É verdade, a primeira referência quando se trata de cinema japonês é Akira Kurosawa, por meio de seus filmes repletos de dramas humanos, sejam eles ambientados no período feudal como no decorrer do século XX. Não há a menor sombra de dúvidas. Ele foi e é essencial. Mas... do que mais é feito o cinema do distante Japão?
Naturalmente, como todo o mundo, os japoneses tiveram os primeiros contatos com cinema no crepúsculo do século XIX. Este primeiro momento é culpa da Vitascope, empresa americana formada por Thomas Armat e Thomas Edison. Não demorou muito para surgirem por ali as primeiras manifestações de um cinema mudo japonês, que, na verdade, não era totalmente mudo, pois havia, nas salas de cinema, além das habituais orquestras, a figura do benshi, que interpretava as falas de cada personagem de um filme durante a projeção.
Pois bem, já na década de 1920, o Japão viu o surgimento de seus primeiros ícones da sétima arte. Entre os diretores, estavam Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu.
Mizoguchi era especialista, antes da Segunda Guerra, em filmes nos quais o destaque era a mulher japonesa. Entre os principais filmes da primeira fase de sua produção, da década de 1920 até o início da guerra, estão Naniwa Erejii (Elegia de Osaka, 1936) e Gion No Shimai (As Irmãs de Gion, 1936). Com o início do conflito, ele se viu forçado pelo serviço militar japonês a assumir o posto de publicitário. É deste período o épico Genroku Chushingura (A Vingança dos 47 Ronin, 1941). No entanto, após a desastrosa participação japonesa no embate de nível mundial, Mizoguchi pôde ficar à vontade e lidou com temas folclóricos e com aquele que é seu tema mais caro: a mulher. O ápice deste período se traduz nos clássicos Ugetsu Monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953), Chikamatsu Monogatari (Os Amantes Crucificados, 1954) e Sanshô Dayû (O Intendente Sanshô, 1954).
Na primeira fase de sua carreira, Yasujiro Ozu era um convicto defensor dos filmes mudos, como é o caso de Otona No Miru Ehon - Umarete Wa Mita Keredo (Os Meninos de Tóquio ou Eu Nasci, Mas..., 1932). Entre 1937 e 1939, serviu como cabo de infantaria na China, experiência essencial para que ele escrevesse o roteiro de Todake No Kyoudai (Os Irmãos da Família Toda, 1941). Em 1943, quando foi enviado a Cingapura, outro hiato em sua carreira. Embora fosse capaz de cometer comédias extremamente originais, Ozu tinha como forte os dramas familiares. Banshun (Primavera Tardia ou Pai e Filha, 1949) e Tokyo Monogatari (Viagem a Tóquio ou Era Uma Vez em Tóquio, 1953) são exemplos clássicos de sua filmografia e são filmes que marcam também os primeiros anos de uma crescente influência americana em território japonês.
Durante as décadas de 1950 e 1960, os grandes estúdios japoneses passaram por uma crise vertiginosa e tentaram escapar da situação promovendo novos diretores. O mundo mudava e havia o som das motocicletas e seus motoristas rebeldes, o ritmo da música ia acelerando e, entre a fumaça dos cigarros e os tragos de bebidas, do escuro dos american bars surgiam acordes de rock 'n' roll. E, com isso, toda uma postura de uma juventude pouco dada à tradição. Uma juventude que reivindicava o direito de ser selvagem, de buscar outros caminhos que não os dos pais. No cinema, isso se percebia bem através das "novas ondas", sendo a de maior destaque a francesa.
