Comecemos então com sua primeira invenção: Shadows (1959).
Não considero Shadows um grande filme. É, claro, uma obra forte em sua crueza sincera, com alguns momentos geniais, mas bastante limitada em vários aspectos. O próprio Cassavetes sempre afirmou que foi durante as filmagens deste trabalho que cometeu todos os erros que alguém poderia cometer enquanto diretor: Usou negativos errados, alguns vencidos, carregou o chassi da câmera de forma incorreta, não teve o parque de luz adequado e acumulou mais funções do que poderia suportar na época.O resultado destas e das demais escolhas estão lá, durante grande parte dos 87 minutos de duração.
Isso quer dizer que o filme é ruim? De forma alguma. Mas considero tudo como uma espécie de ensaio, um teste que – assim como A canção da esperança e Minha esperança é você, os primeiros “trabalhos de estúdio” do diretor – possibilitou ao realizador estudar, aplicar e estabelecer as bases concretas de sua teoria cinematográfica, que iria aparecer forte e bem executada a partir de Faces,
A estrutura jazzística do roteiro, por exemplo, sem uma história definida, cobrindo apenas os momentos de vida de quatro personagens marginais, já é carregada da crueza que Cassavetes tanto perseguia (mas sem resultados cem por cento satisfatórios, graças a alguns atores). O espectador, ao assistir o filme, tem a impressão de ser, de fato, o observador de uma cena que está se desenrolando pela primeira vez. Prestar atenção apenas nos diálogos não serve; deve-se analisar o corpo, as flexões, as pausas e os erros. Só assim entende-se melhor o processo de ação-reação que permeia as cenas granuladas e de vez em quando desfocadas do trabalho.
É ai que entra o primeiro e maior mal entendido em relação ao filme e seu diretor. A sensação de crueza e imprevisibilidade, aliada ao lendário estilo de direção de atores do Cassavetes, criou o mito de que tudo era feito de improviso, praticamente sem roteiro. Mentira. Qualquer um que tenha acesso a documentários e livros sobre o realizador vai se deparar com momentos em que membros da equipe comentam o quanto o autor detalhava as cenas e o quanto as ensaiava. O ritmo era tão forte que, com o tempo, os atores já estavam dentro do personagem, e conheciam a história tão bem que se sentiam livres para alterar pequenas falas e reações sem estragar o take ou a trama. Era o que John almejava.
Da mesma forma era o esquema de ignorar as marcações de luz. Ao trabalhar como ator, Cassavetes sempre estava preso em uma linha de segurança, que não permitia que seu personagem se movesse demais, com o risco de arruinar a fotografia. Isso, de acordo com ele, acabava estragando a naturalidade do personagem e do filme, todos engessados em conceitos técnicos. A solução encontrada foi abolir as marcações, e liberar o ator, elemento-mor da obra. A câmera, por sua vez, faria de tudo para conseguir o melhor ângulo possível. Muitos acabaram por interpretar tal escolha como uma evidência de que o homem não sabia dirigir ou planificar, colocando a câmera em qualquer lugar, o que não é verdade e findaram usando Shadows como exemplo clássico.
O fato é que o filme apresenta todos os elementos que tornaram seu diretor tão conhecido (para o bem ou para o mal), mas executados de forma menos segura e coesa. É o começo de um estilo de criação que encontraria ecos na nouvelle vague e no cinema-verdade, mas que nem por isso deixa de ser menos original ou importante. É Cassavetes dando seus primeiros passos.
“Nunca é tão claro como nos filmes. As pessoas, e me incluo aí também, não sabem o que estão fazendo na maioria das vezes. Elas não sabem o que querem ou o que sentem. Apenas nos filmes é que elas sabem quais são seus problemas e têm planos de como lidar com eles. Cinema é uma investigação das nossas vidas. O que nós somos. Quais são nossas responsabilidades – se existem. O que nós estamos procurando. Por que eu iria querer fazer um filme sobre coisas que já entendo?”
2 comentários:
Que bom, vamos viajar pelo mundo de Cassavetes!
Bom começo, pelo começo!
Abraços a todos!
Para alguém que viu apenas um filme do Cassavetes, como eu, o texto tá informativo.
Através dele, saberei o que encontrarei nos próximos: filmes que não estão além do bem e do mal.
Postar um comentário