Ai, que preguiça! Estejam certos, não é a frase ideal para começar o texto. O leitor pode entendê-la como seu desejo perante a leitura. Ou abrir um sorriso e lembrar-se de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Ainda bem, pois meu objetivo é homenagear o protagonista. Tão bem construído por Mário de Andrade que ganhou vida própria. Magistralmente adaptado por Joaquim Pedro de Andrade no cinema que adquiriu rosto. Melhor, rostos: Grande Otelo e Paulo José.
A Constituição Federal de 1988 tem de pedir benção ao herói de nossa gente. Se ela completou 20 anos no último dia 5, ele completou 80. A rapsódia de Mário de Andrade foi inspirada nos mitos descritos pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg sobre os povos indígenas da região da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa. Alfredo Bosi observa que “a mediação entre o material folclórico e o tratamento literário modernos faz-se via Freud”. E as transformações do protagonista obedecem à estrutura do pensamento selvagem, descrito por Claude Lévi-Strauss como “pensamento capaz de compor e recompor configurações a partir de conteúdos díspares esvaziados de suas primitivas funções” (História concisa da literatura brasileira, p. 352).
Macunaíma é o herói sem nenhum caráter porque está em constante transformação, espécie de argila a ser moldada pelo medo e pelo prazer. Índio nascido preto, sem pai, torna-se branco. Malandro a cair na conversa dos mais espertos. Mentiroso incorrigível a mentir para sobreviver ou para tirar vantagem. Egoísta tragado pelo egoísmo dos outros. Mulherengo a sofrer por causa de uma mulher. Nasce no fundo do mato-virgem, renasce na metrópole.
Tendo em mente o protagonista amorfo da rapsódia de Mário de Andrade, Joaquim Pedro de Andrade é fiel à Macunaíma por não ser canônico. No press book de 1969, afirma que considera o filme um comentário ao livro. Realmente é. Quem estiver a fim de ver literatura no cinema está indo ao lugar errado. Não tente inovar, vá à biblioteca.
As mudanças do longa-metragem são precisas e circunstanciais, produtos de um homem consciente da histórica e da estética. Em 1969, o herói de nossa gente estava com 41 anos. O diretor tinha clareza dos propósitos do escritor, de voltar-se contra a arte dos salões, representada pelo Parnasianismo, com sua dicção afrancesada, através do uso da linguagem oral, da cultura popular, parodiando os discursos empolados dos oradores. Uma afronta iniciada em 1922 que se consolidou ao longo dos anos, através das obras iniciais e dos manifestos.
Mas a iconoclastia ganhou forma no Manifesto Antropofágico. Joaquim Pedro de Andrade digeriu Mário de Andrade com o estômago de Oswald de Andrade e o olhar aguçado da sua câmera. Atualizou Macunaíma à conjuntura política (Ci era guerrilheira), parodiou a estética julgada ultrapassada da chanchada (o humor burlesco), ironizou o kitsch tropicalista (o figurino de Anísio Medeiros) e deu algumas cutiladas na ditadura civil-militar (a canção ufanista em momentos grotescos ou trágicos).
Se havia sutileza no livro, na película ela tornou-se mau gosto, exagero e grossura. Humor de menino criado na rua, empinando pipa, andando de carrinho de rolimã, jogando bola, caçando passarinho com estilingue, entre tantas outras brincadeiras. Quem pensa como a mãe a dar tapa na boca do filho por falar sujeiras se incomodará com o Macunaíma de 1969. Se bobear, até com a lascívia do de 1928. Como afirma Joaquim Pedro de Andrade no press book, “Procurei fazer um filme sem estilo predeterminado. Seu estilo seria não ter estilo. Uma antiarte, no sentido tradicional da arte [...] Não existem nele concessões ao bom gosto. Já me disseram que ele é porco. Acho que é mesmo, assim como a graça popular é freqüentemente porca, inocentemente porca como as porcarias ditas pelas crianças.”
Apesar de imerso na estética antropofágica e no momento histórico, a fita é atual, pois de certa forma mantém-se como nossa imagem refletida no espelho. Sim, é um reflexo distorcido. “Mesmo quando uns e outros enfatizam apenas aspectos da situação ou acontecimento, inclusive esquecendo outros aspectos, mesmo nesses casos ocorre alguma forma de esclarecimento”, as palavras do sociólogo Octavio Ianni no artigo Tipos e mitos do pensamento brasileiro nos esclarecem. Não é à toa que o filme teve uma das maiores mobilizações no MovieMobz. Ainda nos divertimos com nós mesmos, com Macunaíma (Grande Otelo e Paulo José), com Ci (Dina Sfat), com Jiguê (Milton Gonçalves), com Maanape (Rodolfo Arena) e com Pietro Pietra (Jardel Filho).
Ai, que preguiça! Para que falar do enredo se todos o conhecem de cor e salteado? Contudo, no ano em que sua obra máxima completou 80 anos, sou obrigado a dar os parabéns a Mário de Andrade, nascido em 9 de outubro de 1893. Parabéns, Mário. No cinema, o herói de nossa gente esteve em boas mãos. Mas o câncer de Joaquim Pedro de Andrade o levou alguns dias antes dele ver um de seus sonhos realizados, uma constituição a ver o povo como cidadão. Para nós, brasileiros, além da Constituição Federal de 1988 ainda não muito bem consolidada, com muitos direitos garantidos constitucionalmente que ainda não se realizaram de fato, temos duas obras-primas, uma a dignificar nossa literatura e outra o nosso cinema.
