Eu não sabia quem era Clarah Averbuck até semana passada. Nunca tinha lido os blogs, desconhecia os livros e ignorava os boatos e demais detalhes sobre sua vida artística e pessoal. Ao terminar de ver o filme livremente baseado em Maquina de Pinball e Vida de gato – ambos trabalhos da escritora – continuei sem saber muito sobre a moça. Méritos para o Murilo Salles.
A questão da adaptação cinematográfica de obras literárias é antiga, e parece nunca se resolver. Alguns defendem a liberdade do diretor em criar a sua “versão da versão”, sem ater-se a todos os detalhes e conceitos expostos nas palavras, frases, morfemas, figuras de linguagem e capítulos que compõem a obra original; outros, mais xiitas – e com certa razão – não admitem a transposição-nem-tão-fiel e, quando admitem, o fazem a partir do julgamento de que o que se criou foi uma obra inferior, que não faz jus à fonte principal.
Independente da opinião, o fato é que o processo de adaptação é extremamente complicado, pois esbarra em várias problemáticas que precisam ser resolvidas longe do set, antes até mesmo da pré-produção. É preciso estar atento para a diferença de linguagem, de mídia, que modifica a comunicação entre obra (emissor) e espectador (receptor). No caso da relação entre Literatura e Cinema, fica fácil constatar que aquele belíssimo e extenso capítulo explicativo, que necessita de quarenta e cinco minutos para ser lido corretamente, pode se tornar uma rápida seqüência de dez segundos. E o pior, sem metade do brilho que deveria ter. Além disso, temos a questão subjetiva, elemento norteador que vai ajudar o diretor a saber/descobrir/concluir qual é aquele aspecto principal da obra original que deve ser mantido, e que ferramentas – Som, edição, fotografia, etc. – ele vai utilizar para atingir seu objetivo.
Baseado nisso, o novo filme do Murilo Salles tinha tudo para dar errado. Além do fato de estar adaptando livros possivelmente autobiográficos de uma escritora/junkie que ficou conhecida através de um blog, afeita a influências modernas – ou pós-modernas, nunca sei – e, por justa causa, bem experimental (ainda que não apresente nada de novo), o realizador resolveu inserir a sua carga de experimentalismo no processo, gravando com uma câmera digital HVX 200, valendo-se de locações, equipe reduzida, e utilizando majoritariamente luz local, sem tantos refletores. Mais ainda: inseriu letreiros diversos, uso de e-mails para contar a história, falsos raccords, Santa Tereza D’Ávila, momentos pornográficos e personagens-nem-tão-carismáticos. O resultado foi um filme que se vale de Camila (Leandra Leal), persona principal da obra, para falar não da Clarah Averbuck apenas, mas de toda uma geração, criando um produto artístico deveras relevante.
Camila quer ser escritora. Classe média, não tem problemas com a mãe, vive sozinha, tem blog, lê demais, vê filmes, bebe, se droga – mas nada que dê overdose, é só pra esquecer da vida por umas horas, ou pra dar uma de neo-bukowski –, pensa no agora e tem uma leve disposição a trocar de namorados rapidamente, seja por falta de amor sincero ou de uma trepada que a satisfaça para todo o sempre. Vive no computador, se expressa por ele, desconhece a maioria dos amigos de internet, ainda que estes jurem que a conhecem bem, e adota uma postura do tipo “não revelo meus sentimentos para qualquer um”, mesmo que isso entre em contradição com suas ações de blogueira. Durante a metragem acompanhamos sua trajetória até que ela tenha motivos suficientes – ou tempo suficiente, vontade suficiente – para adquirir nome próprio, sair do anonimato e se tornar, de fato, artista.
