Richard Linklater Amargo Reencontro (Tape; 2001), em seu filme , testa os limites do cinema. Para isso, tranca-o num quarto de hotel. O filme está proibido de sair e os planos devem mostrar sua riqueza e habilidade trancafiados num quarto. Três amigos se reencontram e debatem sobre um fato doloroso, ocorrido há dez anos. O triângulo amoroso dos tempos de escola se transforma em um ponto de encontro dos três personagens, que divergem sobre o fato e entrelaçam os rastros do passado e os interesses presentes em lembrar das situações traumáticas.
Vince é o responsável por impor a lembrança do fato aos amigos, pois nitidamente ainda não superou a dor. Traficante e usuário de drogas, Vince é logo visto com desprezo pelo amigo Salter. Não venceu na vida, entrega-se aos vícios e tem ímpetos violentos. Uma antípoda do amigo, Salter, cineasta independente, mas equílibrado; livre, mas bem sucedido. Linklater parece, neste filme, provocar o cinema e a posição social do cineasta. Afinal, que cineasta independente é esse que vê alguma virtude no equilíbrio e um conforto no sucesso?
Enquanto Vince vomita e revolve o passado, Salter começa a ser dar conta que o descontrole do amigo não é vão. Suas hesitações, provocações e até sua violência vêm da voracidade com que destrói verdades e se inquieta com as relações e, sobretudo, com o fato em questão. Em meio a um provocador voraz, tem-se, dentro do quarto, uma câmera, um cineasta-personagem e Amy, uma defensora pública. Curioso é que todos, menos Vince, possuem uma relação profissional (ou vocacional) com os fatos e, no entanto, apenas o bombeiro drogado parece crer que duvidar dos fatos é um bom caminho.
Salter logo deixa claro que quer se esquecer da transa com Amy, pois se arrepende da sua atitude, envergonha-se de como agiu. O cineasta de sucesso, mesmo que independente, é aquele que elabora sua vida através da arte ou aquele que a soterra e a separa da sua biografia? O filme parece nos perguntar.
Interessante é a chegada de Amy, após Salter ter confessado que a estuprou, com direito a uma gravação feita por Vince. Tem-se uma prova, uma fita com uma confissão (daí o título original Tape) para ser mostrada a uma profissional do direito, que é, ao mesmo tempo, vítima de Salter e agente da justiça. Para surpresa geral, ela não tem nenhuma queixa contra Salter, diz inclusive que gostava dele e não de seu ex-namorado, Vince. E se não há vítima, não há crime.
Para Vince, o fato se explica, não da maneira esperada, mas se explica. Ela não transou com ele porque não o amava. Para Salter, fica a decepção por ter recalcado um fato equívoco, por dez anos. Para Amy, a certeza de que Salter não a amava. Assim como no poema Quadrilha de Carlos Drumond de Andrade, quem vence é o desencontro. Nesse filme, o J. Pinto Fernandes, aquele que não havia entrado na história, é o cinema, que é o responsável por observar o desencontro sem dor, pois por trás de tudo o que se faz é um belo filme.
“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.”
Quadrilha, Carlos Drumond de Andrade
Para o cinema, fica a certeza de que um bom filme não é feito apenas de fatos, efeitos especiais e múltiplos cenários. É preciso primeiramente problematizá-los, fazendo-o do mais simples e banal triângulo amoroso escolar uma reflexão sobre o que significa falar sobre algo, o que significa representar um fato e como um fato social se instala na constituição individual, biográfica, de cada um. Mesmo trancada em um quarto, a imagem cinematográfica tem um rico universo a explorar, desde que dentro desse quarto exista algum rastro humano. E isto sempre há, desde que exista um cineasta suficientemente inquieto para enxergar.
Vince é o responsável por impor a lembrança do fato aos amigos, pois nitidamente ainda não superou a dor. Traficante e usuário de drogas, Vince é logo visto com desprezo pelo amigo Salter. Não venceu na vida, entrega-se aos vícios e tem ímpetos violentos. Uma antípoda do amigo, Salter, cineasta independente, mas equílibrado; livre, mas bem sucedido. Linklater parece, neste filme, provocar o cinema e a posição social do cineasta. Afinal, que cineasta independente é esse que vê alguma virtude no equilíbrio e um conforto no sucesso?
Enquanto Vince vomita e revolve o passado, Salter começa a ser dar conta que o descontrole do amigo não é vão. Suas hesitações, provocações e até sua violência vêm da voracidade com que destrói verdades e se inquieta com as relações e, sobretudo, com o fato em questão. Em meio a um provocador voraz, tem-se, dentro do quarto, uma câmera, um cineasta-personagem e Amy, uma defensora pública. Curioso é que todos, menos Vince, possuem uma relação profissional (ou vocacional) com os fatos e, no entanto, apenas o bombeiro drogado parece crer que duvidar dos fatos é um bom caminho.
Salter logo deixa claro que quer se esquecer da transa com Amy, pois se arrepende da sua atitude, envergonha-se de como agiu. O cineasta de sucesso, mesmo que independente, é aquele que elabora sua vida através da arte ou aquele que a soterra e a separa da sua biografia? O filme parece nos perguntar.
Interessante é a chegada de Amy, após Salter ter confessado que a estuprou, com direito a uma gravação feita por Vince. Tem-se uma prova, uma fita com uma confissão (daí o título original Tape) para ser mostrada a uma profissional do direito, que é, ao mesmo tempo, vítima de Salter e agente da justiça. Para surpresa geral, ela não tem nenhuma queixa contra Salter, diz inclusive que gostava dele e não de seu ex-namorado, Vince. E se não há vítima, não há crime.
Para Vince, o fato se explica, não da maneira esperada, mas se explica. Ela não transou com ele porque não o amava. Para Salter, fica a decepção por ter recalcado um fato equívoco, por dez anos. Para Amy, a certeza de que Salter não a amava. Assim como no poema Quadrilha de Carlos Drumond de Andrade, quem vence é o desencontro. Nesse filme, o J. Pinto Fernandes, aquele que não havia entrado na história, é o cinema, que é o responsável por observar o desencontro sem dor, pois por trás de tudo o que se faz é um belo filme.
“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.”
Quadrilha, Carlos Drumond de Andrade
Para o cinema, fica a certeza de que um bom filme não é feito apenas de fatos, efeitos especiais e múltiplos cenários. É preciso primeiramente problematizá-los, fazendo-o do mais simples e banal triângulo amoroso escolar uma reflexão sobre o que significa falar sobre algo, o que significa representar um fato e como um fato social se instala na constituição individual, biográfica, de cada um. Mesmo trancada em um quarto, a imagem cinematográfica tem um rico universo a explorar, desde que dentro desse quarto exista algum rastro humano. E isto sempre há, desde que exista um cineasta suficientemente inquieto para enxergar.
2 comentários:
Não curto Richard Linklater. Ainda não vi esse filme. Pelo visto, carece dos mesmos problemas dos outros. Ver e confirmar? Talvez uma perda de tempo. Ou não ver e desconfiar? Talvez seja mais intrigante. Eis a questão!
adorei o filme...apesar de monótono, é mto intrigante! lembrou-me (um pouquinho)de "brilho eterno de uma mente sem lembranças"....alternativo com uma trama maluca.
Postar um comentário