A desconfiança tornou-se um hábito de qualquer espectador que passou a se interessar por ver um filme sobre Batman desde que Joel Schumacher fez o que fez em meados dos anos 1990. Por isso mesmo, quando fui ao cinema conferir o novíssimo Batman – O Cavaleiro das Trevas, devo dizer que entrei cabreiro e reticente. Isso porque as notícias de que algumas das melhores HQs já realizadas nos anos 1980 tinham sido fonte de inspiração ao novo filme me deixaram temeroso. Leitor assíduo dos bons quadrinhos dos anos 1980, esperava sinceramente um desastre. E veio um dos melhores filmes do ano. Certamente, o melhor filme de super-herói desde o mítico Superman - o Filme.
Christopher Nolan, o diretor, surpreendeu ao conseguir juntar com sucesso elementos de três histórias muito bem escritas e antológicas da cultura norte-americana nas quais, entre outras coisas, se encontram Batman e o Coringa: Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller; A Piada Mortal, de Alan Moore; e Asilo Arkhan, de Grant Morisson. Os que têm cultura de gibis sabem o que significam essas histórias para o contexto do quadrinho americano e mundial. O novo filme trouxe de volta algumas das coisas mais interessantes sob um embate que os anos 1980 tornou mítico: o encontro de uma força invencível (Coringa) com um objeto irremovível (Batman), um dos corolários mais usados nos gibis americanos para uma série de HQs, mas que serve magnificamente bem (chegando a ser usado no próprio filme) neste caso.
Há tantas diferenças entre filmes e HQs que seria desnecessário frisar. Talvez a visualmente mais gritante seja mesmo a brilhante, ainda que perigosa, Gotham City, sem a névoa que sempre a caracterizou, sem ter encarnada no seu céu cinzento a condição de lado escuro imaginário de New York. A outra é, novamente, a perda de interesse pelo Batman em si, esse personagem decidido e profundo. O Coringa (novamente) ficou tão forte na fita, que o impacto de sua existência na vida de Batman não foi avaliado, como ocorre nos gibis. Uma pena, pois era justamente a evidência de Bruce Wayne como um arquiteto profundo e consciente de sua própria loucura sui generis que o torna um personagem formidável.
Mas é um filme! E Cavaleiro das Trevas conserva-se como fabuloso filme de ação, dotado de todas as mentirinhas do “gênero” e carregado de uma inteligência rara encarnada no antagonista, o Coringa. A inteligência de Coringa, sua consciência de sua própria condição que o tornam assustador. Mais do que o Lecter, de Silêncio dos Inocentes, que via antes de tudo seus próprios interesses, Coringa age como um profanador caótico, um agente do movimento. As religiões afro-brasileiras o interpretariam como um Exu ou um Mavambo, um mestre das traquinarias infindáveis. Diria que o personagem tem uma esquizofrenia toda especial: ele não quer revolucionar o mundo num anarquismo fascista reverso (como o Tyler Durden, de Clube da Luta), nem demonstrar uma grande moral doentia pela demonstração da queda moral alheia (como o John, de Seven). A especialidade do Coringa é fazer parte de um tipo de personagem bem comum no universo de quadrinhos da DC, editora americana que publica os gibis do Batman: um agente do Caos no sentido mais pleno da palavra, criatura que encarna o espelho reverso das propostas de ordenação do mundo e que desafia qualquer concepção sobre as utilidades desta. Nada de anarquia ou moral, ele quer desafiar a ordem, fazer a si mesmo fazendo dela seu espelho, compreende-se como o espelhado do mundo ordenado, mas não é nada sem ele.
Diria mesmo que Coringa se compreende como o dono do mundo: sua Gotham, seu Batman, com os quais pode construir sua auto-imagem e se divertir com ela. Sem eles, sem este espelho, desapareceria. Ele só pode ser invencível na medida em que encontra uma força que o desafia, algo irremovível. Não é esta uma qualidade da ordem: tentar ser estática, pousar o sentido? Não é essa uma característica do caos: forçar a mudança, afanar o sentido? O empreendimento do personagem de Heath Ledger é o mesmo sempre: divertir-se com a inutilidade de sentido alheia. Mostrar que um dia ruim pode transformar um herói num monstro, como ocorre com Duas Caras. E o objetivo de Batman é evitar isso, mostrando que pode ser só com o Coringa, ou com alguns outros, que dias ruins mudam homens em bestas, mas não com todos. O jogo mítico dos personagens tornou-se, no novo filme, um embate sobre o viver em sociedade.