A Constituição Federal de 1988 tem de pedir benção ao herói de nossa gente. Se ela completou 20 anos no último dia 5, ele completou 80. A rapsódia de Mário de Andrade foi inspirada nos mitos descritos pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg sobre os povos indígenas da região da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa. Alfredo Bosi observa que “a mediação entre o material folclórico e o tratamento literário modernos faz-se via Freud”. E as transformações do protagonista obedecem à estrutura do pensamento selvagem, descrito por Claude Lévi-Strauss como “pensamento capaz de compor e recompor configurações a partir de conteúdos díspares esvaziados de suas primitivas funções” (História concisa da literatura brasileira, p. 352).
Macunaíma é o herói sem nenhum caráter porque está em constante transformação, espécie de argila a ser moldada pelo medo e pelo prazer. Índio nascido preto, sem pai, torna-se branco. Malandro a cair na conversa dos mais espertos. Mentiroso incorrigível a mentir para sobreviver ou para tirar vantagem. Egoísta tragado pelo egoísmo dos outros. Mulherengo a sofrer por causa de uma mulher. Nasce no fundo do mato-virgem, renasce na metrópole.
Tendo em mente o protagonista amorfo da rapsódia de Mário de Andrade, Joaquim Pedro de Andrade é fiel à Macunaíma por não ser canônico. No press book de 1969, afirma que considera o filme um comentário ao livro. Realmente é. Quem estiver a fim de ver literatura no cinema está indo ao lugar errado. Não tente inovar, vá à biblioteca.
As mudanças do longa-metragem são precisas e circunstanciais, produtos de um homem consciente da histórica e da estética. Em 1969, o herói de nossa gente estava com 41 anos. O diretor tinha clareza dos propósitos do escritor, de voltar-se contra a arte dos salões, representada pelo Parnasianismo, com sua dicção afrancesada, através do uso da linguagem oral, da cultura popular, parodiando os discursos empolados dos oradores. Uma afronta iniciada em 1922 que se consolidou ao longo dos anos, através das obras iniciais e dos manifestos.
Mas a iconoclastia ganhou forma no Manifesto Antropofágico. Joaquim Pedro de Andrade digeriu Mário de Andrade com o estômago de Oswald de Andrade e o olhar aguçado da sua câmera. Atualizou Macunaíma à conjuntura política (Ci era guerrilheira), parodiou a estética julgada ultrapassada da chanchada (o humor burlesco), ironizou o kitsch tropicalista (o figurino de Anísio Medeiros) e deu algumas cutiladas na ditadura civil-militar (a canção ufanista em momentos grotescos ou trágicos).
Se havia sutileza no livro, na película ela tornou-se mau gosto, exagero e grossura. Humor de menino criado na rua, empinando pipa, andando de carrinho de rolimã, jogando bola, caçando passarinho com estilingue, entre tantas outras brincadeiras. Quem pensa como a mãe a dar tapa na boca do filho por falar sujeiras se incomodará com o Macunaíma de 1969. Se bobear, até com a lascívia do de 1928. Como afirma Joaquim Pedro de Andrade no press book, “Procurei fazer um filme sem estilo predeterminado. Seu estilo seria não ter estilo. Uma antiarte, no sentido tradicional da arte [...] Não existem nele concessões ao bom gosto. Já me disseram que ele é porco. Acho que é mesmo, assim como a graça popular é freqüentemente porca, inocentemente porca como as porcarias ditas pelas crianças.”
Apesar de imerso na estética antropofágica e no momento histórico, a fita é atual, pois de certa forma mantém-se como nossa imagem refletida no espelho. Sim, é um reflexo distorcido. “Mesmo quando uns e outros enfatizam apenas aspectos da situação ou acontecimento, inclusive esquecendo outros aspectos, mesmo nesses casos ocorre alguma forma de esclarecimento”, as palavras do sociólogo Octavio Ianni no artigo Tipos e mitos do pensamento brasileiro nos esclarecem. Não é à toa que o filme teve uma das maiores mobilizações no MovieMobz. Ainda nos divertimos com nós mesmos, com Macunaíma (Grande Otelo e Paulo José), com Ci (Dina Sfat), com Jiguê (Milton Gonçalves), com Maanape (Rodolfo Arena) e com Pietro Pietra (Jardel Filho).
Ai, que preguiça! Para que falar do enredo se todos o conhecem de cor e salteado? Contudo, no ano em que sua obra máxima completou 80 anos, sou obrigado a dar os parabéns a Mário de Andrade, nascido em 9 de outubro de 1893. Parabéns, Mário. No cinema, o herói de nossa gente esteve em boas mãos. Mas o câncer de Joaquim Pedro de Andrade o levou alguns dias antes dele ver um de seus sonhos realizados, uma constituição a ver o povo como cidadão. Para nós, brasileiros, além da Constituição Federal de 1988 ainda não muito bem consolidada, com muitos direitos garantidos constitucionalmente que ainda não se realizaram de fato, temos duas obras-primas, uma a dignificar nossa literatura e outra o nosso cinema.
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