Mas, claro, o Japão também teve sua nouvelle vague e uma nova geração de diretores surgiu, como Nagisa Oshima, que retratou este universo em que a influência americana era cada vez mais presente e a ruptura com as tradições japonesas era inegável em Seishun Zankoku Monogatari (Conto Cruel da Juventude, 1960), filme já citado aqui neste espaço. Paralelamente, Shohei Imamura desumanizava e "animalizava" personagens em filmes como Buta To Gunkan (Todos Porcos, 1961) e Nippon Konchuki (A Mulher Inseto, 1963). Seijun Suzuki, embora obediente empregado do estúdio Nikkatsu, responsável por boa parte dos filmes B da época, foi um tanto além dos parâmetros estabelecidos - um diretor pop, o mais americanizado de seus contemporâneos. São dele obras como Nikutai No Mon (A Barreira de Carne, 1964) e Tokyo Nagaremono (Tóquio Violenta, 1966). Yasuzo Masumura, antigo assistente de realizadores legendários como Mizogushi e Ishikawa, tinha girado pela Itália a estudar cinema. O resultado: enquanto ianques abençoados por Nixon promoviam um banho de sangue no Vietnã, Masumura lançava seu banho de sangue particular, Môjû (Cega Obsessão, 1969), filme que tem como destaque um cenário tão sensual como claustrofóbico, doentio. A temática sensual/sangrenta envolvendo um casal voltaria a ser retratada de forma ainda mais radical em Ai No Korrida (O Império dos Sentidos, 1976), de Nagisa Oshima, então bem conhecido internacionalmente.
O cinema japonês, a princípio, pode ter sido descoberto no mundo em função de Kurosawa, mas os diretores dos sixties também tiveram seu reconhecimento internacional. O terror de belas cores, Kwaidan (Kwaidan - As Quatro Faces do Medo, 1964), rendeu a Masaki Kobayashi o Prêmio Especial do Júri em Cannes. Já na década de 1980, Imamura foi premiado em Cannes com a Palma de Ouro por Narayama Bushiko (A Balada de Narayama, 1983) e voltou a receber o mesmo prêmio por Unagi (A Enguia, 1997), ainda que dividindo-o com o iraniano Abbas Kiorastami, que havia lançado O Gosto da Cereja.
Principalmente a partir dos anos 70/80, o cinema de animação produzido no Japão ganhou grande destaque. Um pouco antes disso surgiu, em 1967, a série de TV Maha Go Go Go (o nosso Speed Racer), que se tornou grande sucesso. Outras séries também foram muito bem sucedidas, inclusive aqui no Brasil. Pra ficar em apenas dois nomes: Saint Seiya (Os Cavaleiros do Zodíaco) e Doragon Bo-ru Zetto (Dragon Ball Z). Mas voltemos aos animes produzidos para cinema. Em 1988, Katsuhiro Otomo decidiu transformar em anime seu mangá Akira, muito cultuado em ambos os formatos. No mesmo ano, Isao Takahata estava lançando o triste e singelo Hotaru No Haka (O Túmulo dos Vagalumes). Em 1996, foi a vez de Kōkaku Kidōtai (Ghost in the Shell ou, ainda, O Fantasma do Futuro), ficção científica finíssima de Mamoru Oshii. Sen To Chihiro No Kamikakushi (A Viagem de Chihiro, 2001), de Hayao Miyazaki, ganhou o Oscar de Melhor Animação e o Urso de Ouro do Festival de Berlim.
Chegamos, então, aos dias contemporâneos. Claro, o anime, seja para TV ou para as grandes telas, é uma indústria enorme, mas nem só deles, os animes, vive o cinema japonês. Takeshi Kitano é um dos mais inventivos diretores das últimas duas décadas e já nos deu obras como Sonatine (Adrenalina Máxima, 1993), Hana-Bi (Hana-Bi - Fogos de Artifício, 1997) e Dolls (2002), também já esmiuçado por aqui. Herdeiro do absurdo e do gore é o diretor Takashi Miike, que também já apareceu por estas bandas. Alguns dos seus filmes de destaque são Bizita Q (Visita Q, 2001), Koroshiya 1 (Ichi, o Assassino, 2001) e Sukiyaki Western Django (2007), que contou com a atuação de um aclamado Quentin Tarantino.
Pronto, é isso! São tantos nomes importantes, tantos realizadores em mais de 100 anos de cinema japonês, que é impossível falar de todos num texto como este sem me esquecer de alguns nomes e sem me tornar enfadonho, risco que corri - espero que não tenha sido assim a leitura de vocês. No entanto, sempre se pode citar outros nomes, em outros momentos. Fica assim encerrada a homenagem que, se não foi necessariamente aos 100 anos de imigração japonesa no Brasil, visto que há poucos filmes sobre o tema, acabou sendo um tributo ao cinema japonês. Então este cara aqui, bem brasileiro, despede-se de vocês em bom japonês: sayonara!
