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9 de fev. de 2009

Em Cartaz: "LEONERA"

Concorrente à Palma de Ouro em Cannes 2008, onde foi ovacionado pela crítica, Leonera, filme do argentino Pablo Trapero, retrata com uma virtuosa densidade dramática um crime mal explicado e compreendido através de sua principal personagem – Júlia Zarate (em uma bela interpretação de Martina Gusman), uma jovem universitária que acorda de um pesadelo para, literalmente, cair em outro. Porém, desta vez um pesadelo real. Um provável triângulo amoroso entre Júlia, seu namorado misteriosamente assassinado e Ramiro (Rodrigo Santoro, em apenas alguns planos, contudo fundamentais para enriquecer a trama) proporcionam, em um lúgubre apartamento, apenas o início do calvário de Júlia.

A situação da personagem ganha um outro enfoque, um novo ambiente – o cárcere. Com o decorrer da trama, nota-se que o roteiro não faz concessões óbvias ao crime que dá, por consequência, a detenção de Júlia, mostrando-a confusa e refutando a idéia de maternidade. A atuação da atriz Martina Gusman, sobre semblantes carregados e sem perspectivas em seu novo destino, proporciona ao filme uma carga dramática acentuada (mas sem exageros), enriquecendo a centralização do filme: é um só personagem e seu espaço.

O espaço em questão é o cárcere, ao qual Júlia terá de adaptar-se, pois terá de viver neste difícil ambiente por tempo indeterminado, até seu julgamento. O filme poderia se encaminhar para uma condução melodramática das agruras da personagem principal, mas não é isso que acontece. Pablo Trapero insere o espectador em uma jornada aos bastidores do cárcere feminino, mostrando suas estruturas e mazelas, o convívio entre mulheres condenadas, muitas delas com crianças crescendo sob um ambiente inadequado. Eis a principal referência que a estória em questão proporciona: o convívio e a adaptação de uma jovem mãe detida, ainda sem saber o que o futuro lhe reserva.

Os detalhes do cotidiano carcerário feminino dão a vivacidade e a crueza da realidade vivida nos presídios, desde a ausência familiar, o flerte homossexual sob forma de necessidade humana de afeto e as relações de poder e castigo do sistema. Voltando ao calvário da personagem, um adendo à trama aumenta a aflição de Júlia: o nascimento e a aceitação de seu filho, o pequeno Tomas, fruto da confusa (e pouco dissecada no filme) relação amorosa do triângulo composto no começo da trama. Antes mesmo de haver um plano filmado, a situação fica evidente nos créditos iniciais, ao som de uma música que sugere a exaltação da infância.

Mesmo com o oportuno interesse de sua mãe, personagem até então ausente na estória, e algumas visitas de Ramiro, que por sua vez preza pelo egoísmo para tentar se safar da condenação, consequentemente selando o destino de Júlia, a jovem mãe passa a ganhar respeito e consideração no presídio através de seu convívio com a veterana Marta, sua tutora, uma espécie de matriarca que adotou a jovem confusa e frágil detenta. Trapero já havia retrato em outro filme, o ótimo O Outro Lado da Lei (El Bonaerense, ARG, 2001), o submundo e as individualidades, o universo das prisões e suas relações de poder, acentuando ainda mais essa tenacidade em Leonera.

A luta de Júlia para tentar sair da prisão e, principalmente, para não perder a guarda de seu filho é a via final para o desfecho da trama. Pois progressivamente, a película vai mostrando a jovem mãe aflorando sua beleza e maturidade maternal, mesmo num meio onde o ser humano é consumido por suas aflições. Vale questionar agora o porquê de Leonera ser o nome do filme?

Contudo, não vale supor ou apontar sugestões para chegar à resposta desta pergunta. Cabe ao expectador enxergar e concluir o que é ou o que (quem) pode ser Leonera, pois o filme de Pablo Trapero foge do “padrão” de abordagens dramáticas da classe média argentina e suas nuances para um trabalho referencial sobre dramas carcerários, diferindo do charmoso “cinema urbano” argentino.



Filme em cartaz em Porto Alegre, na data deste post.

25 de dez. de 2008

Em Cartaz: "GOMORRA"

Filmes sobre máfia em geral costumam apresentar uma linearidade em suas narrativas. Tal peculiaridade visa enfocar a alta hierarquia das famílias mafiosas através de suas nuances e ramificações. O tom obscuro e por vezes nefasto dos personagens que interpretam referências do mundo gângster dá mais ênfase à ilicitude de suas ações. Em Gomorra (Itália, 2008) o jovem diretor Matteo Garrone adaptou o homônimo relato jornalístico de Roberto Saviano para as telas de forma crua e obscura, como requer o gênero.

