26 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel Oliveira: "PORTO DA MINHA INFÂNCIA"

A memória. Mais uma vez a memória é a matéria-prima de um filme de Manoel de Oliveira: Porto da Minha Infância, de 2001, que foi encomendado pela organização da iniciativa Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, nos traz as reminiscências de Manoel de Oliveira a respeito da cidade onde nasceu.

O filme principia com um maestro que rege uma orquestra invisível - referência a uma cidade que não mais existe? Assim, como narrador em off, Manoel fala de uma Cidade do Porto de outros tempos, mas que o viu nascer. Lá estão as ruínas da casa onde nasceu e cresceu, além de ali ter surgido sua paixão pelo cinema. Sua narração é entrecortada, em vários momentos do filme, por uma canção na voz de sua esposa, Maria Isabel. Canção cuja letra é a poesia de Guerra Junqueiro, Retorno ao Lar.

Passeamos com o diretor pelos cafés, pelos lugares de operetas (ele próprio, junto com Maria de Medeiros, aparece como ator de uma opereta, sendo observado por sua "versão jovem" da plateia), pelas ruas, os marcos que já não existem... num dado momento, quando ele fala de sua confeitaria preferida durante a infância, ouvimos dele: "Foi-se embora a confeitaria e, com ela, os pastéis." Atualmente, no lugar do luxuoso comércio, há uma decadente loja de roupas.

No Palácio de Cristal havia inúmeras exposições, sobretudo de carros e flores. Numa dessas exposições, encontramos duas figuras - serão eles os poetas Fernando Pessoa e José Régio? Fica a suspeita. Depois, Manoel recorda a família e sua paixão de infância, a prima Guilhermina.

Noutro momento, há a participação da escritora Agustina Bessa-Luis lendo trecho de um texto de própria autoria. Também temos Manoel a divagar sobre seus antigos amigos, com quem costumava dar asas à imaginação pelas ruas do Porto. Entre eles está o poeta Adolfo Casais Monteiro, que foi perseguido e preso pelo regime ditatorial português e que veio a morrer no Brasil.

Conhecemos também a primeira sala de cinema do Porto, a High Life, que mais tarde se tornaria o Cinema Batalha.

Mais uma divagação e estamos com Manoel frente à Camisaria Confiança e à Rua Santa Catarina, santa que era a padroeira das costureiras que participaram involuntariamente do primeiro filme realizado em Portugal, por Aurélio Paz dos Reis. Em seguida, uma reprodução do pioneiro do cinema português filmando a movimentação dos operários da Porto 2001. Manoel diz, antes de calar: "A cidade está a ser renovada. Mas por muito que lhe façam, é sempre o meu porto de infância, com um fio d'ouro a correr a seus pés."

Emociona a sequência em que Porto nos é mostrada mais uma vez e que termina em cena que não só remete, porque é igual, com exceção das luzes, à cena de abertura de seu primeiro filme, Douro, Faina Fluvial, de 1931.

O filme é curto, não alcança 60 minutos. Mas é o suficiente para mais uma vez viajarmos pela memória junto ao longevo diretor.

Encerro este texto com trecho da poesia Europa, de Adolfo Casais Monteiro, cuja leitura durante o filme é um dos momentos marcantes:

I

Europa, sonho futuro!
Europa, manhã por vir,
fronteiras sem cães de guarda,
nações com seu riso franco
abertas de par em par!

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,
virás um dia? virá o dia
em que renasças purificada?
Serás um dia o lar comum dos que nasceram
no teu solo devastado?
Saberás renascer, Fénix, das cinzas
em que arda enfim, falsa grandeza,
a glória que teus povos se sonharam
— cada um para si te querendo toda?

Europa, sonho futuro,
se algum dia há-se-ser!
Europa que não soubeste
ouvir do fundo dos tempos
a voz na treva clamando
que tua grandeza não era
só do espírito seres pródiga
se do pão eras avara!

Tua grandeza a fizeram
os que nunca perguntaram
a raça por quem serviam.
Tua glória a ganharam
mãos que livres modelaram
teu corpo livre de algemas
num sonho sempre a alcançar!

Europa, ó mundo a criar!

Europa, ó sonho por vir
enquanto à terra não desçam
as vozes que já moldaram
tua figura ideal,
Europa, sonho incriado,
até ao dia em que desça
teu espírito sobre as águas!

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,
virás um dia? virá o dia
em que renasças purificada?
Serás um dia o lar comum dos que nasceram
no teu solo devastado?
Saberás renascer, Fénix, das cinzas
do teu corpo dividido?

Europa, tu virás só quando entre as nações
o ódio não tiver a última palavra,
ao ódio não guiar a mão avara,
à mão não der alento o cavo som de enterro
— e do rebanho morto, enfim, à luz do dia,
o homem que sonhaste, Europa, seja vida!

II

Ó morta civilização!
Teu sangre podre, nunca mais!
Cadáver hirto, ressequido,
á cova, à cova!

Teu canto novo, esse sim!
Purificado,
teu nome, Europa,
o mal que foste, redimido,
o bem que deste,
repartido!

Aí vai o cadáver enfeitado de discursos,
florindo em chaga, em pus, em nojo..
Cadáver enfeitado de guerras de fronteiras,
ficções para servir o sonho de violência,
máscara de ideal cobrindo velhas raivas...
Vai, cadáver de crimes enfeitado,
que os coveiros, sem descanso,
acham pouca toda a terra,
nenhum sangue já lhes chega!

Sobre o cadáver dançam
teus coveiros sua dança.
Corvos de negro augúrio
chupam teu sangue de desgraça.
Haja mais sangue, mais dançam!
E tu levada, tu dançando,
os passos do teu bailado
funerário!

Mas do sangue nascerás,
ou nunca mais, Europa do porvir!

E a mão que te detenha
à beira do abismo?
Do sangue nascerá!

E braços que defendam
teu dia de amanhã?
Do sangue nascerão!

O sangue ensinará
— ou nova escravidão
maior há-de enlutar
teus campos semeados
de forcas e tiranos.

De sangue banharás
teu corpo atormentado
e, Fénix, viverás!

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