2 de set. de 2008

A Nova Historiografia do Cinema

Quando o cinematógrafo dos Lumiere era lançado, a disciplinas mais importantes do século XIX era a história, que sobre os auspícios do positivismo era tida como ciência dedicados aos fatos verdadeiros. O século XX chegou com a história ainda tendo essa importância capital na compreensão da sociedade humana e quando os primeiros livros sobre o nascimento do cinema surgiram, eles se pretendiam livros de histórias, como o Historique du Cinemá de Emily Kress.

Todavia a maior parte das primeiras histórias do cinema eram relatos técnicas voltadas aos aspectos de invenção técnicos da imagem em movimento. Todavia, no meio do caminho da escrita dessas histórias um fato alterou profundamente a relação que os escritores tinham com o cinema: o fim do era mudo. Por volta da década de 1920 o cinema havia atingido uma qualidade invejável em pouquíssimo tempo. O som teve um impacto meteórico na produção já consolidada e dotada de uma tradição que foram os filmes mudos. Foi nessa época que surgiram as primeiras “histórias da arte cinematográfica”, dedicadas a relatar a genealogia do cinema como produção artística.

O modelo historiográfico usado por essas histórias da arte do cinema foi o da história da literatura clássica, o qual consistia em enumerar obras-primas, movimentos, autores principais, gêneros e caráter nacional das produções. Essas novas histórias do cinema assim procuraram estabelecer uma hierarquia entre os principais filmes e aqueles que deveriam ser esquecidos, os maiores diretores e roteiristas, atores e atrizes, produtores, movimentos, gêneros e produções nacionais. Tais propostas de histórias estéticas se formaram com um pressuposto teórico teleológico: o cinema narrativo. Ou seja, os historiadores dessa época (e até os anos 1960) trabalhavam com a idéia de que a essência da arte cinematográfica era o cinema narrativo, com filmes com início-meio-fim estabelecidos – para eles toda a trajetória do cinema deveria ser compreendida a partir dessa idéia. Assim as primeiras décadas do cinema passavam a ser entendidas, a partir dos anos 1930, como a descoberta da natureza narrativa da sétima arte que marcharia corajosamente rumo a narrativa. Este é o modelo de história de clássicos do cinema mundial como as primeiras obras de George Sadoul, Jean Mitry (este mais ousado) e Guido Aristarco, para ficar em alguns dos grandes exemplos. Entre 1930 e 1960 predominaram assim as histórias do cinema enciclopédicas, aquelas que estavam mais dedicadas a panoramas gerais da arte cinematográfica.

Este período de ouro da história clássica do cinema, como podemos chamá-la, era em boa parte escrita ao mesmo tempo em que os fatos ocorriam ou logo em seguida a sua ocorrência. Não raro, os historiadores eram ao mesmo tempo cronistas dos acontecimentos, além de usarem, acima de tudo, da memória pessoal como fonte de dados sobre os filmes os cujas histórias eram relatadas. A memória era um dos recursos principais desses escritores preocupados em estabelecer hierarquias das obras-primas e dos principais diretores, o que ajudou a criar uma classificação que colocou alguns nomes (tais como David Griffth, Sergei Eisenstein, Freidrich Murnau, Abel Gance, Orson Welles, etc.) no topo do Olimpo cinematográfico.

Foi apenas na década de 1960 que começou, timidamente, um movimento de visitas aos arquivos disponíveis com material sobre cinema, de publicações da época do lançamento dos filmes às próprias obras. Incentivados por nomes do porte Noel Burch, importante teórico do cinema, os historiadores começaram a acreditar que era preciso estabelecer alguns critérios de prova e contraprova ao que afirmavam quanto à história do cinema. Não bastava mais confiar na memória, logo porque alguns fatos (como os primórdios do cinema) ficavam já tão distantes no tempo, que era necessário usar de outras fontes. Os próprios filmes deveriam ser consultados em arquivos e cinematecas.