Novamente o problema foi a redução de Bruce Wayne a um rico esperto que gosta de dar pancada. Um neurótico da ordem de Coringa, mas dotado de menor auto-consciência. O inimigo o joga no espelho, mas o filme aproveita pouco isso, transformando Bruce Wayne num crente inveterado do espírito americano, que não cansa de tentar ajudar aos outros. Um escoteiro e justiceiro. Uma pena: seria mais rico se o filme reconhecesse o fato de que não há alternativa para Batman, que sua boa vontade é só um aspecto de sua própria loucura e que se Coringa quer ver o circo pegar fogo, como diz sabiamente Alfred, para Bruce só resta sua vingança, cujo único limite é a regra de não matar.
Só que este é o Cavaleiro das Trevas que eu queria. Não o que Nolan nos deu, que já está de excelente tamanho. Maravilhoso na proposta e na execução (e finalmente) com um esquizofrênico com uma cosmovisão mítica e ética (raríssimo). Palmas para a magnífica atuação do falecido Ledger, construída minuciosamente nos gestos e tons de voz. Christian Bale ainda é o Bruce Wayne mais bem sucedido da história. Ótimo ator, ele era a alma do Batman – Begins, e continua dando uma presença e humanidade ao que outros atores só deram caricaturas. O Alfred de Michael Caine é um prazer à parte, com sua linda e marcante presença. Finalmente, o Lucius Fox, que como o nome diz é esperto como uma raposa, torna-se o mais vivo dos personagens graças ao toque de Morgan Freeman. É sempre bom ver atuações humanas como as de Caine e Freeman emoldurando obras como Cavaleiro das Trevas. São detalhes de humanidade como estes que ajudam a tornar o espetacular embate mítico dos gibis grande cinema.
Christopher Nolan, o diretor, surpreendeu ao conseguir juntar com sucesso elementos de três histórias muito bem escritas e antológicas da cultura norte-americana nas quais, entre outras coisas, se encontram Batman e o Coringa: Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller; A Piada Mortal, de Alan Moore; e Asilo Arkhan, de Grant Morisson. Os que têm cultura de gibis sabem o que significam essas histórias para o contexto do quadrinho americano e mundial. O novo filme trouxe de volta algumas das coisas mais interessantes sob um embate que os anos 1980 tornou mítico: o encontro de uma força invencível (Coringa) com um objeto irremovível (Batman), um dos corolários mais usados nos gibis americanos para uma série de HQs, mas que serve magnificamente bem (chegando a ser usado no próprio filme) neste caso.
Há tantas diferenças entre filmes e HQs que seria desnecessário frisar. Talvez a visualmente mais gritante seja mesmo a brilhante, ainda que perigosa, Gotham City, sem a névoa que sempre a caracterizou, sem ter encarnada no seu céu cinzento a condição de lado escuro imaginário de New York. A outra é, novamente, a perda de interesse pelo Batman em si, esse personagem decidido e profundo. O Coringa (novamente) ficou tão forte na fita, que o impacto de sua existência na vida de Batman não foi avaliado, como ocorre nos gibis. Uma pena, pois era justamente a evidência de Bruce Wayne como um arquiteto profundo e consciente de sua própria loucura sui generis que o torna um personagem formidável.
