12 de dez. de 2005

Estética e Política na "Terra em Transe" de Glauber Rocha

No presente artigo, pretendo analisar o filme Terra em Transe, escrito e dirigido pelo cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981). Ao contrário da maioria das análises já feitas acerca desta obra, tenciono dar maior ênfase à estética do filme que, a meu juízo, ainda não foi suficientemente discutida e analisada.

Terra em Transe foi filmado entre os anos de 1966 e 1967 no Brasil, retratatando o cenário político da América Latina pré-ditaduras. Para retratar esta conturbação política, o diretor utilizou-se de uma narrativa extremamente complexa, pessoal e inovadora. É impressionante a evolução de Glauber de seu longa-metragem anterior (Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964) para este longa, principalmente em relação à direção: enquanto que a estética de Deus e o Diabo na Terra do Sol é uma fusão do cinema revolucionário de Sergei Eisenstein (o filme chega a possuir até uma espécie de tributo à antológica cena da Escadaria de Odessa da obra-prima do diretor, O Encouraçado Potemkin) e do Neo-Realismo Italiano (principalmente dos filmes de Luchino Visconti e Roberto Rossellini), em Terra em Transe há uma nova estética com elementos criados pelo próprio diretor, embora ainda contenha elementos das escolas italianas e soviéticas. Sem dúvida, há um sensível amadurecimento entre essas duas obras.

A narrativa de Terra em Transe é o meio pelo qual o artista transporta suas idéias político-sociais. Podemos destacar, como as principais características desta narrativa revolucionária:
  • Descontínua: Assim como ocorre em A Greve (1925), também dirigido por Eisenstein, em Terra em Transe primeiro se expõe o fato para só depois expor quais as causas desse fato, ou seja: o início é o fim do filme. A quebra da narrativa linear é apenas uma das inúmeras evidências que em Terra em Transe, Glauber ainda não se desvinculou de sua influência européia, o que viria a ocorrer apenas no final de sua carreira. É sempre bom ressaltar que a descontinuidade da narrativa do filme não tem a intenção de confundir o público ou de fazer do filme uma grande charada, como infelizmente acontece com certa freqüência no cinema atual. Ao utilizar-se da quebra da narrativa linear, Glauber tão somente deseja forçar o espectador a refletir sobre o que está sendo exposto no filme.
  • Caótica: É notório que não há um padrão ou uma lógica na narrativa no filme. Dessa forma, Glauber Rocha obriga o espectador a pensar acerca de sua obra. Ao contrário do que ocorre com a maioria dos cineastas tradicionais, Glauber não consegue, nem tampouco deseja, controlar a interpretação de sua obra. O que ele realmente deseja é causar um desconforto no público de maneira tal que este não consiga sair do cinema sem refletir acerca do que viu na tela. Conseqüentemente, é impossível haver qualquer adestramento ideológico, prática extremamente comum por parte de vários governos totalitários em todo o mundo, bem como por parte de grandes produtoras ou empresas que desejam adestrar o público, fazendo com que este aceite uma idéia sem qualquer discussão acerca de sua natureza. Um exemplo clássico deste adestramento ideológico seria o Realismo Socialista perpetrado por Stalin, assim como os filmes de ação hollywoodianos da década de oitenta, notoriamente ufanistas.
  • Dinâmica: Dificilmente vemos a câmera parada no filme. Glauber não se cansa de movimentar a câmera e, ao mesmo tempo, utiliza-se de uma quantidade impressionante de cortes. Um ótimo exemplo da dinâmica de sua narrativa é a cena em que, no “início” da obra, a câmera filma um grupo de pessoas conversando. O que impressiona nesta cena é que em vez de deixar a câmera estática, Glauber filma a conversa fazendo círculos contínuos e incessantes nos atores, causando uma sensação completamente nova e estranha no público. Outro ótimo exemplo é a maneira revolucionária com que o diretor filma um diálogo com atores em movimento. Ao contrário da forma convencional, o cineasta resolve filma-los fazendo vários cortes sem parar sua seqüência, sendo que estes cortes, muitas vezes, levam a câmera para um lugar bem distante de onde esta estava antes do corte, dando a dinamicidade que o filme tanto precisa.

