21 de jun. de 2008

Os vários instantes de John Cassavetes - Parte I: "SHADOWS"

Hoje em dia é difícil falar das obras de John Cassavetes, e da sua postura como cineasta, sem cair na armadilha da adoração extrema, ainda que, paradoxalmente, seja bem mais fácil analisar seu pequeno conjunto de filmes graças à distância crítica que temos em relação à época dos lançamentos e ao repertório fílmico assimilado. O objetivo desta e das demais análises que serão feitas sobre o trabalho do cineasta nova-iorquino não é execrar ou canonizá-lo, mas sim oferecer um momento – partindo dos textos, que são falíveis e subjetivos – para reavaliar os trabalhos com olhos renovados.

Come
cemos então com sua primeira invenção: Shadows (1959).

Cassavetes ficou conhecido por ser um estrangeiro dentro do star-system hollywoodiano; um ator-cineasta que atuou em projetos destacados apenas para ter dinheiro suficiente para bancar a produção dos seus filmes, rigidamente autorais. Incorporou em suas obras um estilo de criação independente, participando de forma ativa em todas as etapas de feitura, sendo muitas vezes diretor, roteirista e produtor. Chamou amigos e conhecidos para trabalhar de graça, tanto na equipe técnica como na atuação, e fez questão de ser realmente livre dos cálculos comerciais e demais decisões corporativas relativas aos estúdios. O curioso é que essa fama de enfant-terrible de Los Angeles parece se assentar mais sobre o seu primeiro filme, tanto de forma positiva como negativa. De um jeito ou de outro, muitos dos seus defensores e detratores partem de Shadows para emitir opiniões interessantes, mas que acabam esbarrando no puramente mitológico.

Não considero Shadows um grande filme. É, claro, uma obra forte em sua crueza sincera, com alguns momentos geniais, mas bastante limitada em vários aspectos. O próprio Cassavetes sempre afirmou que foi durante as filmagens deste trabalho que cometeu todos os erros que alguém poderia cometer enquanto diretor: Usou negativos errados, alguns vencidos, carregou o chassi da câmera de forma incorreta, não teve o parque de luz adequado e acumulou mais funções do que poderia suportar na época.O resultado destas e das demais escolhas estão lá, durante grande parte dos 87 minutos de duração.

Isso quer dizer que o filme é ruim? De forma alguma. Mas considero tudo como uma espécie de ensaio, um teste que – assim como A canção da esperança e Minha esperança é você, os primeiros “trabalhos de estúdio” do diretor – possibilitou ao realizador estudar, aplicar e estabelecer as bases concretas de sua teoria cinematográfica, que iria aparecer forte e bem executada a partir de Faces,

A estrutura jazzística do roteiro, por exemplo, sem uma história definida, cobrindo apenas os momentos de vida de quatro personagens marginais, já é carregada da crueza que Cassavetes tanto perseguia (mas sem resultados cem por cento satisfatórios, graças a alguns atores). O espectador, ao assistir o filme, tem a impressão de ser, de fato, o observador de uma cena que está se desenrolando pela primeira vez. Prestar atenção apenas nos diálogos não serve; deve-se analisar o corpo, as flexões, as pausas e os erros. Só assim entende-se melhor o processo de ação-reação que permeia as cenas granuladas e de vez em quando desfocadas do trabalho.

É ai que entra o primeiro e maior mal entendido em relação ao filme e seu diretor. A sensação de crueza e imprevisibilidade, aliada ao lendário estilo de direção de atores do Cassavetes, criou o mito de que tudo era feito de improviso, praticamente sem roteiro. Mentira. Qualquer um que tenha acesso a documentários e livros sobre o realizador vai se deparar com momentos em que membros da equipe comentam o quanto o autor detalhava as cenas e o quanto as ensaiava. O ritmo era tão forte que, com o tempo, os atores já estavam dentro do personagem, e conheciam a história tão bem que se sentiam livres para alterar pequenas falas e reações sem estragar o take ou a trama. Era o que John almejava.

Da mesma forma era o esquema de ignorar as marcações de luz. Ao trabalhar como ator, Cassavetes sempre estava preso em uma linha de segurança, que não permitia que seu personagem se movesse demais, com o risco de arruinar a fotografia. Isso, de acordo com ele, acabava estragando a naturalidade do personagem e do filme, todos engessados em conceitos técnicos. A solução encontrada foi abolir as marcações, e liberar o ator, elemento-mor da obra. A câmera, por sua vez, faria de tudo para conseguir o melhor ângulo possível. Muitos acabaram por interpretar tal escolha como uma evidência de que o homem não sabia dirigir ou planificar, colocando a câmera em qualquer lugar, o que não é verdade e findaram usando Shadows como exemplo clássico.

O fato é que o filme apresenta todos os elementos que tornaram seu diretor tão conhecido (para o bem ou para o mal), mas executados de forma menos segura e coesa. É o começo de um estilo de criação que encontraria ecos na nouvelle vague e no cinema-verdade, mas que nem por isso deixa de ser menos original ou importante. É Cassavetes dando seus primeiros passos.

“Nunca é tão claro como nos filmes. As pessoas, e me incluo aí também, não sabem o que estão fazendo na maioria das vezes. Elas não sabem o que querem ou o que sentem. Apenas nos filmes é que elas sabem quais são seus problemas e têm planos de como lidar com eles. Cinema é uma investigação das nossas vidas. O que nós somos. Quais são nossas responsabilidades – se existem. O que nós estamos procurando. Por que eu iria querer fazer um filme sobre coisas que já entendo?”

2 comentários:

Alessandro disse...

Que bom, vamos viajar pelo mundo de Cassavetes!

Bom começo, pelo começo!

Abraços a todos!

Anônimo disse...

Para alguém que viu apenas um filme do Cassavetes, como eu, o texto tá informativo.

Através dele, saberei o que encontrarei nos próximos: filmes que não estão além do bem e do mal.

 
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