Naturalmente, como todo o mundo, os japoneses tiveram os primeiros contatos com cinema no crepúsculo do século XIX. Este primeiro momento é culpa da Vitascope, empresa americana formada por Thomas Armat e Thomas Edison. Não demorou muito para surgirem por ali as primeiras manifestações de um cinema mudo japonês, que, na verdade, não era totalmente mudo, pois havia, nas salas de cinema, além das habituais orquestras, a figura do benshi, que interpretava as falas de cada personagem de um filme durante a projeção.
Pois bem, já na década de 1920, o Japão viu o surgimento de seus primeiros ícones da sétima arte. Entre os diretores, estavam Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu.
Mizoguchi era especialista, antes da Segunda Guerra, em filmes nos quais o destaque era a mulher japonesa. Entre os principais filmes da primeira fase de sua produção, da década de 1920 até o início da guerra, estão Naniwa Erejii (Elegia de Osaka, 1936) e Gion No Shimai (As Irmãs de Gion, 1936). Com o início do conflito, ele se viu forçado pelo serviço militar japonês a assumir o posto de publicitário. É deste período o épico Genroku Chushingura (A Vingança dos 47 Ronin, 1941). No entanto, após a desastrosa participação japonesa no embate de nível mundial, Mizoguchi pôde ficar à vontade e lidou com temas folclóricos e com aquele que é seu tema mais caro: a mulher. O ápice deste período se traduz nos clássicos Ugetsu Monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953), Chikamatsu Monogatari (Os Amantes Crucificados, 1954) e Sanshô Dayû (O Intendente Sanshô, 1954).
Na primeira fase de sua carreira, Yasujiro Ozu era um convicto defensor dos filmes mudos, como é o caso de Otona No Miru Ehon - Umarete Wa Mita Keredo (Os Meninos de Tóquio ou Eu Nasci, Mas..., 1932). Entre 1937 e 1939, serviu como cabo de infantaria na China, experiência essencial para que ele escrevesse o roteiro de Todake No Kyoudai (Os Irmãos da Família Toda, 1941). Em 1943, quando foi enviado a Cingapura, outro hiato em sua carreira. Embora fosse capaz de cometer comédias extremamente originais, Ozu tinha como forte os dramas familiares. Banshun (Primavera Tardia ou Pai e Filha, 1949) e Tokyo Monogatari (Viagem a Tóquio ou Era Uma Vez em Tóquio, 1953) são exemplos clássicos de sua filmografia e são filmes que marcam também os primeiros anos de uma crescente influência americana em território japonês.
Durante as décadas de 1950 e 1960, os grandes estúdios japoneses passaram por uma crise vertiginosa e tentaram escapar da situação promovendo novos diretores. O mundo mudava e havia o som das motocicletas e seus motoristas rebeldes, o ritmo da música ia acelerando e, entre a fumaça dos cigarros e os tragos de bebidas, do escuro dos american bars surgiam acordes de rock 'n' roll. E, com isso, toda uma postura de uma juventude pouco dada à tradição. Uma juventude que reivindicava o direito de ser selvagem, de buscar outros caminhos que não os dos pais. No cinema, isso se percebia bem através das "novas ondas", sendo a de maior destaque a francesa.
Mas, claro, o Japão também teve sua nouvelle vague e uma nova geração de diretores surgiu, como Nagisa Oshima, que retratou este universo em que a influência americana era cada vez mais presente e a ruptura com as tradições japonesas era inegável em Seishun Zankoku Monogatari (Conto Cruel da Juventude, 1960), filme já citado aqui neste espaço. Paralelamente, Shohei Imamura desumanizava e "animalizava" personagens em filmes como Buta To Gunkan (Todos Porcos, 1961) e Nippon Konchuki (A Mulher Inseto, 1963). Seijun Suzuki, embora obediente empregado do estúdio Nikkatsu, responsável por boa parte dos filmes B da época, foi um tanto além dos parâmetros estabelecidos - um diretor pop, o mais americanizado de seus contemporâneos. São dele obras como Nikutai No Mon (A Barreira de Carne, 1964) e Tokyo Nagaremono (Tóquio Violenta, 1966). Yasuzo Masumura, antigo assistente de realizadores legendários como Mizogushi e Ishikawa, tinha girado pela Itália a estudar cinema. O resultado: enquanto ianques abençoados por Nixon promoviam um banho de sangue no Vietnã, Masumura lançava seu banho de sangue particular, Môjû (Cega Obsessão, 1969), filme que tem como destaque um cenário tão sensual como claustrofóbico, doentio. A temática sensual/sangrenta envolvendo um casal voltaria a ser retratada de forma ainda mais radical em Ai No Korrida (O Império dos Sentidos, 1976), de Nagisa Oshima, então bem conhecido internacionalmente.