Apesar de todas as características positivas e negativas da personagem, Salles não a julga, apenas filma com grande interesse, com proximidade. Ele não quer saber de desconstruir a moça, de apontar o dedo e dizer “Opa, isso ela inventou no livro, e isso aconteceu de verdade!” ou “Notaram como ela é devassa? Pois é. Puta.”. Nada disso. A câmera perto do corpo, encarando toda e qualquer relação, contato e ambiente está lá para que também decodifiquemos onde as ações e reações de Camila se inserem dentro do todo, indo para além da personagem principal, ainda que esta passe grande parte da metragem dentro de quartos e salas, com pouca, ou nenhuma companhia.
Este é inclusive um dos pontos mais interessantes do longa. Camila muda de apartamento, de cidade, várias vezes, mas dificilmente vemos indícios externos dos locais em que ela se encontra. Nada de pontos turísticos conhecidos; no máximo, um bar ali e acolá. Tudo filmado em cenas internas. O que existe são quartos diferentes, salas diferentes – quase vazios, decorados apenas com o computador e poucos móveis –, um resumo visual da “cultura do Eu, eu, eu”, cheia dos e-mails, blogs, sites pessoais, vida extrema – ou nem tão extrema assim –, que ignora o que existe para além do reduto da casa e admite apenas os próprios problemas, expondo-se em textos subjetivos, nicknames de msn e coisas do tipo. É por isso que absorver tudo apenas como biografia da Averbuck é jogar o potencial do filme no lixo. Vemos além da autora, e da personagem que ela criou para si – o “publique-se a lenda” –, todos os J4im3s, Aninha_18’s e Antonio_Doido’s que pipocam por ai dentro da cibercultura, querendo um “ser” que existe apenas num pequeno mundo. Quando este “ser” explode, bem, temos um problema. Hoje em dia, a própria autora de Máquina de Pinball passa mais tempo dizendo que ninguém pode conhecê-la de verdade só por causa do filme e dos livros do que fazendo qualquer outra coisa.
A performance de Leandra Leal é digna de nota, uma entrega completa ao papel, sem concessões ou receios, e é fato que o filme não funcionaria sem ela. A fotografia também é um caso a parte, pois é um dos poucos filmes que admite o digital com todas as suas vantagens e desvantagens, sem apelar para recursos metalingüísticos como “simulação de um filme encontrado por ai” ou “documentário feito por atores do filme dentro do filme”, coisa que acontece em várias produções recentes, como [rec], Diário dos mortos e Redacted. Não estou dizendo que a saída encontrada pelo De Palma e o Romero estejam erradas, mas é bom ver que a resistência às singularidades do cinema digital está ficando menor.
Apesar de tudo, não é um filme perfeito. Existem várias intervenções textuais dentro do longa, letreiros que explicitam o que a personagem está pensando e escrevendo. De inicio o recurso é interessante, mas logo cansa por se tornar uma ferramenta redundante, já que normalmente estamos vendo e analisando o que ela está fazendo, sem precisar do auxilio de uma muleta explicativa. Além disso a metragem é longa, o que torna grande parte do clímax desinteressante, pois chega em um momento que já estamos meio que fartos do processo repetitivo de auto-conhecido da artista.
O filme está em cartaz nos cinemas com projeção digital e não será feito transfer para película. Irá passar no circuito de festivais, incluindo o de Gramado, que além dele, exibe mais três filmes gravados em digital. Um sinal dos novos tempos? Vai saber.
A questão da adaptação cinematográfica de obras literárias é antiga, e parece nunca se resolver. Alguns defendem a liberdade do diretor em criar a sua “versão da versão”, sem ater-se a todos os detalhes e conceitos expostos nas palavras, frases, morfemas, figuras de linguagem e capítulos que compõem a obra original; outros, mais xiitas – e com certa razão – não admitem a transposição-nem-tão-fiel e, quando admitem, o fazem a partir do julgamento de que o que se criou foi uma obra inferior, que não faz jus à fonte principal.