Mas é um filme! E Cavaleiro das Trevas conserva-se como fabuloso filme de ação, dotado de todas as mentirinhas do “gênero” e carregado de uma inteligência rara encarnada no antagonista, o Coringa. A inteligência de Coringa, sua consciência de sua própria condição que o tornam assustador. Mais do que o Lecter, de Silêncio dos Inocentes, que via antes de tudo seus próprios interesses, Coringa age como um profanador caótico, um agente do movimento. As religiões afro-brasileiras o interpretariam como um Exu ou um Mavambo, um mestre das traquinarias infindáveis. Diria que o personagem tem uma esquizofrenia toda especial: ele não quer revolucionar o mundo num anarquismo fascista reverso (como o Tyler Durden, de Clube da Luta), nem demonstrar uma grande moral doentia pela demonstração da queda moral alheia (como o John, de Seven). A especialidade do Coringa é fazer parte de um tipo de personagem bem comum no universo de quadrinhos da DC, editora americana que publica os gibis do Batman: um agente do Caos no sentido mais pleno da palavra, criatura que encarna o espelho reverso das propostas de ordenação do mundo e que desafia qualquer concepção sobre as utilidades desta. Nada de anarquia ou moral, ele quer desafiar a ordem, fazer a si mesmo fazendo dela seu espelho, compreende-se como o espelhado do mundo ordenado, mas não é nada sem ele.
Diria mesmo que Coringa se compreende como o dono do mundo: sua Gotham, seu Batman, com os quais pode construir sua auto-imagem e se divertir com ela. Sem eles, sem este espelho, desapareceria. Ele só pode ser invencível na medida em que encontra uma força que o desafia, algo irremovível. Não é esta uma qualidade da ordem: tentar ser estática, pousar o sentido? Não é essa uma característica do caos: forçar a mudança, afanar o sentido? O empreendimento do personagem de Heath Ledger é o mesmo sempre: divertir-se com a inutilidade de sentido alheia. Mostrar que um dia ruim pode transformar um herói num monstro, como ocorre com Duas Caras. E o objetivo de Batman é evitar isso, mostrando que pode ser só com o Coringa, ou com alguns outros, que dias ruins mudam homens em bestas, mas não com todos. O jogo mítico dos personagens tornou-se, no novo filme, um embate sobre o viver em sociedade.
Novamente o problema foi a redução de Bruce Wayne a um rico esperto que gosta de dar pancada. Um neurótico da ordem de Coringa, mas dotado de menor auto-consciência. O inimigo o joga no espelho, mas o filme aproveita pouco isso, transformando Bruce Wayne num crente inveterado do espírito americano, que não cansa de tentar ajudar aos outros. Um escoteiro e justiceiro. Uma pena: seria mais rico se o filme reconhecesse o fato de que não há alternativa para Batman, que sua boa vontade é só um aspecto de sua própria loucura e que se Coringa quer ver o circo pegar fogo, como diz sabiamente Alfred, para Bruce só resta sua vingança, cujo único limite é a regra de não matar.
Só que este é o Cavaleiro das Trevas que eu queria. Não o que Nolan nos deu, que já está de excelente tamanho. Maravilhoso na proposta e na execução (e finalmente) com um esquizofrênico com uma cosmovisão mítica e ética (raríssimo). Palmas para a magnífica atuação do falecido Ledger, construída minuciosamente nos gestos e tons de voz. Christian Bale ainda é o Bruce Wayne mais bem sucedido da história. Ótimo ator, ele era a alma do Batman – Begins, e continua dando uma presença e humanidade ao que outros atores só deram caricaturas. O Alfred de Michael Caine é um prazer à parte, com sua linda e marcante presença. Finalmente, o Lucius Fox, que como o nome diz é esperto como uma raposa, torna-se o mais vivo dos personagens graças ao toque de Morgan Freeman. É sempre bom ver atuações humanas como as de Caine e Freeman emoldurando obras como Cavaleiro das Trevas. São detalhes de humanidade como estes que ajudam a tornar o espetacular embate mítico dos gibis grande cinema.
Um comentário:
Ótimo texto.
Acho que TDK é o melhor filme de super-herói de todos os tempos.
Um roteiro invejável, digno de um Poderoso Chefão. O filme é todo fundamentado em opostos, e em contradições; sendo a mais básica delas a oposição palhaço-mal-caos/morcego-bem-ordem, o que insere uma antítese em cada parte da oposição (palhaço deveria ser o bem, o colorido; morcego deveria ser o mal, o negro).
Nesse contexto, o duas-caras se encaixa perfeitamente; e o filme se encarrega de deixar isso claro quando o discurso de Gordon fala do white knight e do dark knight.
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