24 de mar. de 2007

Quando a arte se sublima em violência


"Na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos; agora, ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-alienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição com o prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a prática o fascismo."
Walter Benjamin

O filme Construção de Cristiano Burlan, participante da competição brasileira do Festival "É Tudo Verdade", pretendia valorizar a memória dos trabalhadores da construção civil, mas seu inusitado apelo estético resultou numa violenta reificação das relações de trabalho. Sua memória, se pretendia transformar o olhar dos que dela compartilharam, apenas ratificou a distância existente entre a memória dos oprimidos e o grosso das manifestações culturais existentes.

Por "apelo estético", entende-se as demoradas imagens de efeito das redes de proteção dos prédios, das sombras feitas por janelas em construção, de dutos de água e outros lugares esvaziados da construção civil. Procuravam com essas cenas o belo das construções? Ou os operários que dela estavam ou ausentes ou em posição secundária? O som, aspecto muito importante de uma produção audiovisual, foi utilizado apenas pelas máquinas e pelos silêncios que o filme mesmo imputou a algumas cenas.

A aproximação da câmera calou os operários. Quem já viu uma reforma miníma em seu próprio prédio, sabe do potencial comunicativo dos trabalhadores, de suas cantorias, suas piadas e histórias - muito mais interessantes do que a pobre vida luxuosa dos apartamentos. Mas o filme preferiu calá-los com a sua câmera documental, ou melhor, esteticamente documental, pois queriam mesmo captar acrobacias artísticas, valendo-se da instrumentalização de uma construção civil.

Mas, por que não há depoimentos dos operários? Será que o filme acredita que a voz deles não é importante? Ou por puro desleixo estético, somente porque fazer um filme de depoimentos é algo já realizando e se queria fazer uma "arte nova"? Seja lá o que for, a composição dessa memória dos operários está mais próxima de Marinetti e da sedução pela beleza da violência, da guerra e da técnica.

Momento emblemático: o diretor ao perceber que os operários não cabiam no quadro, sugere uma posição como "time de futebol" para que caibam na imagem. Os operários atendem e devem estar se perguntando o que diabos é aquilo e para que serve. "Por que nos querem parados na frente de uma câmera?" perguntariam.

O abismo existente entre os que constroem as casas e os que moram nela continua, prosseguem sem se conhecer, já que o filme os grava como a National Geographic filma leões numa selva. Animais selvagens só encaram as câmeras, mas homens dignos de história narram suas vidas. Quero acreditar que esse filme feito de silêncios, imagens de fruição estética e de reificação da realidade dura e cruel da construção civil foi só um equívoco ingênuo, um lapso estético, pois ele é, de fato, uma violência contra a memória dos operários.

Um adicional de brutalidade e violência que a memória dos trabalhadores no Brasil já possui de sobra e não precisa de mais contribuições.

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