15 de jun. de 2007

O Profeta das Águas
Se o filme não é a mera exposição factual de um acontecimento, ele está impregnado de discurso e de pensamentos que, muitas vezes, também são marcados pela diversidade e controvérsia. Diferentes interpretações de um mesmo filme podem apontar para lados opostos, o que pode ser visto como uma prova do papel criativo em jogo na interpretação da arte. Mas, um texto sobre um filme também pode esconder-se na leitura do filme, anunciando o exposto no filme, o evidente, como se aquilo que se lê do filme estivesse exposto a todos e não na interação entre o filme e a interpretação.

Seja como for, o filme O Profeta das Águas de Leopoldo Nunes, vencedor do 8o FICA, parece conter um discurso tão evidente e claro que não mereceria dizer nada sobre ele, a não ser pela enorme importância que possui. O documentário narra a vida do lider religioso Gaudino de Rubinéia, uma cidade localizada na divisa de Minas, São Paulo e Mato Grosso do Sul, onde foi construída durante a ditadura militar uma usina hidréletrica. Preso, torturado e levado ao DOPS aos cuidados de Fleury, a história de Gaudino desvenda não somente a sua história de vida, mas apresenta com delicada acuidade o poder da repressão política e social de construir suas vítimas e enquadrar diferentes adversários políticos no rol dos crimonosos, dos loucos e dos banidos.

Pregador contrário à construção da barragem e a favor da reforma agrária, Galdino não cometeu nenhum crime civil e nem militar. Nem mesmo a Lei de Segurança Nacional conseguiu descrever a sua culpa. Com muitos seguidores e ganhando força em Rubinéia, foi denunciado pelo delegado da cidade ao DOPS. Órgão central da ditadura militar brasileira, a política política tratou de lhe prender e começar a construir sua “perigosa” ficha. Nada havia além de profecias, mitos e a espera por um exército de salvação. Receberam bem os homens da ditadura, pensando se tratar da sua realização mítica, mas o exército viera mesmo só para prender Galdino. Sem poder criminalizá-lo, sacaram o último recurso para a construção de um culpado, atestando a sua insanidade mental. O Hospital Psiquiatríco de Franco da Rocha, o reduto dos perigosos inclassificáveis, o violentou por alguns anos.


Alguns intelectuais espantados com o caso de Gaudino, tais como Dalmo Dalari e José de Souza Martins, procuraram os recursos jurídicos favoráveis a ele para libertá-lo e tirá-lo do esquecimento em que se encontrava. A tarefa ética e intelectual deles não alivia o saldo geral da história. Saímos do filmes nos perguntando o que permite a um Estado autoritário ter esse poder de definir quem é e quem não é um crimonoso ou um louco que não responde pelos seus atos. O filme deixa a impressão desconcertante, mas imprescindível de que o caso Galdino é só a degenaração de uma prática comum a todos os que detém o poder. A prática de construir os inimigos e os perigos contra todos aqueles que não compartilham de alguma maneira do poder estabelecido. A ditadura militar brasileira é só o caso mais degenerado dessa prática que Galdino conhece bem, pois é talvez o caso mais emblemático dessa desfaçatez do poder.

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