Nas décadas seguintes, nos anos 1970 e 1980, houve um movimento de revisão das bases teóricas da história do cinema incentivada por vários motivos: 1) o recurso dos arquivos que continham filmes e publicações de época; 2) o novo momento tecnológico pelo qual o próprio cinema passava; 3) uma preocupação de revisão das trajetórias dos primórdios do cinema; 4) a academização dos estudos históricos do cinema. O primeiro fator possibilitou aos sujeitos da escrita da história (os historiadores) um distanciamento do seu objeto (o cinema) possibilitando superar os aspectos de crônicas e o repensar de sua prática. O segundo fator foi a constatação de que o cinema possuía agora importantes concorrentes na indústria do entretenimento (a televisão) e perdia o papel principal como arte de vanguarda na experimentação das artes das imagens graças ao vídeo, tornando-se uma imagem entre muitas. A revisão dos arquivos permitiu conferir se as histórias do cinema anteriores eram fiéis aos fatos ou se criaram novos mitos. Finalmente a maioria dos estudos de análise, teoria e história do cinema passavam a ser realizados nos meios universitários o que significou aumento de densidade teórica e metodológica nas pesquisas.

Esse conjunto de fatores promoveu o abandono de um dos maiores pressupostos da história clássica do cinema: a narrativa como princípio teleológico. Historiadores como o norte-americano Tom Gunning e o canadense André Gaudreault mostraram que o cinema narrativo havia sido um acidente, uma construção histórica e não um futuro necessário do cinema. O processo de como se passou a narrar com imagens foi uma árdua experimentação que nasceu da tentativa de criar unidades de tempo e espaço na passagem entre os planos como ocorreu nas obras de David Griffith. O cinema nasceu como uma atração tecnológica de feira, uma dentre muitas artes ópticas e técnicas do final do século XIX, concorrendo diretamente com o panorama e outras invenções tecnológicas e visuais. Marcado por seu espaço de exibição era um “cinema das atrações”, ou seja, o filme era uma atração entre muitas nas feiras, e não contava uma história.

A idéia da narrativa como uma construção e não como um destino do cinema na história redefiniu alguns dos pressupostos teóricos da nova historiografia, a qual começou a importar novas metodologias e bases filosóficas desde conceitos das narratologias francesa e anglo-saxônica e das filosofias de Walter Benjamin e Michel Foucault. Também a historiografia do cinema clássico revisou os parâmetros com metodologias neoformalistas e forte influência da filosofia analítica e da psicologia cognitivista. Essa nova historiografia tem algumas obras-chaves entre as quais podemos citar: David Griffith and the Origins of American narrative film: the early years at Biograph (1994), de Tom Gunning; Du Littéraire au Filmique, de André Gaudreault (1988); Film History: theory and practice (1985) de Robert Allen e Douglas Gomery; Classical Hollywood Cinema (1985), de Bordwell, Staiger e Thompson; The Early Cinema (1990), organizado por Thomas Elsaesser; Babel and Babylon: spectorship in American silent film, de Mirian Hansen.

Essa nova historiografia do cinema ainda está passando por mudanças e permanece na fase de restabelecer os fatos relevantes da história do cinema, bem como ainda tem de aprofundar suas reflexões teóricas e metodológicas. Hoje ela está influenciada pelos chamados visual studies, nova moda acadêmica. Um exemplo dessa nova fase é o livro, disponível em língua portuguesa, Cinema e a Invenção da Vida Moderna, organizada por Leo Charney e Vanessa Schwartz.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ao ler o texto, tive tais sensações: antes, o cinema dava três passos, enquanto a história do cinema dava um passo, hoje, o cinema dá três passos para trás, enquanto a história do cinema continua a dar um passo para a frente. Será que história do cinema alcançou ou ultrapassou o cinema, esta arte meio decadente.

Unknown disse...

Boa pergunta. Acho que a história está melhorando, mas o cinema não me parece pior.
Mas como toda arte mutante, sempre há um medo de perder o que se tem.

 
Free counter and web stats