17 de jun. de 2007

Cláudio Assis e a circularidade do caos

Os filmes de Claudio Assis possuem uma coerência um pouco contrastante com a variedade e flexibilidade dos cineastas atuais. Sua postura polêmica e agressiva na defesa de um cinema de ação costumam gerar críticas, mas ao analisar os seus dois filmes – Amarelo Manga e Baixio das Bestas – percebe-se um projeto cinematográfico muito bem fundamentado, capaz de desafiar a moda da flexibilidade e experientação pura e simples, além de espantar definitivamente as críticas de que seus filmes estão guiados por uma agressividade exagerada e sem fundamentação.

Nos dois filmes de Assis, as tragédias dos personagens assumem um lugar central na narrativa. A narrativa não compõe – como de costume - uma história em que há a transformação dos personagens no desenvolvimento de suas ações, tendendo a resolução de um problema apresentado no começo do filme. Essa estrutura do cinema clássico jamais irão encontrar nos filmes de Claudio Assis. O propósito da narrativa parece ser o de narrar o espaço pela ação dos personagens e seus infindáveis problemas. Em Amarelo Manga, as chagas insolúveis dos personagens narram o espaço da pensão suburbana, núcleo de um ambiente urbano contemporâneo no nordeste brasileiro. O filme se estrutura num tempo decorrido em que ninguém se transforma, constituindo-se uma incômoda sensação de que os dias passam e tudo permanece igual, embora os problemas sejam diferentes e mais volumosos. A transformação se dá justamente no olhar que vai se construindo a partir da apresentação do lugar, num movimento de aprofundamento dos conflitos que temos conhecimento ao observar cada vez mais a vida dos personagens da pensão.

O fim do filme não gera nenhuma cartase ou recompensa. O alívio não é uma marca de Claudio Assis. Parmanece um sentimento de peso, de imobilidade, de impotência que Assis é mestre em criar. Somos consumidos pelo lugar que se consome em seu caos circular e infindável. Sem dúvida, o objetivo desse cinema é proporcionar um experiência de choque, responsável por violentar o olhar de quem se sujeita ao filme. O que esse choque gerará no público é difícil de dizer. Ao contrário do cinema brasileiro da década de 1960, ávido por despertar a consciência e superar a alienação do povo com um cinema tão didático quanto panfletário, o cinema protagonizado por Assis é contundente, militante, mas aberto e nada panfletário. Por mais que Assis tenha acumulado até hoje mais inimigos e antipatias, seus filmes são o grande contraponto com o cinema engajado dos anos 60 e 70, pois não deixam de requisitar um papel ativo do cinema, mas sem o simplismo e idealização da realidade do jeito CPC de filmar.

Em Baixio das Bestas, sua coerência fica mais clara e refinada. A narrativa se desloca para a zona rural e a circularidade do caos permanece, numa clara identificação da realidade violenta do lugar com o ciclo da cana-de-açucar. Ironia forte, a escolha de uma população que no século XXI vive não muito diferente da realidade da america portuguesa no século XVII, torna-se emblemática do jeito Assis de filmar. Mais uma vez nada se transformará, muito embora embarcaremos numa viagem sem volta ao cotidiano daquela população e teremos durante todo o filme intercaladas cenas das etapas do plantio da cana. A sutil referência não é aleatória. A insistência da relação nos pergunta o que há de natural no que vemos, se a degeneração das relações humanas ali naquela comunidade é tal natural quanto o ciclo da cana. Fica engasgada a resposta porque o filme não parece acreditar na sedução de uma reposta fácil e sem poder de ação.

As putas não são vistas só como vítimas, além de carecerem de uma ingenuidade e unidade de classe. Os “boyzinhos” da cidade não serão punidos e nem apresentarão arrependimento por seus atos de violência. Os povo da cidade pagará para desfrutar da nudez de uma criança explorada sexualmente pelo avô. Ninguém escapará da degeneração e a identificação de alguma pureza momentânea de algum personagem sempre se esfacela com o aprofundamento das cenas. A circularidade do caos se crava na própria pele dos moradores e na tradição do lugar. O avô que abusa sexualmente da neta, na verdade é pai dela, pois sua filha também conheceu a violência familiar como experiência a ser legada. Nessa situação, não há saída. A neta também fugirá de casa para continuar a ser violentada pelo único mundo que lhe foi apresentado. É tempo de queimar a cana para uma nova colheita. Tudo recomeçará? É isso que o cinema de Assis pretende questionar, não com resignação, mas com o olhar de quem se espanta e se impressiona com o fato de que no Brasil as coisas mudem tanto para ficar igualmente cruéis.

O choque está dado com maestria. Em 1960, a solução parecia mais próxima e mais clara, mas redundou novamente em tragédia. Em 2007, a solução parece distante e muito difusa, quem sabe não estamos construindo no escuro uma nova maneira de responder à circularidade do caos, da tragédia social brasileira e do nosso fado tropical?

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