2 de ago. de 2008

Os vários instantes de John Cassavetes - Parte II: "FACES"


Na primeira cena do filme vemos Richard Forst (John Marley) descendo as escadas de um escritório, cumprimentando algumas secretárias e indo participar de uma espécie de reunião em uma sala de exibição. Não sabemos quem são os participantes, onde fica o local, qual o sentido real do encontro – apenas que haverá a apresentação de uma película, uma espécie de A doce vida mais crua e sincera, de acordo com um dos presentes – e muito menos entendemos as piadas internas que vez ou outra uns soltam entre si. A câmera acompanha tudo de perto, filmando closes de expressões, risos e reações; os cortes são secos; algumas falas atropelam outras. A projeção começa. Não sabemos como tudo vai terminar. Em pouco menos de cinco minutos John Cassavetes diz a que veio.

O filme, adaptação cinematográfica de uma peça teatral escrita pelo próprio Cassavetes e nunca montada, teve vários títulos de trabalho – Os dinossauros, Um fá e oito lá’s, O casamento americano – até chegar ao que conhecemos, e sua temática, como entregam alguns dos nomes, tem a ver com a crescente hipocrisia, desintegração e brutalização das relações humanas. O realizador parte da corrosão de um casamento, e da documentação das reações e decisões de cada um dos envolvidos, o já citado Richard Forst, e sua mulher, Maria (Lynn Carlin), para expor um painel impressionista do que ele chamava de modo de viver da classe média americana. Richard se apaixona por uma garota de programa, Jeannie (Gena Rowlands), e Maria, junto com algumas amigas, acaba conhecendo Chet (Seymour Cassel).

Faces não é apenas um estudo de personagens ou um filme de ator para atores. A proximidade da câmera e o estilo naturalista de encenação, bem como o roteiro, deixam claro que existe muito mais para ser notado, e que esse “muito mais”, assim como o caráter de todos os envolvidos na história, não vai aparecer através de planos explicativos ou diálogos expositivos. É preciso atentar para os sinais e reações do corpo, para a entonação que muda, para onde se dirige o olhar. É um filme que fala, sobretudo, de relações entre indivíduos que se escondem dentro de uma carcaça de pessoa bem sucedida, feliz, agressiva, atuante. E por justa causa não há um momento de descanso para o espectador. É necessário seguir analisando os vários momentos para só assim ter idéia do que acabou de acontecer.

É ai que a experiência de assistir um filme do Cassavetes se torna singular. Não é possível avaliar um personagem por apenas uma cena; não existe aquela seqüência-resumo que vai ecoar na mente de qualquer um que queira explicar para o amigo o porquê de determinada figura dramática ter exercido tal ação. A maneira de entender os Forst e seus “amigos” adota um esquema de tentativa e erro, onde o espectador segue analisando, concluindo e comparando os tiques, falas e trejeitos plano a plano, até chegar a uma conclusão final (e menos falível) nos créditos finais.

Logo no início, um dos personagens dá a dica. Freddie (Fred Draper), acompanhado por Richard Forst, diz para Jeannie: “Não se deixe enganar pelo exterior sofisticado!”. Ele estava falando do amigo, mas fica claro ao longo da projeção que o aviso dado serve para todos os presentes no filme. O bem-estar e sofisticação – ternos bonitos, empregos bons, reputação, casas bem cuidadas – são a máscara perfeita para pessoas tristes, crianças amarguradas e especialmente inseguras que, cientes do ambiente predatório que freqüentam, analisam demais antes de dar qualquer passo, sob o risco de arruinar o disfarce. E como não são perfeitos, vez ou outra a máscara quebra. Não é coincidência que o diretor muitas vezes escolha não mostrar a ação principal – dois personagens brigando, se encarando, discutindo, ou dançando –, mas sim planos de personas secundárias observando tudo.

O longa, assim como a vida real, é extremamente imprevisível, com estranhos altos e baixos numa mesma cena. Contribuem para essa sensação os atores, em especial Marley e Cassel, que exibem uma paixão crua em todos os momentos, inclusive naquelas partes em que aparentemente não acontece nada. As interações entre os personagens, principalmente as risadas, amarelas ou não, são tão reais que muitas vezes parece que estamos vendo um daqueles vídeos de reuniões familiares que algum tio gravou sem que ninguém soubesse. (Sim, é uma comparação bizarra, mas espero que entendam o punctum da frase.)

Nota-se também um Cassavetes apaixonado, mais seguro do que pode fazer com uma câmera em mãos e tempo suficiente para acertar tudo da melhor forma. Está anos luz à frente de Shadows, graças, principalmente aos atores, e exibe uma vitalidade incomparável dentro da forte filmografia do próprio diretor, mas não é perfeito.

A câmera livre que o realizador tanto procurava, fazendo uso do ângulo “possível” e não do mais “cinematográfico”, “dramático”, etc., está lá, atuante, mas não sem problemas. Graças às movimentações dos atores e do próprio equipamento, algumas vezes o foco se perde, ou, nos piores casos, não encontra o objeto principal da cena, deixando atores levemente embaçados quando não deveria. (Sim, apesar disso, o trabalho fotográfico é magistral. Quero ver alguém ter coragem pra fazer filme sem marcação hoje em dia. Falarei mais sobre isso no futuro post sobre Husbands) O som não é dos melhores, o que dificulta o entendimento de algumas cenas onde os diálogos são sobrepostos rapidamente.

Faces é único em sua beleza crua. Talvez possa causar estranheza nos primeiros minutos, mas é uma experiência recomendada. Acredito que a graça está em ir para o Cinema e sair dizendo a mesma coisa que diz a letra dos créditos finais: “Nunca me senti assim antes”.

2 comentários:

Alessandro disse...

Acabo de encarar Faces. Incrível como estes personagens, estas vidas são tão palpáveis, tão próximas de nós. Comparar sempre é um perigo, mas sim, é possível dizer que é La Dolce Vita mais hard ainda.

Um tapa na cara, um soco no estômago, um tiro na cabeça, top 10 de tudo que já vi.

pseudo-autor disse...

Um mestre, acima de tudo. Tive a honra de ver Faces num cinema à altura. Recomendo A Morte do Bookmaker Chinês. Ele foi um grande influenciador de cineastas como Michael Mann e Sidney Pollack. Pena que hoje em dia está cada vez mais difícil encontrar homens de cinema com a sua visão!

Mídia e cultura:
http://robertoqueiroz.wordpress.com

 
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