No entanto, tal adaptação é virtuosa por mostrar o “baixo clero”, ou seja, o submundo da Camorra, a máfia napolitana que age de forma onipresente na região e possui negócios ilícitos com outras máfias como a chinesa, por exemplo. Mas o filme de Garrone não é voltado a um contexto de globalização do crime e, sim, à motricidade que faz dele um negócio lucrativo e com leis internas. O bairro onde se passa parte do filme é o retrato das disparidades sociais entre o sul (subdesenvolvido) da Itália, na qual jovens sem perspectivas profissionais e de vida almejam ingressar no mundo do crime atraídos pelo dinheiro rápido, reconhecimento perante seus superiores por intermédio das ações violentas, mas principalmente pelo contato direto com dinheiro, não importando sua licitude.

O aliciamento de jovens é uma das facetas que compõe as estruturas da Camorra, assim como cobrança de impostos e redistribuição de dinheiro para famílias protegidas pela máfia local. Se em Scarface e O Poderoso Chefão temos ícones como Tony Montana (citado no começo da fita por dois jovens dispostos a subverter os valores da máfia) e Don Corleone, em Gomorra não há essa referência a um destaque especifico, como nos clássicos de Howard Hawks e Francis Ford Coppola, respectivamente.

Uma narrativa não-linear é composta por quatro situações diferentes: o garoto Totò, embora muito jovem, pretende ingressar no submundo do crime, colaborando com a hierarquia presente. Don Ciro é o coletor de imposto e distribuidor de uma “mesada” para as famílias que pagam pela proteção e vive numa linha tênue entre o respeito à Máfia e a insatisfação agressiva para com a sua função. O veterano Franco tenta arrumar em Roberto seu sucessor como um gerenciador direto do alto comando da Camorra - todavia, Roberto vive sob a dúvida de que se o crime organizado é mesmo a melhor saída. O alfaiate Pasquale, que presta serviços a membros da Camorra, tenta resistir à sedução de trabalho para a máfia chinesa, o que pode comprometer a sua segurança.

Tais personagens não se cruzam e nem suas histórias se entrelaçam, o que da mais vivacidade e crueza à narrativa proposta pelo diretor. Os negócios ilícitos e a lavagem de dinheiro variam da produção de tecidos e roupas em grande escala, tráfico de drogas e de armas, até a desova de lixo tóxico de Nápoles. O título do filme, além da proximidade de analogia com o nome da máfia napolitana, é uma referência à cidade de Gomorra que(assim como Sodoma), segunda a bíblia judaico-cristã, foi destruída por Deus devido à prática de atos imorais.

Outro grande mérito de Matteo Garrone é a forma realista com que ele transpõe para a tela um relato jornalístico sem incursionar pelo factual. E isso fica explícito na bela narrativa e montagem do filme, assim como a coerente direção de fotografia e cenários das locações, elucubrando de forma obscura e crua que reflete à Máfia local.

O filme termina com dados coletados pelo autor do livro, Roberto Saviano, apresentando números sobre as ações violentas da Camorra: o crime organizado na Itália fora responsável por mais de 10 mil mortes, sendo que a Camorra tem participação em quase 4 mil assassinatos, além de investimentos em diversos setores econômicos, no que incidem na lavagem de dinheiro do crime organizado.

Num cinema que contribuiu com autores e obras fundamentais para a cinematografia mundial, Nanni Moretti e Marco Bellochio deram um alento ao cinema italiano, carente de grandes produções nos últimos anos, Gomorra (premiado pela Academia Européia de Cinema e pelo Júri no Festival de Cannes, ambos em 2008) se encaixa como peça fundamental na quase inexpressiva filmografia italiana dos últimos anos.

9 de dez. de 2008

Em Cartaz: OS ESTRANHOS

O mercado cinematográfico produz, a cada ano, uma quantidade enorme de filmes de terror. Com produções de baixo custo e a recorrência de boas bilheterias, muitos são os diretores iniciantes que se aventuram pelo gênero. Além do mais, basta pouco para satisfazer um crescente público sedento de sangue e do eterno prazer de sentir medo, seja no escurinho do cinema ou no aconchego e segurança da sala de televisão. Porém, essa profusão de histórias macabras tem esgotado a criatividade de roteiristas e diretores, que exploram situações e artifícios cada vez mais repetidos e, consequentemente, de pouco ou nenhum efeito, mesmo considerando que pregar sustos no espectador não é tarefa das mais difíceis. Ainda assim, esporadicamente algum diretor consegue driblar esse bloqueio criativo e produzir algo compensador. É o caso de Bryan Bertino e seu filme de estréia, Os Estranhos (The Strangers, EUA, 2008). O título soa tão clássico quanto o enredo: uma casa de campo, um casal apaixonado e uma repentina visita indesejada.