Independente da opinião, o fato é que o processo de adaptação é extremamente complicado, pois esbarra em várias problemáticas que precisam ser resolvidas longe do set, antes até mesmo da pré-produção. É preciso estar atento para a diferença de linguagem, de mídia, que modifica a comunicação entre obra (emissor) e espectador (receptor). No caso da relação entre Literatura e Cinema, fica fácil constatar que aquele belíssimo e extenso capítulo explicativo, que necessita de quarenta e cinco minutos para ser lido corretamente, pode se tornar uma rápida seqüência de dez segundos. E o pior, sem metade do brilho que deveria ter. Além disso, temos a questão subjetiva, elemento norteador que vai ajudar o diretor a saber/descobrir/concluir qual é aquele aspecto principal da obra original que deve ser mantido, e que ferramentas – Som, edição, fotografia, etc. – ele vai utilizar para atingir seu objetivo.
Baseado nisso, o novo filme do Murilo Salles tinha tudo para dar errado. Além do fato de estar adaptando livros possivelmente autobiográficos de uma escritora/junkie que ficou conhecida através de um blog, afeita a influências modernas – ou pós-modernas, nunca sei – e, por justa causa, bem experimental (ainda que não apresente nada de novo), o realizador resolveu inserir a sua carga de experimentalismo no processo, gravando com uma câmera digital HVX 200, valendo-se de locações, equipe reduzida, e utilizando majoritariamente luz local, sem tantos refletores. Mais ainda: inseriu letreiros diversos, uso de e-mails para contar a história, falsos raccords, Santa Tereza D’Ávila, momentos pornográficos e personagens-nem-tão-carismáticos. O resultado foi um filme que se vale de Camila (Leandra Leal), persona principal da obra, para falar não da Clarah Averbuck apenas, mas de toda uma geração, criando um produto artístico deveras relevante.
Camila quer ser escritora. Classe média, não tem problemas com a mãe, vive sozinha, tem blog, lê demais, vê filmes, bebe, se droga – mas nada que dê overdose, é só pra esquecer da vida por umas horas, ou pra dar uma de neo-bukowski –, pensa no agora e tem uma leve disposição a trocar de namorados rapidamente, seja por falta de amor sincero ou de uma trepada que a satisfaça para todo o sempre. Vive no computador, se expressa por ele, desconhece a maioria dos amigos de internet, ainda que estes jurem que a conhecem bem, e adota uma postura do tipo “não revelo meus sentimentos para qualquer um”, mesmo que isso entre em contradição com suas ações de blogueira. Durante a metragem acompanhamos sua trajetória até que ela tenha motivos suficientes – ou tempo suficiente, vontade suficiente – para adquirir nome próprio, sair do anonimato e se tornar, de fato, artista.
Apesar de todas as características positivas e negativas da personagem, Salles não a julga, apenas filma com grande interesse, com proximidade. Ele não quer saber de desconstruir a moça, de apontar o dedo e dizer “Opa, isso ela inventou no livro, e isso aconteceu de verdade!” ou “Notaram como ela é devassa? Pois é. Puta.”. Nada disso. A câmera perto do corpo, encarando toda e qualquer relação, contato e ambiente está lá para que também decodifiquemos onde as ações e reações de Camila se inserem dentro do todo, indo para além da personagem principal, ainda que esta passe grande parte da metragem dentro de quartos e salas, com pouca, ou nenhuma companhia.
Este é inclusive um dos pontos mais interessantes do longa. Camila muda de apartamento, de cidade, várias vezes, mas dificilmente vemos indícios externos dos locais em que ela se encontra. Nada de pontos turísticos conhecidos; no máximo, um bar ali e acolá. Tudo filmado em cenas internas. O que existe são quartos diferentes, salas diferentes – quase vazios, decorados apenas com o computador e poucos móveis –, um resumo visual da “cultura do Eu, eu, eu”, cheia dos e-mails, blogs, sites pessoais, vida extrema – ou nem tão extrema assim –, que ignora o que existe para além do reduto da casa e admite apenas os próprios problemas, expondo-se em textos subjetivos, nicknames de msn e coisas do tipo. É por isso que absorver tudo apenas como biografia da Averbuck é jogar o potencial do filme no lixo. Vemos além da autora, e da personagem que ela criou para si – o “publique-se a lenda” –, todos os J4im3s, Aninha_18’s e Antonio_Doido’s que pipocam por ai dentro da cibercultura, querendo um “ser” que existe apenas num pequeno mundo. Quando este “ser” explode, bem, temos um problema. Hoje em dia, a própria autora de Máquina de Pinball passa mais tempo dizendo que ninguém pode conhecê-la de verdade só por causa do filme e dos livros do que fazendo qualquer outra coisa.
