29 de out. de 2008

Brasil: Cinema e Política - Eles Não Usam Black-Tie

Às vezes temos a sensação de que a biografia de alguém precisaria de mais anos para comportar tantos acontecimentos. Talvez induzimos nosso sentimento por incorporarmos os desdobramentos sócio-políticos ao indivíduo. Contudo, se ele for espectador bovino da História, o exercício será vazio. O diretor Leon Hirszman exemplifica a hipótese. Sua biografia poderia resumir-se à sua condição de filho de judeus poloneses foragidos das perseguições antissemitas da Europa Central e ao fato de ter passado quase metade da sua vida numa ditadura. Mas não. Viveu um período turbulento do Brasil e participou ativamente do turbilhão.

Nasceu no Rio de Janeiro em 22 de novembro de 1937. Pai comunista e mãe praticante do judaísmo ortodoxo. Educação tradicional na escola israelita Scholem Aleichem e atração pelo futebol de rua. Ingressou na Escola Nacional de Engenharia e nela participou da criação do seu primeiro cineclube. Em 1958, com Paulo Cezar Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade, fundou a Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, visando não só a exibição, como a discussão e a produção de um cinema brasileiro, com linguagem e temática próprias. Como não poderia deixar de ser, trocou a engenharia pelo cinema.

Juntou-se ao grupo do Teatro de Arena, formado por Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Ovuvaldo Vianna Filho. Em 1961, participou da fundação do Centro Popular de Cultura da UNE, que produziria no ano seguinte seu primeiro filme, Pedreira de São Diogo, exibido ao lado de outros quatro curta-metragens como Cinco Vezes Favela, um dos marcos iniciais do Cinema Novo. Com o Golpe de 1964, refugiou-se no Chile, para um ano depois voltar e fundar com Marcos Faria a Saga Filmes, que iria a falência devido as dívidas de S. Bernardo, produzido em 1972.

Sua participação política como cineasta era intensa, trabalhou pela organização da categoria, pela regulamentação das leis de cinema e pelo fim da censura, anota Carlos Augusto Calil no livreto que acompanha a Coleção Leon Hirszman 01-02 da Videofilmes. No início dos anos 80, participou da fundação da Cooperativa Brasileira de Cinema. Antes de falecer, em decorrência do HIV, concluíra a trilogia Imagens do Inconsciente, sobre o trabalho pioneiro da dra. Nise da Silveira, e preparava-se para filmar Canudos.

Mas o filme que o consagrou definitivamente foi lançado 6 anos antes da sua morte, em 1981. Trata-se de uma revisão de Leon Hirszman da cultura brasileira, do Cinema Novo, do movimento social, da política sob a ótica de alguém que viveu a idealização da realidade brasileira pré-Golpe de 1964 e a certeza de que a construção de uma sociedade mais justa tem como obstáculos as contradições do país. Não é à toa que o movimento social em Pedreira de São Diogo é monolítico enquanto em Eles Não Usam Black-Tie tem antagonistas que podem levá-lo para lá e para cá, além de indivíduos no interior dele que rejeitam-no por acreditarem que a conquista de uma categoria é ilusão, de que ela apenas dá-se egoisticamente.

Eles Não Usam Black-Tie é baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri, que assina o roteiro com o Leon Hirzsman e interpreta um dos protagonistas, e influenciado pela Greve do ABC de 1979, acompanhada de perto pelo diretor e por sua equipe de filmagens, no qual originará o documentário ABC da Greve, finalizado em 1990 pelo fotógrafo Adrian Cooper. A dialética entre ficção e realidade é orgânica, ao mesmo tempo que o filme é inteligível enquanto obra ficcional, qualquer espectador desconhecedor da política e do sindicalismo envolve-se com a trama, joga luz sob os embates ideológicos da abertura política e do surgimento de um ator social que também quer participar ativamente da reconstrução da democracia no Brasil. A trajetória do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema revela a lenta gestação da participação política dos trabalhadores: Lula empregou-se como torneiro mecânico em 1963, filiou-se ao sindicato em 1968, no ano seguinte entrou para a diretoria, assumiu a presidência em 1975 e foi reeleito em 1978, quando estouraram as grandes greves, ainda sob a repressão da ditadura civil-militar, radiografa ABC da Greve.

A sinopse, por si só, revela a complexidade da luta social. O operário Tião (Carlos Alberto Riccelli) namora a colega de fábrica Maria (Bete Mendes). Ele marca o casamento quando ela revela sua gravidez. As perspectivas são limitadas pela falta de dinheiro. Estoura a greve, mesmo a julgando precipitada, o líder sindical Otávio (Gianfrancesco Guarnieri), pai de Tião, participa ativamente. A precipitação ocorre por causa de demissões, entre elas de lideranças. Tudo leva a crer que foram escolhidos a dedo. Tião fura a greve porque vê no pacto com o patrão a possibilidade de ascensão na fábrica, com melhores salários, seguindo o conselho de Zino (Anselmo Vasconcelos). Fica isolado, sua namorada também participa da greve. O conflito explode no interior da família.

A condução de Leon Hirszman deixa as contradições do movimento social tomarem conta da tela, sem deixar de enfatizar que a força dele não é produto do heroísmo de um líder, mas do esforço conjunto de todos. Mesmo assim ele deixa Tião seguir seu caminho. Sem esquecer jamais dos dramas individuais de todos os envolvidos. Não é à toa que Romana (Fernanda Montenegro) surge como personagem a manter a perseverança de seu marido Otávio e a do seu filho Tião. Ambos têm em seus bolsos o endereço de casa posto por ela, o primeiro quando sai para os piquetes e o segundo ao escolher seu modo de viver.

Um comentário:

Hudson disse...

Ainda não vi o filme, porém, fiquei com mais vontade de assiti-lo,Leon Hirszman faz um cinema engajado, vejo seus documentários políticos no mesmo patamar de Eduardo Coutinho e Vladimir Carvalho.

E embora não tenha assistido o filme, gostei muito do último parágrafo do texto, onde podemos notar uma "não interferência" ao retratar as complexidades dos movimentos sociais.

Gostei muito de "O ABC da Greve". Creio que podemos trabalhar num texto relacionando esse filme e Peões do Coutinho, o que acha?

 
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