O cinema japonês, a princípio, pode ter sido descoberto no mundo em função de Kurosawa, mas os diretores dos sixties também tiveram seu reconhecimento internacional. O terror de belas cores, Kwaidan (Kwaidan - As Quatro Faces do Medo, 1964), rendeu a Masaki Kobayashi o Prêmio Especial do Júri em Cannes. Já na década de 1980, Imamura foi premiado em Cannes com a Palma de Ouro por Narayama Bushiko (A Balada de Narayama, 1983) e voltou a receber o mesmo prêmio por Unagi (A Enguia, 1997), ainda que dividindo-o com o iraniano Abbas Kiorastami, que havia lançado O Gosto da Cereja.
Principalmente a partir dos anos 70/80, o cinema de animação produzido no Japão ganhou grande destaque. Um pouco antes disso surgiu, em 1967, a série de TV Maha Go Go Go (o nosso Speed Racer), que se tornou grande sucesso. Outras séries também foram muito bem sucedidas, inclusive aqui no Brasil. Pra ficar em apenas dois nomes: Saint Seiya (Os Cavaleiros do Zodíaco) e Doragon Bo-ru Zetto (Dragon Ball Z). Mas voltemos aos animes produzidos para cinema. Em 1988, Katsuhiro Otomo decidiu transformar em anime seu mangá Akira, muito cultuado em ambos os formatos. No mesmo ano, Isao Takahata estava lançando o triste e singelo Hotaru No Haka (O Túmulo dos Vagalumes). Em 1996, foi a vez de Kōkaku Kidōtai (Ghost in the Shell ou, ainda, O Fantasma do Futuro), ficção científica finíssima de Mamoru Oshii. Sen To Chihiro No Kamikakushi (A Viagem de Chihiro, 2001), de Hayao Miyazaki, ganhou o Oscar de Melhor Animação e o Urso de Ouro do Festival de Berlim.
Chegamos, então, aos dias contemporâneos. Claro, o anime, seja para TV ou para as grandes telas, é uma indústria enorme, mas nem só deles, os animes, vive o cinema japonês. Takeshi Kitano é um dos mais inventivos diretores das últimas duas décadas e já nos deu obras como Sonatine (Adrenalina Máxima, 1993), Hana-Bi (Hana-Bi - Fogos de Artifício, 1997) e Dolls (2002), também já esmiuçado por aqui. Herdeiro do absurdo e do gore é o diretor Takashi Miike, que também já apareceu por estas bandas. Alguns dos seus filmes de destaque são Bizita Q (Visita Q, 2001), Koroshiya 1 (Ichi, o Assassino, 2001) e Sukiyaki Western Django (2007), que contou com a atuação de um aclamado Quentin Tarantino.
Pronto, é isso! São tantos nomes importantes, tantos realizadores em mais de 100 anos de cinema japonês, que é impossível falar de todos num texto como este sem me esquecer de alguns nomes e sem me tornar enfadonho, risco que corri - espero que não tenha sido assim a leitura de vocês. No entanto, sempre se pode citar outros nomes, em outros momentos. Fica assim encerrada a homenagem que, se não foi necessariamente aos 100 anos de imigração japonesa no Brasil, visto que há poucos filmes sobre o tema, acabou sendo um tributo ao cinema japonês. Então este cara aqui, bem brasileiro, despede-se de vocês em bom japonês: sayonara!
Um comentário:
O texto é um inventário do cinema japonês.
E, convenhamos, necessário, pois sempre confundimos cinema japonês com Akira Kurosawa.
Mesmo ele sendo o maior diretor japonês, muitos podem peitá-lo. E conquistar a preferência de vários cinéfilos.
Postar um comentário