A performance de Leandra Leal é digna de nota, uma entrega completa ao papel, sem concessões ou receios, e é fato que o filme não funcionaria sem ela. A fotografia também é um caso a parte, pois é um dos poucos filmes que admite o digital com todas as suas vantagens e desvantagens, sem apelar para recursos metalingüísticos como “simulação de um filme encontrado por ai” ou “documentário feito por atores do filme dentro do filme”, coisa que acontece em várias produções recentes, como [rec], Diário dos mortos e Redacted. Não estou dizendo que a saída encontrada pelo De Palma e o Romero estejam erradas, mas é bom ver que a resistência às singularidades do cinema digital está ficando menor.
Apesar de tudo, não é um filme perfeito. Existem várias intervenções textuais dentro do longa, letreiros que explicitam o que a personagem está pensando e escrevendo. De inicio o recurso é interessante, mas logo cansa por se tornar uma ferramenta redundante, já que normalmente estamos vendo e analisando o que ela está fazendo, sem precisar do auxilio de uma muleta explicativa. Além disso a metragem é longa, o que torna grande parte do clímax desinteressante, pois chega em um momento que já estamos meio que fartos do processo repetitivo de auto-conhecido da artista.
O filme está em cartaz nos cinemas com projeção digital e não será feito transfer para película. Irá passar no circuito de festivais, incluindo o de Gramado, que além dele, exibe mais três filmes gravados em digital. Um sinal dos novos tempos? Vai saber.
5 comentários:
Eu tentei ler o blog da Clarah Averbuck. Só que não tinha saco para aquele egocentrismo.
Até hoje me entedia a cultura do umbigo.
Antes de tentar lê-la, tentei gostar de Bukowski. Pois, como qualquer jovem, queria ser aceito em um grupo. Não consegui gostar e acho que até hoje não consegui me enquadrar em um grupo.
Mas a cultura do umbigo me atraia ao ser contada por uma terceira pessoa.
Não tinha saco para ler Clarah Averbuck, embora gostasse de escutar minhas amigas falarem dela. Na voz delas e nos meus comentários, ela virava uma personagem que se desmitificava.
Por isso, acredito eu, o filme acaba por me atrair mais do que a literatura da Clarah Averbuck. Pois, como você deixou claro no texto, desmitifica a personagem-autora.
Afinal, a cultura do umbigo é uma espécie de cultura no qual cada um se torna seu próprio mito. E, para mim, é um chute no saco.
Ainda não vi o filme, mas quero ver, pois adoro o Murillo Salles, apesar de ter um pouco de enjôo do averbuck way of life (nossos blogs, nossos amigos, nossas vidas).
Gostei do texto e da análise da proximidade da câmera ao corpo. Acho que em Nunca Fomos Tão Felizes, uma adaptação do Murillo Salles do Conto homônimo de Noll, a câmera também age assim, narrando a vida também de um jovem perdido em outro contexto, o da ditadura civil-militar.
Vou ver esse filme assim que der.
Abraços!!!
Poderia ser qualquer paulistano que se ache "descolado". Conheço o tipo e estar no universo deles é cansativo. Ainda assim, o texto me deixa curioso. A conferir!
Só uma informação, conforme postagem na comunidade Cinema Brasileiro, do Orkut, o filme estréia hoje em várias capitais.
engraçado que acabei de ler uma matéria na Bravo! escrita por Averbuck falando dela e do filme (que, aparentemente, não a agradou muito).
gostei da análise, e do comentário sobre o uso das câmeras digitais. só não posso falar muito porque não vi o filme.
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