A estrada de terra, o guarda de fronteira, a sombra da roda da bicicleta... e o mundo gira. O mundo gira e para em Melo, pequena cidade ao norte uruguaio, região limítrofe. Do outro lado, o Brasil. Há miséria o suficiente para que os comerciantes de Melo contem com os habitantes da cidade para trazerem mantimentos brasileiros de Aceguá. A atividade de mercado negro é reprimida, há o odioso homem do rapa. De um modo ou de outro, aquelas pessoas simples se arriscam, sofrem humilhações, mas tentam viver com tudo isso. Como se fossem os pescadores de Visconti, num filme muito, muito antigo.
Eram dias especiais aqueles. Melo aguardava a visita do papa João Paulo II. Grandes eram as expectativas. 10, 20, 40 mil brasileiros? Tinha que vir muita gente, o consumo seria grande. Entre rodas de candombe e tragos no boteco do Gago, planejavam e corriam atrás. Quantas barracas de chouriço estariam preparadas pra receber a gente do Brasil e da imprensa? Entre eles, estava Beto, igual a todos. Atravessava a fronteira com seu vizinho, o Negro. Queria ter uma moto. Ele tinha uma esposa, Carmem, muito católica, e uma filha, Silvia, sonhadora, que queria ser radialista. E algumas parcas economias. E uma idéia, esta diferente de todas as outras: se os visitantes iriam se empanturrar nas barracas uruguaias, eles também precisariam se aliviar. Daí a idéia de um banheiro. Pois bem, ele correu atrás. E como correu. Quem viu o filme sabe. Quem não viu e queira ver haverá de saber.
O Banheiro do Papa é uma co-produção Brasil/Uruguai/França dotada de um humanismo tocante, que não é a valorização das grandes virtudes humanas, mas sim o registro da luta de uma gente simples que acerta e erra, que tem vícios e alguma esperança. Gente que sua muito pra superar suas limitações. Gente simples, enfim.
Se o filme remete, de alguma forma, ao neo-realismo italiano, também há elementos de um bom humor muito naturalista, como podem comprovar os que viram a película. E, sim, esta é uma qualidade que dá mais prazer em assisti-la.
É, também, um filme em que muitas vezes gestos e impressões são mais importantes que a fala. Quando, após tudo o que se passou, Beto assiste pela TV o jornalista falando sobre o "saldo positivo" da passagem do papa por Melo, a expressão é assombrosa: absurdo e revolta que explodem no instante seguinte. Ponto para o ator Cesar Troncoso, que também impressiona na cena em que vê seus planos irem por água abaixo após uma discussão familiar acerca de Beto ter "vendido a alma ao Diabo" pra alcançar seus objetivos.
Ponto também para os diretores, o brasileiro César Charlone, fotógrafo dos filmes de Fernando Meirelles, Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel e do vindouro Ensaio sobre a Cegueira; e o uruguaio Enrique Fernández, natural de Melo e realizador de curtas e documentários. Ambos ficaram amigos quando Fernández enviou o roteiro de O Banheiro do Papa para Spike Lee, que não se interessou pelo projeto. Mas César Charlone, sim. Ele estava fazendo a fotografia de Sucker Free City, um filme de Spike para a TV americana. Ambos conversaram e decidiram firmar a parceria. Ainda bem.
Um comentário:
"O banheiro do Papa" é um bom filme.
Apesar da influência neo-realista, o filme tem uma linguagem ágil. Tanto na montagem, quando no uso da trilha sonora. Deve ser influência do Fernando Meirelles.
A fotografia é boa, mesmo com aquela intervenção de imagens estáticas que quebra o ritmo.
Hoje, depois de ver o filme há algum tempo, acho que ele perderá o seu brilho numa revisão.
Pois, em revisões, temos o costume de deslocar a apreciação emocional para a racional.
Pela emoção, o filme pega pelos cabelos e arrasta o espectador. Pela razão, os defeitos do filme vão se acentuar.
Me resta, rever para ver.
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