17 de set. de 2008

100 anos sem Machado: "DOM"

Quando estava no colégio, a experiência de ler Dom Casmurro foi horrível. Movido por uma obrigação que envolvia resumos para a aula de literatura, fichamentos, apresentações, provas e simulados que tentavam exaltar uma fórmula-mor para o estilo machadiano, passei semanas lendo e relendo sem a mínima vontade ou concentração. Não entendia o que tinha de genial na história do homem que, de tão paranóico, passava a vida achando que tinha sido corneado. Anos depois, embalado por uma estranha força de vontade, consegui vencer o trauma e reli a obra do escritor, que se mostrou muito mais potente do que parecia tempos atrás (E bem mais complexa do que um “traiu mesmo?”). Não se tornou meu autor preferido, mas o desgosto, tão presente nas memórias colegiais, sumiu. Pelo menos até hoje, quando assisti Dom, adaptação de Moacyr Góes, diretor também responsável por, entre outros, Maria, mãe do filho de Deus e Trair e coçar é só começar.

O filme soa tão burocrático e raso quanto os trabalhos que um dia fui obrigado a fazer sobre o livro. Além disso, é uma espécie de aula fraca e diluída sobre um ponto em especial do trabalho de Assis – no caso, o ciúme doentio do personagem principal –, esquecendo todo o resto e apelando para soluções cinematográficas fáceis, e não necessariamente interessantes, como o uso da voz em off como muleta narrativa. Mas até onde o filme erra e acerta, se, logo no começo, os letreiros indicam não ser uma adaptação literal, mas sim uma ”inspiração” a partir do original?

Ignoremos, portanto, o Dom Casmurro e fiquemos apenas com o Dom, título do filme. A história, ambientada no século XXI, segue a trajetória de Bento (Marcos Palmeira), homem que tem um bom trabalho, vive bem, e que acaba reencontrando Ana (Maria Fernanda Candido), uma dançarina e atriz, ao visitar o set de filmagens onde Miguel (Bruno Garcia) é o diretor. O personagem de Palmeira logo explica que seu nome tem a ver com os pais, grandes apreciadores da obra machadiana. Descobre-se pouco tempo depois que Ana era uma antiga namorada e que o próprio Bento a apelidara de Capitu, graças aos tais olhos de ressaca. Cabe, portanto, à Miguel se tornar o suposto pivô da crise de ciúmes que vai ocorrer durante a projeção.


Góes acerta em vários detalhes. Os personagens não são pudicos, Ana está longe de ser passiva e é bastante transparente quanto as suas escolhas (Querer trabalhar, ao invés de virar madame, por exemplo) e todos estão, de fato, inseridos dentro do contexto: São Paulo e Rio de Janeiro, com apartamentos, teatros, sets de filmagem, bares, etc. As questões de traição, individualidade, memória e relacionamentos são tratadas, por justa causa, em um viés bem diferente do livro (A separação, por exemplo, já não é coisa do outro mundo). O problema é que o diretor não consegue sustentar o trabalho a partir dos recortes que escolheu e vai se perdendo, pouco a pouco, num emaranhado de clichês e parco desenvolvimento dos bons personagens que tinha em mãos.

Bento tem duas preocupações essenciais no filme: A memória (de Ana criança, do namoro, da antiga casa, do antigo amigo Miguel) e o ciúme crescente. É um material rico para desenvolvimento narrativo, mas, depois de 40 minutos, vemos apenas uma crise de ciúmes de alguém com tempo suficiente para ficar pensando (e fazendo) besteira. Os inserts do passado surgem anêmicos, em seqüências bobas, redundantes e sem força, que, quando não estão sendo embaladas pelo dispensável off, só ressaltam o fato óbvio da paixão do personagem pela moça. Em outro momento, os flashbacks surgem explicativos, sublinhando cenas anteriores, no caso de alguém não ter entendido as motivações do Dom. Para onde foi a força da memória, tão importante no projeto? Para o chão da sala de edição, possivelmente.

Além disso, a construção imagética do filme é insípida. É fotografado como uma novela ruim (Sombras? Nada disso. O negocio é meter Fill Light em todo canto, mesmo que o cenário seja um beco escuro e mal iluminado. Ah, e lembremos do close + campo/contra-campo), com uma direção de arte de novela ruim (apartamento genérico, teatro genérico) e encenado como uma novela ruim, com tons exagerados ao falar e discutir. Isso tudo seria perfeito caso o diretor tivesse embarcado dentro da ironia e sarcasmo presente na obra original, que vez ou outra caçoava do estilo “novelístico” de ser de alguns personagens e da própria trama, mas não é o que ocorre. Todos se levam a sério demais.

Não tenho nada contra adaptações e inspirações a partir de literatura, teatro, pintura, seja lá o que for, mas ressalto que é necessário ter em mente como usar as várias ferramentas cinematográficas para este fim. Góes, dentro de sua proposta, começa bem, mas, no decorrer da trama, vai deixando de lado as próprias escolhas, sem desenvolvê-las, e entrega um produto final ruim. Lembro de uma frase de um personagem de um conto de Tchekhov, que diz que, com o tempo, os detalhes da memória vão sumindo, e o que fica, no final, é apenas uma sensação. Espero que de Dom não sobre nada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Realmente não é um bom filme.

Machado de Assis é um escritor problemático em se adaptar ao cinema?

Parece que sim: quando recorrem à atualização da trama, vira uma novela das oito; quando não recorrem, o filme fica sem vida.

Talvez há alguma adaptação que me queima a língua, mas por enquanto não tive a sorte de assisti-la.

 
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