“Matéria é a essência mais passiva e sem defesa no cosmos. Qualquer um pode moldá-la, formatá-la – ela obedece a todos. Todas as tentativas de organizar a
matéria são transientes e transitórias, fáceis de reverter e dissolver.”
Bruno Schultz
Trazer objetos à “vida” é a essência do cinema de Borowczyk. Buster Keaton à parte, ele é o maior especialista do cinema autoral. Borowczyk deixou claros seus “sentimentos positivos em relação aos objetos”, isso sem mencionar a mania por aqueles que foram fabricados no século XIX. Por quê? Porque nesses objetos nós ainda encontramos “traços de mãos humanas”.
Todavia, mãos são visivelmente ausentes nos primeiros curtas de Borowczyk. À primeira vista, Renaissance (1963) e Le Phonograph (1969) parecem misteriosamente materialísticos. Depois das explosões catastróficas que iniciam e dão desfecho a Renaissance, as pilhas torradas de madeira e o ferro-velho distorcido podem muito bem ficar como “evidência” do destino que encontrou os corpos aos quais aqueles objetos pertenciam. Mas são apenas objetos arruinados. Não obstante, divertimo-nos (se não nos confortamos) por saber que o ciclo acontecerá de novo (eternamente!). Também, o som de desmaio entre os escombros dos tambores de cera destruídos e os copos quebrados sugere que deve haver um fantasma em Le Phonograph, afinal. Borowczyk não é pessimista, mas meio “catastrófico”. Tal catastrofismo desmente uma preocupação de que a produção manual está morrendo. “Vivacidade” é ser deslocado por aquilo que Borowczyk descreve como “sociedade mecânica” – uma baseada no excesso.
Se a preocupação indissimulada de Borowczyk é com o fin-de-siecle, então é uma pechincha motivada pelos excessos do século 20: as gags sobre a bomba atômica em Le Theatre de Monsieur et Madame Kabal (1967) e os campos de concentração em Les Jeux des Anges (1964) e Goto, l’Ile d’Amour (1968). Mas as imagens de superprodução e saturação sugerem um excesso comercial, também. Se o último resulta em uma “anulação de nossos sentidos”, os estudos obsessivos de Borowczyk sobre objetos feitos à mão agora aparecem como genuinamente “eróticos”, o acento menor em suas propriedades simbólicas, maior nas qualidades visuais, seus sons e texturas.
Dos curtas, Rosalie (1966), Gavotte (1967), Diptyque (1967) e Une Collection Particulière (1972), todos eles envolvem ao menos um elemento humano visível, embora sempre obscurecido. Para atuar frente a câmera de Borowczyk, o ator tinha que entregar a ele (ou, usualmente, a ela) sua vontade, inteiramente, e tornar-se nem tanto um dos “modelos” de Bresson, mas um dos de Keaton. Mas, como Bresson, Borowczyk descartou a personagem “psicologia” como superficial – ele é mais interessado no “como” que no “por que”. Uma fascinação por objetos pode degenerar para o fetichismo quando serve menos ou não como “função” narrativa. Barthes nos dá uma ideia do que esta função poderia ser em um ensaio sobre o Histoire de l’Oeil, de Bataille:
Como um objeto pode ter uma história? Bem, ele pode passar de mão em mão, fazendo com que surja um tipo de aventura imaginada que autores chamam de “A História de Minha Flauta” ou “Memórias de uma Poltrona” ou ele pode passar de imagem a imagem. Neste caso, sua história é de migração, o ciclo dos avatares que o objeto atravessa, removido de sua existência original.
Se admitirmos uma “poética” do cinema, então é óbvio que os curtas de Borowczyk são do segundo tipo. As mais bem sucedidas “histórias de objetos” não eram aquelas inteiramente fantasiosas ou metafóricas, como Barthes, mais tarde, objetou “novelas” e “poemas”, mas algo como o amálgama dos dois. Por exemplo, Goto, l’Ile d’Amour e La Bete (1975) poderiam ser concebidas como transações sequenciais de binóculos e calçados, rosas e espartilhos entre personagens humanas (e no caso de La Bete, não-tão-humanas!), mas que ignorariam a peça metafórica considerável que ia ganhando espaço. Como Ray Durgnat notou, em Goto, l’Ile d’Amour, Borowczyk temperou uma fetichização linguística e satírica das tarefas de Grozo: “brushing ch-auseurs, taking care of ch-iens and drowning mou-ch-es”. Em La Bete (e nem tanto em Dzieje Grzechu, 1975), pétalas de rosas têm seu bom uso relacionado a fantasias masturbatórias femininas – a genitália feminina é tantas vezes comparada a pétalas de rosa (por exemplo, o “Rosebud” em Cidadão Kane). Aqui, Borowczyk oferece um defloramento literal na tela.
Daniel Bird, 2003
Texto traduzido do original retirado da internet, em http://www.ubu.com/film/borowczyk.html
2 comentários:
Parabéns pela escolha do texto. E principalmente pela tradução.
Ao lembrar de Borowczyk, vem à minha cabeça a cena da masturbação com pétalas de rosa de "La Bete". Umas das mais marcantes do cinema.
Não só do cinema tesudo, claro.
Aliás, é bom lembrar, para os próximos leitores, que alguns dos curtas do Borowczyk estão disponível no Ubu, de onde você tirou o texto.
Abraço!
Há outro texto sobre o Borowczyk lá no Ubu, na mesma página. Qualquer hora dessas, poderia traduzi-lo também.
Valeu, Di!
Postar um comentário