Isso não é um comentário sobre Irreversível, grande filme de Gaspar Noé, imperdível - mas apenas para os que têm estômago de personagem sadiano. É sim, um comentário sobre um uso recorrente do corpo da atriz Monica Belucci que se repete com mais intensidade nesse filme.
Podemos dizer que Belucci é o único mito feminino em atividade, hoje, no cinema - no sentido barthesiano do termo. Refiro-me ao ensaio O Rosto de Garbo, de Mitologias. Nele, Barthes mostra como Garbo, ou antes, o uso fotográfico da ambivalência sexual (e ao mesmo tempo total assexualidade) do rosto de Garbo, marca o trânsito do cinema mudo para o falado, do P&B para cores - da pudicícia a um cinema "realista", e de um cinema ingênuo e para o povão, para um cinema mais artístico, mesmo em Hollywood.
Que Garbo era lésbica isso é fato notório. E que era uma mulher de rara beleza, e para a época, de rara atração sexual, também. Mas seu rosto é sempre frio, e há uma tentativa constante de apagar qualquer traço de atrativo sexual, e de ambiguizá-lo. É um rosto feminino, sem dúvida, mas que ainda fica, ou é forçado a ficar, a meio caminho entre o masculino e feminino, não porque em ambos, mas porque em nenhum - como o de um anjo.
Em Belucci, não se trata mais do rosto, mas do corpo. É um corpo voluptuoso, altamente desejável, belíssimo em cada parte (e de uma beleza generosa, farta de carnes, para alguém que foi modelo de passarela). Mas é gélido também. Contudo, não é esse o ponto.
A beleza de Belucci parece ser sempre um meio de atingir a degradação para retomá-la depois: ela pode ser sempre destruída, que sempre poderá ser reconstituída inteira no momento seguinte.
A primeira vez em que aconteceu foi Malena, do Tornatore. Ela é uma personagem linda, sedutora, voluptuosa - mas que só aparece nua realmente na cena em que as outras mulheres do vilarejo cortam seus cabelos, a espancam, esfregam na lama, etc. para, poucas cenas depois, ela retornar de novo exuberante.
Ai, o uso ainda é discreto, pois são mulheres que a agridem, e tem um fundo moral isso.
Em Irreversível, é um homem, e um homem perverso: gosta de homens, de mulheres e de travestis, freqüenta clubes de orgias, sadomaso, etc. E é um estupro! Não há fundo moral, nem para ele, nem para ela - Irreversível não é uma fábula moral (a não ser para o personagem de Cassell, para quem se põe o drama). E seu corpo aqui é muito mais agredido, vilipendiado, e com fim único sexual. De fato, a personagem não sente prazer na cena. Mas a sensação que temos é que Belucci, o mito, goza de que seu corpo sirva para representar uma mulher estuprada, mulher que, contudo não goza disso. É uma ambigüidade: ela goza como atriz/mito, justo por não gozar como personagem (em Malena, o mesmo, mas mais discretamente).
Nesse sentido, podemos compará-la a uma personagem sadiana: como a Justine de Sade, seu corpo se presta a ser eternamente castrado, estropiado, porque no dia seguinte ela sempre estará intacta novamente - prestes e pronta para outro espancamento.
É nesse sentido, e só nesse sentido, que Irreversível é um filme sadiano (digo isso porque muita gente já o comparou com o incomparável Salò, de Pasolini). No mais, como disse, é uma fábula moral, um trailer, ou um filme trágico/metafísico no sentido nietzscheano. Mas Belucci permite que seu corpo, como uma santa-mártir, sirva para ser habitado por tipos que sofrerão conseqüências duplamente sadianas: serem destroçados, e sempre reconstituídos perfeitamente após o destroço - e os atos sempre com fins sexuais.
Aí vemos como em Matrix ela está extremamente subutilizada: numa cena que se passa num clube sadomaso fake, ela não é vilipendiada uma só vez - mas seu corpo mítico, seu rosto mítico (como o de Garbo), parece pedir "espanca-me ou te devoro" (tal como Garbo, anos antes de dizer a frase, sempre parecia dizer "Eu quero estar sozinha...").
