A areia sob os paralepipedos aparece cedo no Lido. Demasiado cedo. Tão rápida e facilmente que os esforçados revolucionários do 68 se tomaram apenas 48 horas para despentear-se, completar sua particular revolução e voltar pra casa... que se esfria o jantar. De fato, as crônicas desses dois dias de agosto, faz já 40 anos, em que se deteve a Mostra parecem extraídas do roteiro de uma comédia de Vittorio de Sica: Revolução à italiana.
Tudo começou um ano antes. Na mesma edição de 1967 na que Luis Buñuel se levou o Leão de Ouro por A Bela da Tarde, Jean-Luc Godard apresentou seu filme-manifesto-maoísta A chinesa. A semente do que ocorreria um ano mais tarde ficava à espera de adubo: «A Mostra deveria abandonar o Lido», clamou o diretor francês ante os microfones. «Deveria unir-se ao festival de teatro e à bienal de arte de Veneza. Os festivais são lugares de discussão e de trabalho, ocasiões para o encontro entre profissionais do cinema. Que sentido tem o glamour e os vestidos de noite? Tudo é grotesco, ridículo». Dito o qual, levou-se o Prêmio Especial do Júri.
E assim as coisas, com a suspensão recente do Festival de Cannes a modo de adubo e exemplo, o sábado 24 de agosto de 1968, dia fixado para a inauguração do festival, armou-se. Recorde-se que Itália, como toda Europa, vivia momentos incertos. O estudante Nico Nordio acabava de ser detido acusado de enviar uma carta-bomba ao Palazzo do Cinema, em Veneza.
L'Associazione Nazionale Autori Cinematografici (ANAC), encabeçada por cineastas como Gillo Pontecorvo, Cessar Zavattini e Pier Paolo Pasolini, assinalava seu bode expiatório: o diretor do festival, Luigi Chiarini, tinha que demitir.
A demissão de Chiarini, apresentada depois de falar com o moderado Pontecorvo e o sempre peculiar Pasolini, não tranqüiliza os ânimos. É mais, a confusão cresce. Os partidos socialista e comunista se colocam ao lado dos boicoteadores. A Democracia Cristã, por sua vez, considera de todo ponto inadmissível que se suspenda uma citação da que vivem hotéis e comércios. O slogan mais repetido é «Nordio fuori, Chiarini dentro». Isto é, o estudante detido fora do cárcere, o diretor dimisionario dentro do festival. Efetivamente, ¡querem que volte Chiarini! A gestão administrativa fica em mãos da Prefeitura de Veneza e o comitê de boicote se encarrega da gestão cultural.
A proposta de Pasolini de unir a cineastas (na sala Volpi) e jornalistas (na sala Grande) num único espaço termina numa pequena batalha campal e... adeus à revolução, que é tarde. Em poucas horas, Chiarini volta, a polícia controla as entradas e saídas do Lido e habemus Mostra com, isso sim, 48 horas de atraso. A mudança do estatuto do festival não chegaria até 1972, e não foi até o 79 quando o festival recuperou bríos renovados.
A Mostra de 1968 continuou, e o Leão de Ouro foi para as mãos do alemão Alexander Kluge por sua radical proposta Os artistas na cúpula do circo: Desorientados, e Pasolini, à frente da revolta, levou-se prêmio especial por Teorema. 48 horas de caos; 48 horas à italiana. "Aquilo não serviu absolutamente para nada", palavra de Mario Monicelli.
Texto traduzido, escrito para o jornal espanhol El Mundo por Luis Martinez.
http://www.elmundo.es/papel/2008/09/02/cultura/2485079.html
Tudo começou um ano antes. Na mesma edição de 1967 na que Luis Buñuel se levou o Leão de Ouro por A Bela da Tarde, Jean-Luc Godard apresentou seu filme-manifesto-maoísta A chinesa. A semente do que ocorreria um ano mais tarde ficava à espera de adubo: «A Mostra deveria abandonar o Lido», clamou o diretor francês ante os microfones. «Deveria unir-se ao festival de teatro e à bienal de arte de Veneza. Os festivais são lugares de discussão e de trabalho, ocasiões para o encontro entre profissionais do cinema. Que sentido tem o glamour e os vestidos de noite? Tudo é grotesco, ridículo». Dito o qual, levou-se o Prêmio Especial do Júri.
E assim as coisas, com a suspensão recente do Festival de Cannes a modo de adubo e exemplo, o sábado 24 de agosto de 1968, dia fixado para a inauguração do festival, armou-se. Recorde-se que Itália, como toda Europa, vivia momentos incertos. O estudante Nico Nordio acabava de ser detido acusado de enviar uma carta-bomba ao Palazzo do Cinema, em Veneza.
L'Associazione Nazionale Autori Cinematografici (ANAC), encabeçada por cineastas como Gillo Pontecorvo, Cessar Zavattini e Pier Paolo Pasolini, assinalava seu bode expiatório: o diretor do festival, Luigi Chiarini, tinha que demitir.
A demissão de Chiarini, apresentada depois de falar com o moderado Pontecorvo e o sempre peculiar Pasolini, não tranqüiliza os ânimos. É mais, a confusão cresce. Os partidos socialista e comunista se colocam ao lado dos boicoteadores. A Democracia Cristã, por sua vez, considera de todo ponto inadmissível que se suspenda uma citação da que vivem hotéis e comércios. O slogan mais repetido é «Nordio fuori, Chiarini dentro». Isto é, o estudante detido fora do cárcere, o diretor dimisionario dentro do festival. Efetivamente, ¡querem que volte Chiarini! A gestão administrativa fica em mãos da Prefeitura de Veneza e o comitê de boicote se encarrega da gestão cultural.
A proposta de Pasolini de unir a cineastas (na sala Volpi) e jornalistas (na sala Grande) num único espaço termina numa pequena batalha campal e... adeus à revolução, que é tarde. Em poucas horas, Chiarini volta, a polícia controla as entradas e saídas do Lido e habemus Mostra com, isso sim, 48 horas de atraso. A mudança do estatuto do festival não chegaria até 1972, e não foi até o 79 quando o festival recuperou bríos renovados.
A Mostra de 1968 continuou, e o Leão de Ouro foi para as mãos do alemão Alexander Kluge por sua radical proposta Os artistas na cúpula do circo: Desorientados, e Pasolini, à frente da revolta, levou-se prêmio especial por Teorema. 48 horas de caos; 48 horas à italiana. "Aquilo não serviu absolutamente para nada", palavra de Mario Monicelli.
Texto traduzido, escrito para o jornal espanhol El Mundo por Luis Martinez.
http://www.elmundo.es/papel/2008/09/02/cultura/2485079.html
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