Logo no início, um letreiro informa que o filme é baseado em eventos reais, cujas circunstâncias e desdobramentos não foram bem esclarecidos. Porém essa é só uma inverídica colocação do diretor usada para aumentar a ansiedade do público. E é justamente em cima dessa mentira que Bertino conduz o filme magistralmente até o final, sem mostrar muita coisa e sem tentar explicar o que anunciou permanecer não explicado.

No dia 11 de fevereiro de 2005, o casal de namorados James Hoyt (Scott Speedman) e Kristen McKay (Liv Tyler) sai da festa de casamento de um amigo e vai para a casa de veraneio da família de Hoyt. Ainda no carro, percebe-se que o clima entre eles não é dos melhores: muito silêncio, lágrimas no rosto de Kristen. Na festa, o romântico James havia oferecido a Kristen uma aliança de noivado, mas ela recusara. Já na casa, enquanto descansam e trocam poucas palavras, alguém bate à porta. Mesmo assustados, pois é madrugada, eles abrem e uma moça pergunta por alguém desconhecido. Diante do suposto engano, ela aparentemente vai embora. Após o ocorrido, Kristen reclama que está sem cigarros e James sai para comprar. Sozinha, ela escuta a porta bater novamente. Quando James retorna, a situação já está fora de controle e o pânico começa a atingir proporções insuportáveis.

O isolamento de uma residência de campo sempre serviu de pretexto para acontecimentos sinistros. Ao mesmo tempo em que seus donos as procuram para passar momentos de tranquilidade, nelas eles permanecem mais vulneráveis. Em Violência Gratuita (Funny Games, Áustria, 1997) o diretor Michael Haneke usa dessa mesma condição para ambientar sua história. Mas diferentemente de Haneke, Bertino não pretende despertar em seu público o sentimento de culpa por deliciar-se com a desgraça alheia. Seu objetivo é menos pretensioso e mais simples: provocar medo. Essa tarefa cabe a três estranhos mascarados, um homem e duas mulheres que, apesar de serem de carne e osso, comportam-se como vultos e não pronunciam uma só palavra. Esse silêncio só é quebrado ao final, quando imobilizados diante dos malfeitores, James e Kristen perguntam por que estão passando por aquilo. A pergunta é óbvia e a resposta, curta. É praticamente uma brincadeira do diretor, que acaba colocando o filme em seu devido lugar. As tradicionais cenas de susto são constantes, porém menos aterradoras que as aparições silenciosas dos intrusos. Com boas atuações, um ótimo trabalho de câmera e economia total de efeitos típicos do gênero, Os Estranhos atinge com eficiência seu objetivo.

Os Estranhos - Bryan Bertino - EUA - 2007

24 de nov. de 2008

Em Cartaz: "VICKY CRISTINA BARCELONA"

Vicky Cristina Barcelona nos apresenta uma espécie de modo de produção intimista. As amigas Vicky e Cristina, apresentadas pelo narrador off onipresente, só parecem ser opostas. Confrontadas pelo narrador, Vicky é apresentada como séria e sistemática e Cristina como uma pessoa aventureira e inquieta. Ambas partem para um verão em Barcelona, uma cidade que inspira Cristina para a surpresa, para o novo e o inesperado. Em Vicky, a cidade sustenta as suas escolhas pelo estudo da identidade catalã, tornando-a mais segura daquilo que acredita e do conhecimento que almeja.

O título do filme sugere, e o próprio diretor sustentou a idéia, de uma terceira personagem principal, que seria a cidade de Barcelona. Entretanto, a cidade como personagem do filme, como criação, existe apenas como apropriação privada dos desejos de Vicky, de Cristina e das demais personagens que orbitam ao redor. Todas são marcadas pelo desejo exasperante, pela falta desmedida, a única diferença é que em Vicky esse desejo é represado, enquanto em Cristina ele é deliberadamente buscado e assumido.

O profundo mergulho do filme no campo dos desejos não tem fim. Soma-se as duas mulheres, o artista plástico interpretado por Javier Barden e a artista plástica interpretada por Penélope Cruz, aumentando os jogos pela satisfação pessoal, pela expressão dos sentidos, radicalizando o egoísmo, valor elementar de um mundo intimista. Desejo e morte, desde Freud, estão bastante próximos, assim como no filme, que parece uma mistura bastante atualizada de psicanálise e capitalismo.

A relação desse conjunto de personagens com a cidade de Barcelona ou com a arte é absolutamente e claustrofobicamente egoísta. O mundo está em cada personagem e, quem sabe por isso, Barcelona também possa ser personagem, justamente por se sugerir que a cidade e a arte, únicos refúgios de diálogo fora do ego, só são possíveis pela metabolização do consumo, do desejo e da apropriação privada. Como coisa pública, a arte e a cidade são virtualidades indignas de representação e se encontram fora do filme. Não é por acaso que a cidade vista pelo filme é turismo, enquanto a arte vista pelo filme é o experimentalismo formal do gênio, atributo de raridade que lhe agrega valor no mercado.