Podemos dizer que Belucci é o único mito feminino em atividade, hoje, no cinema - no sentido barthesiano do termo. Refiro-me ao ensaio O Rosto de Garbo, de Mitologias. Nele, Barthes mostra como Garbo, ou antes, o uso fotográfico da ambivalência sexual (e ao mesmo tempo total assexualidade) do rosto de Garbo, marca o trânsito do cinema mudo para o falado, do P&B para cores - da pudicícia a um cinema "realista", e de um cinema ingênuo e para o povão, para um cinema mais artístico, mesmo em Hollywood.
Que Garbo era lésbica isso é fato notório. E que era uma mulher de rara beleza, e para a época, de rara atração sexual, também. Mas seu rosto é sempre frio, e há uma tentativa constante de apagar qualquer traço de atrativo sexual, e de ambiguizá-lo. É um rosto feminino, sem dúvida, mas que ainda fica, ou é forçado a ficar, a meio caminho entre o masculino e feminino, não porque em ambos, mas porque em nenhum - como o de um anjo.
Em Belucci, não se trata mais do rosto, mas do corpo. É um corpo voluptuoso, altamente desejável, belíssimo em cada parte (e de uma beleza generosa, farta de carnes, para alguém que foi modelo de passarela). Mas é gélido também. Contudo, não é esse o ponto.
A beleza de Belucci parece ser sempre um meio de atingir a degradação para retomá-la depois: ela pode ser sempre destruída, que sempre poderá ser reconstituída inteira no momento seguinte.
A primeira vez em que aconteceu foi Malena, do Tornatore. Ela é uma personagem linda, sedutora, voluptuosa - mas que só aparece nua realmente na cena em que as outras mulheres do vilarejo cortam seus cabelos, a espancam, esfregam na lama, etc. para, poucas cenas depois, ela retornar de novo exuberante.
Ai, o uso ainda é discreto, pois são mulheres que a agridem, e tem um fundo moral isso.
Em Irreversível, é um homem, e um homem perverso: gosta de homens, de mulheres e de travestis, freqüenta clubes de orgias, sadomaso, etc. E é um estupro! Não há fundo moral, nem para ele, nem para ela - Irreversível não é uma fábula moral (a não ser para o personagem de Cassell, para quem se põe o drama). E seu corpo aqui é muito mais agredido, vilipendiado, e com fim único sexual. De fato, a personagem não sente prazer na cena. Mas a sensação que temos é que Belucci, o mito, goza de que seu corpo sirva para representar uma mulher estuprada, mulher que, contudo não goza disso. É uma ambigüidade: ela goza como atriz/mito, justo por não gozar como personagem (em Malena, o mesmo, mas mais discretamente).
Nesse sentido, podemos compará-la a uma personagem sadiana: como a Justine de Sade, seu corpo se presta a ser eternamente castrado, estropiado, porque no dia seguinte ela sempre estará intacta novamente - prestes e pronta para outro espancamento.
É nesse sentido, e só nesse sentido, que Irreversível é um filme sadiano (digo isso porque muita gente já o comparou com o incomparável Salò, de Pasolini). No mais, como disse, é uma fábula moral, um trailer, ou um filme trágico/metafísico no sentido nietzscheano. Mas Belucci permite que seu corpo, como uma santa-mártir, sirva para ser habitado por tipos que sofrerão conseqüências duplamente sadianas: serem destroçados, e sempre reconstituídos perfeitamente após o destroço - e os atos sempre com fins sexuais.
Aí vemos como em Matrix ela está extremamente subutilizada: numa cena que se passa num clube sadomaso fake, ela não é vilipendiada uma só vez - mas seu corpo mítico, seu rosto mítico (como o de Garbo), parece pedir "espanca-me ou te devoro" (tal como Garbo, anos antes de dizer a frase, sempre parecia dizer "Eu quero estar sozinha...").
Lucas Jerzy - lucasjerzy@gmail.com
Um comentário:
Gosto muito do trabalho da Monica Bellucci, acho ela uma atriz de muitas matizes, com uma sensibilidade sublime.
Mas acho que o cinema a mal trata e a mal utiliza, como se sua beleza (que realmente é impressionante) fosse uma ofensa pela qual ela deve ser castigada.
Creio que isso está por trás do linchamento de "Malena" e da violência de "Irreverssível".
Espero que Monica consiga se lhe livrar da prisão que o cinema a colocou. Ela merece muito mais...
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