16 de set. de 2008

Estudos culturais ou quem tem o direito de mostrar quem num filme?

Alguns dos rebentos da esquerda inglesa decepcionada com a denuncia do stanilismo, que participaram da famosa revista New Left Review, foram responsáveis pela fundação de uma das mais importantes ondas intelectuais do século XX, a qual transformou a percepção de críticos e estudiosos do cinema: os estudos culturais. Três obras tiveram importância fundadora: Os Usos da Cultura (1957), de Richard Hoggart; Cultura e Sociedade (1958), de Raymond Williams; e A Formação da Classe Operária (1968), de Edward Thompson. Todos foram estudos de marxistas ingleses que querima provar a dimensão e a importância da esfera cultural na constituição da sociedade. Eles se rebelavam contra a idéia de que a cultura era determinada pela estrutura econômica, mostrando o quanto esta era influenciada dialeticamente por aquela.

Graças aos que adotaram muitas das idéias lançadas naquelas três obras, muitos estudiosos passaram a constituir na Inglaterra, a partir do Center for Contemporary Cultural Studies na Universidade de Birmingham, uma nova forma de estudos interdisciplinares os quais, com os anos foi incorporado pelos departamentos de letras, comunicação e cinema (estes mais tardiamente) em universidades inglesas e norte-americanas sob o nome de cultural studies, os estudos culturais. Esta nova proposta disciplinar acabou se tornando num paradigma ou modelo teórico-analítico das ciências sociais e humanas e estava interessado em fazer uma avaliação crítica das produções culturais, entre obras de arte e obras da indústria cultural. O que se seguiu foi uma grande avalanche de estudos críticos sobre romances, poesias, filmes, novelas, artes visuais, peças, do ponto de vista da representação de grupos culturais, principalmente aqueles tidos como minoritários e que não possuiam acesso direto à realização de obras culturais.

Os estudos culturais deram abertura aos que estavam interessados em questões como a representação do negro no cinema, ou a presença dos índios nos westerns, ou o homossexualismo na literatura francesa, ou a representação da classe operária no teatro britânico, etc. Desta forma, grupos sociais que não possuiam formas de se auto-representar na indústria cultural, por exemplo, como negros, gays e lésbicas, indígenas, latinos (nos EUA), indianos (na Inglaterra), operários, mulheres, etc, encontraram nos estudos culturais um meio acadêmico interesssado em estudar as formas de dominação que o status quo cultural havia criado para manter o “controle” sobre estes grupos. Também serviriam, quem sabe, para elaborar estratégias para intervir nessa dominação e incentivar consciência crítica e articular mudanças na representação cultural.

Quais os tipos de “conscientização” que implicaram os estudos culturais e como influenciaram no cinema? No cinema sua influência partiu primeiramente da “aliança” que os estudos culturais fizeram com o movimento feminista, os movimentos de reinvindicação de direitos pelos negros norte-americanos, e os movimentos sociais pelos direitos homosseuxuais, que acabaram criando, ao longo dos anos 1960 e 1970 nos EUA e Inglaterra, uma consciência política de que as minorias precisam ter suas reinvindicações antendidas e entre estas necessidades estavam a de serem representada de uma forma “correta”, justa e não preconceituosa. Ali se encontrava um dos germes da onda conhecida como “politicamente correto”. Desta forma começou-se a desenvolver uma consciência de que não se pode representar um negro num filme de forma pejorativa, pois a própria encenação de um enredo no qual um negro, ou gay, ou árabe, ou operário apareça marcaria o filme dentro de um quadro político. O fato de que o cinema americano representar, até os anos 1960, os negros primordialmente como escravos ou em funções sociais “inferiores”, ou ainda colocar homossexuais como pervertidos, demonstraria menos a realidade em si e mais um desejo de dominação que se realiza pela continuidade de uma representação cinematográfica racista, homofóbica, misógina, anti-étnica ou o que quer que seja. Os estudos culturais ajudaram a construir a idéia de que representar cinematograficamente é um ato político, desenvolvendo uma consciência crítica sobre os filmes, telefilmes e programas de televisão.

Então, alimentados por movimentos sociais e pelos estudos culturais, crescia cada vez mais um ativismo político dos cineastas que diferia do engajamento entre direita e esquerda tradicionais, comunistas ou burgueses e percebia um compromisso com questões sociais referentes as identidades dos grupos sociais representados nos filmes. Trata-se de uma consciência prática da parte de cineastas que passaram a pensar seu “fazer filmes” como um ato de intervenção política, fazendo-os inclusive com alguns cineastas questionem outros realizadores sobre o (ou a falta de) compromisso social. Eis uma das maiores manifestações do “politicamente correto”. O caso mais famoso é talvez o de Spike Lee que se dedicou a realizar filmes polêmicos sobre as comunidades negras nova-iorquinas como Faça a Coisa Certa (1989) ou sobre mitos políticos negros ianques Malcom X (1992), mostrando o quanto a América possuia uma explosiva tensão racial. Embora desde a década de 1970 o Black Power já fosse importante e tivesse aparecido numa onda importante de filmes afirmativos da negritude americana, do qual Shaft (1971) é o exemplo clássico, a novidade dos filmes de Lee eram seu ativismo político de denuncia da tensão racial e de assumir os problemas e limites do que significa a representação do negro no cinema dos EUA. Quando começou como cineasta, Lee era profundamente radical ao considerar que apenas um afro-americano seria capaz de fazer um filme sobre personagens afro-americanos. Desta forma, apenas negros teriam legitimidade de fazer filmes sobre negros, uma vez que o olhar branco era necessariamente dominador, eurocêntrico e racista. Recentemente Spike Lee voltou a demonstrar sua verve numa polêmica contra Clint Eastwood. Radicalizando uma vez mais a idéia de que não mostrar negros num filme é um ato de racismo, interpelou Eastwood sobre o porquê de seus então últimos filmes (Código de Honra, 2006, e Cartas de Iwo Jima, 2006) não terem personagens negras de destaque. Por trás da intervenção de Lee estava a idéia de que uma das formas de combater o racismo e desfazer uma provável sub-representação dos negros no cinema americano, é garantir a presença de negros nos filmes, forçando os roteiros a um posicionamento político explícito.