No que tange o roteiro, o filme é um retrato de toda a América Latina (não apenas o Brasil), razão pela qual o cineasta resolveu passar o filme num país fictício chamado Eldorado, decisão esta extremamente válida. Caso o filme tivesse sido passado no Brasil, daria um caráter nacional à obra, ofuscando o resto do continente. O ponto é que embora existam diversos países em toda a América Latina, os problemas político-sociais são sempre os mesmos, modificando-se apenas sua intensidade.

Os problemas denunciados no filme são o descaso dos políticos com a população, a pobreza da maioria em contraste com a riqueza da minoria, a ausência de um sistema de educação e saúde eficientes, briga de interesses, etc... Apesar desses problemas condizerem com a realidade latino-americana, estes já foram mostrados várias vezes nas mais diversas artes. O que torna o roteiro de Terra em Transe absolutamente genial é a clarividência política de Glauber Rocha, batendo em problemas nunca antes expressos ou dando uma nova abordagem a estes:

  • A Indecisão e Contradição dos Artistas latino-americanos: Fica bastante claro no fato do protagonista, o poeta Paulo Martins (interpretado magistralmente por Jardel Filho), trabalhar tanto para o candidato da esquerda como para o candidato da direita, além de várias outras passagens do filme. Observe que esta indecisão ocorria com vários artistas brasileiros que, no momento, não nos convêm citar.
  • A Descrença na Esquerda latino-americana: Glauber foi profético neste quesito, principalmente quando o relacionamos com o Brasil atual. No filme, o candidato eleito da esquerda, não cumpre as promessas de campanha e não perpetra as reformas sociais necessárias e resolve renunciar ao cargo assim que recebe as primeiras pressões político-econômicas. É sempre bom ressaltar que mesmo nos momentos políticos mais contraditórios de Glauber, ele nunca deixou de ser um revolucionário e simpatizante de ideologias de esquerda.


A importância de Terra em Transe para o cinema brasileiro é imensurável, sendo este filme, a meu ver, o cerne do movimento cinematográfico brasileiro conhecido como Cinema Novo. Este movimento propunha um novo cinema, sendo fiel à realidade social de nosso país, denunciando toda a pobreza e miséria que a maioria da população vive. Pela primeira vez o “verdadeiro” Brasil invadia as telas do cinema.

Com o Cinema Novo, o cinema brasileiro se destaca nas mostras internacionais, ganhando vários prêmios pelo mundo afora e a admiração de cineastas do porte de Martin Scorsese e Jean-Luc Godard. Terra em Transe ganhou o prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cannes, em 1967 e Glauber venceu o prêmio de Melhor Diretor, também no Festival de Cannes, pelo filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, em 1969.

Por fim, algumas frases do cineasta baiano acerca dessa obra capital de sua carreira:

“O cinema prolonga a morte. Estas imagens estarão eternas. Além da morte.”

“Quando um intelectual vem me dizer que não gostou de Terra em Transe porque não entendeu, dá vontade de perguntar a ele se poesia ou música ele entende tudo como entende uma reportagem, isto é, no sentido explicativo, óbvio, ululantérrimo!”

“Roberto Rosselini dizia que é mais fácil fotografar o mundo do que fotografar um rosto. O cinema, me disse Alexandre Kluge, deve ser polifônico. É uma nova arte e presa ainda ao naturalismo/realismo do romance. O romance, os senhores sabem, é uma expressão do século XIX. É, pois, a linguagem da burguesia. O cinema é a linguagem do capitalismo, isto é, do século XX. Cinema, jornalismo, televisão. O cinema, porque foi realizado até bem pouco tempo por homens com formação no século passado e formou e deformou o público e a crítica. E a maioria dos intelectuais. E, o que é mais grave, a maioria dos cineastas. O cinema é um instrumento de coração do capitalismo. Ou do policialismo. Liberdade, no cinema, sempre foi crime. Rimbaud, para lembrar um nome conhecido, que é ponto pacífico na poesia, se aparecesse fazendo filme como escrevia levava ovo na cara. Idem Cézanne. Até mesmo Van Gogh. E estes são artistas do século passado, nem mais vanguarda são considerados. Por que o cinema tem de ficar seguindo a narrativa de Maupassant?”

"Se um filme é sincero em questões políticas, sempre desagrada aos fascistas" Sobre a proibição de Terra em Transe

Através dessas citações, podemos comprovar a posição de Glauber Rocha quanto à interpretação de suas obras e seu desejo de inovação estética.


Sérgio Farias - sfariasf@hotmail.com

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