. Mostra-se desgostoso com sua “família”, o país. Por isso, num dado momento, o noticiário na TV em que Bush pai fala sobre a primeira intervenção no Iraque. É, porque tudo se passa no já longínquo ano de 1990 – nesta época havia mesmo um Chris McCandless cruzando os EUA e renegando os valores familiares. Está tudo no livro de John Krakauer, que deu o nome ao filme. Fidelidade total do filme ao livro? Irrelevante. Vale dizer que há esta figura de um McCandless heróico. Pois bem, não nego que a figura do rapaz me é simpática, porque gostaria de ter a coragem para embarcar em jornada parecida.
No entanto, Supertramp é tão cheio de vontades, tão impulsivo! São seus impulsos, às vezes bem mal-pensados, que o levarão à conclusão de sua jornada. Há quem diga, no Alaska, que o mochileiro não foi mais do que um idiota. Assim ou assado, heróico ou idiota, o que há de mais interessante no filme, como na vida, é o caminho que se trilha – o destino... ora, que importa o destino, quando há tanto chão a seguir e areia a engolir?
Purificar-se... acontece ou não. Mas nós, que estamos longe disto, podemos nos perguntar: vale a pena? Arrisco-me a responder: sim, vale a pena tentar. Principalmente se houver uma trilha sonora como a de Eddie Vedder que, na minha opinião desimportante, não funciona tão bem isoladamente – foi assim que ouvi pela primeira vez – mas que cresce muito em conjunto com o filme.
Boa jornada a quem se habilita!
5 comentários:
Putz, me arrependo de não ter visto o filme.
Mas, ao ler seu texto, fiquei com vontade de fazer uma observação. Talvez se mostrará incorreta pra mim mesmo ao ver o filme.
Parece que o diretor Sean Penn, com o personagem do filme, mostra um estadunidenses buscando as origens de seu país. Não as origens individuais, não as origens naturais, mas as origens da nação estadunidense.
A inadequação do personagem parece a de quem não se identifica mais com os valores da sociedade estadunidense. Não só políticos, como sociais. Quer reencontrar os valores que fundaram os EUA. Que de certa forma, estão em Thoreau e London.
Podemos pensar o personagem como o Caninos Brancos. No romance de London, Caninos Brancos é um lobo mau, que não perdoa ninguém, não tem um pingo de bondade. Mas ao ser tratado bem, com o tempo, ele torna-se um lobo bom. Continua forte, continua audaz, contudo sua força está canalizada pro bem.
Tanto é que no final do romance surge a figura de um bandido. Como a dizer que aquele é outro Caninos Brancos.
O personagem do filme percebe que tá num meio hostil. Conformista. Com o destino traçado, por ter acabado de tirar o diploma. Ele sabe o que vai fazer, como vai viver, quem vai odiar, etc. E, pelo visto, ele quer reencontrar aqueles valores no qual cada homem fazia seu destino e sabia que seu destino também construía a nação em que vivia.
Tenho que ver o filme!
PS. Me perdoem o tamanho do comentário.
Peguei o filme imaginando que Sean Penn redimiria a fraca filmografia americana que tenta resgatar a identidade ianque baseada na busca romântica do hinterland, mas, que nada, filminho chato e previsível (desde a cena inical do grito materno) calcado nas mesmas pulsões de vida e de morte(wilderness) tão freudianas quanto batidas. Para quem não exige muito de um filme, boas imagens e fotografia, e ainda a presença do ótimo ator Emile Hirsch. C´est ça...Ana S.
Boa crítica. Eu gostei muito do filme quando eu vi. A trilha que casou tão bem realmente. E essa coragem desse rapaz... É. Eu achei forte e bonito. Ir em busca do que se quer, do que se acredita. Mesmo que no fim se descubra que as amarras são importantes e mesmo quando se quer fugir delas, elas ainda estão em nós. Bem amarradas.
Acabei de assistir esse filme, e assim que saí da sala me veio uma frase de Raduan Nassar, que me pareceu trazer um sentido desse roteiro: "Estamos sempre voltando para casa".
O caminho do personagem, é um permanente voltar para casa: em cada encontro, é uma mãe, um pai, uma irmã, uma relação familiar que se estabelece. Sean Penn, na minha opinião, constrói um bonito filme que nos mostra que é preciso se perder para se encontrar.
Tentei responder aqui, no dia da "greve" da internet... não deu!
Então, que seja hoje:
Achei sua observação bem pertinente, Di.
Não concordo com você, Ana. Mas que bom que sempre se pode ter uma visão diferente sobre um filme.
Talita, de fato as amarras existem... e às vezes são indisfarçáveis.
Marcela, lembrei-me do No Direction Home, documentário do Scorsese sobre Dylan. Há ali também algo sobre "estamos sempre voltando pra casa".
Postar um comentário