O radicalismo de Lee foi, durante um tempo, endossado pelos estudos culturais, que reinvindicavam o direito dos negros de serem a voz principal nas questões que lhes fosem referentes. Tal onde arrefeceu com os anos embora o radicalismo tenha permaneceido em alguns nichos dos movimentos sociais ianques, britânicos e até brasileiros. Todavia, uma das boas introduções dos estudos culturais foi com a idéia de que é preciso ficar atento a como os grupos sociais (todos) são representados no cinema, pois isso pode denunciar as relações de poder numa dada sociedade. Assim, perguntas tais: como aparecem brancos, homens, mulheres, gays, negros e outros grupos étnicos nos filmes? São geralmente pobres ou ricos? São protagonistas ou antagonistas? São personagens com diversas nuances psicológicas ou chapados? Em que medida são estereotipados (que não precisa necessariamente ser uma minoria)? lançaram novos olhares sobre o cinema, permitindo observar que o que antes parecia corriqueiro e banal pode dizer respeito a uma relação de dominação no qual um grupo que tem recursos para representar o “outro”, acaba mostrando este como um subalterno e/ou inferiorizado e/ou incapaz, marcando o monopólio do poder de representar.


No Brasil podemos dizer que isso pode ser revisto quanto à recorrência e predominância das imagens do nordeste como pobre, rural e atrasado (Vidas Secas ,1963; Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964; Os Deuses e os Mortos, 1970; Baile Perfumado, 1997; Central do Brasil, 1997; Abril Despedaçado, 2001; Cinema, Aspirinas e Urubus, 2005; Árido Movie, 2006; Baixio das Bestas, 2007) frente um Sul moderno e urbano, ainda que violento (Noite Vazia, 1964; São Paulo S.A., 1965; As Amorosas, 1966; O Bandido da Luz Vermelha, 1969; O Amuleto de Ogum, 1974; Toda Nudez Será Castigada, 1973; A Hora da Estrela, 1985; Bossa Nova, 2000; Cidade de Deus, 2002; Nina, 2004; Zuzu Angel, 2006).

Também a representação dos negros no cinema brasileiro pode ser problematizada uma vez que até hoje, a maioria das imagens está ligada aos mitos históricos referentes principalmente à escravidão (Ganga Zumba (1964), Xica da Silva (1976), Quilombo (1984), Chico Rei (1985)) ou à marginalização (Rainha Diaba, 1976; Madame Satã, 2001; Cidade de Deus, 2002; Cidade dos Homens, 2007), quando não às questões religiosas (O Amuleto de Ogum, 1974; Tenda dos Milagres, 1977; A Força de Xangô, 1978; Narradores de Javé, 2003), e aos trabalhadores braçais (Eles Não Usam Black Tie, 1981; Jubiabá, 1987). Assim, nos meios acadêmicos, pipocam trabalhos no Brasil sobre negros, gays, operários, bandidos, mulheres, o sertão, a favela no cinema brasileiro numa perspectiva afinada com os estudos culturais.


Essa perspectiva ajuda a compreender o sentido de algumas ausências ou presenças nos filmes em contraste com a realidade social. Senão, porque o cinema norte-americano insiste em mostrar presidentes negros desde a década de 1990, dos quais talvez o mais clássico tenha sido Morgan Freeman em Impacto Profundo (1998), quando somente hoje, em 2008, arrisca-se a se eleger um negro à presidência dos EUA? O que inicialmente pode parecer uma brincadeira, tais como Freeman como Deus em bobagens aparentes como Todo Poderoso (2003); Maurício Gonçalvez como Jesus Cristo em Auto da Compadecida (2000); dois cowboys fugindo para as montanhas para namorarem em Brokeback Mountain (2006); ou aparecer um Recife urbano e agitado em Amarelo Manga (2002), acaba adquirindo outra dimensão se visto pelo plano dos estudos culturais.

Um comentário:

Anônimo disse...

Pôxa, ótimo texto. Ler estas considerações, escritas em 2008, agora, em 2013, é particularmente interessante, diante da já há tempos realizada eleição de Obama e das novas críticas feitas por Spike Lee ao Tarantino. Ver um filme é uma experiência tão múltipla, tão ativa... Incrível como se sentar em um poltrona e apenas ver, representa muito mais do que apenas ver passivamente. Não me livro deste vício da cinefilia nunca.

Karina.

 
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