O sucesso do filme do sagrado diretor Woody Allen é nítido. Ele mastiga a psicanálise como um produto cultural, suavizado-a pelo riso. No seu filme, tudo vai mal dentro dos corpos, mas tudo bem porque eles têm vidas confortáveis, podem ir aos restaurantes atrás de surpresas, às cidades atrás de turismo, às artes atrás de beleza. O capitalismo para eles é um dado, o seu eu é a grande questão que os move, de dólar em dólar, de filme em filme. O dinheiro e a imaginação do ego se alimentam pela lei destruidora do desejo.

17 de nov. de 2008

Em Cartaz: "PAN-CINEMA PERMANENTE"

Pan-cinema Permanente é um filme que privilegia o poeta e a sua arte. Nadando contra o convencional, o filme de Nader não busca enquadrar Waly Salomão no tropicalismo, como normalmente se faz, aprisionando o autor e a obra em fatos culturais confortáveis e aceitos.

Quando se encaixa alguém no tropicalismo tudo fica mais fácil. As peças começam a se encaixar e abrem espaço para a nostalgia. O cinema, aliás, é um ótimo lugar para o público se ver desprovido de um tempo mágico, do qual ele não partilha mais ou nunca partilhou. O cinema facilmente pode se tornar uma experiência de idealização de um passado heróico e de um presente nefasto.

O filme de Nader escapa brilhantemente desses usos mais convencionais dos tempos da arte cinematográfica. No filme de Nader, o tempo se torna poesia. Não há legendas bem detalhadas, os cortes são bruscos e sem uma linha do tempo precisa. O tempo do filme segue a lógica da construção poética que se pretende discutir, e não apresentar. Toda a diferença desse filme para outras cinebiografias – como a de Paulinho da Viola, Celso Furtado e outras – é esse esmero da montagem, preocupada em manter o filme aberto para as conclusões de quem assiste. Os poemas são filmados em flashes instantâneos, onde a última linha ou palavra lida já se apagaram. Imprime-se à poética de Waly uma representação visual de suas poesias, recriando-as. O poema que dá título ao filme é lido pelo seu personagem, o cinema.

A poética convulsionada de Waly Salomão é tratada na ação. Suas cenas não são de testemunho. São cenas em que ele está se relacionando com os outros. Sua preocupação nunca é exclusivamente se narrar. Até mesmo quando está sozinho com a câmera, Waly está no computador, fazendo correções em um texto. Para Waly, como se vê durante o filme, narrar é estar em ação, expressando-se.

Os depoimentos existentes são de amigos – Antônio Cícero, Regina Casé, Caetano Veloso - e da família. Neles, procura-se uma memória afetiva de Waly, o que também escapa do simples drama, pois os depoentes não economizam motivos para expressar a falta que Waly faz.

Sua longa trajetória foi abortada por um câncer, que lhe abreviou a vida e a obra. O filme procura evidenciar a inquietação, para além da celebração. Os superlativos são suplantados pelo verbo. A história da arte é suplantada pela criação poética. A cinebiografia é suplantada pela cine-poética.

10 de nov. de 2008

Em Cartaz: "ORQUESTRA DE MENINOS"

Orquestra de Meninos de Paulo Thiago foi julgado hoje no Jornal Folha de São Paulo. Veredito: ruim. O juiz é Paulo Santos Lima, em “colaboração para a Folha”. Por que nos acostumamos a fazer do crítico de cinema um juiz?

Pode ser porque o ingresso seja caro e não se pode desperdiçar. Antes de pegar a carteira, é necessário fazer uma longa verificação na jurisprudência sobre cinema. Sinopses e críticas nos trazem o filme sem o filme. Podemos ter algo parecido com aquela colherinha de sorvete que provamos antes de levar uma bola. A despeito de toda a ladainha de que a arte é nosso alimento maior, o cinema no Brasil tem sido dominado em todos os momentos (produção, divulgação, crítica) pelo valor. Por isso é necessária uma avaliação, estrelas e outras métricas que fazem do filme algo mensurável. Mas, a dúvida é saber se a arte – e tudo o mais – é mensurável. Para quê? Mensurá-la é limitá-la, violentá-la. É fazer do crítico o dono de um filme pobre, do qual ele não conseguiu tecer qualquer articulação com a sua medíocre vida de juiz de casos que não lhe cabe julgar. Seu poder é o de reduzir as possibilidades da luz e criar falsos gênios, obras-primas com códigos de barra e se servir de espátula ou bisturi artístico para uma sociedade que se sujeita a pautar a sua vida segundo os pobres cadernos de cultura dos jornais, esmagados entre uma sentença cultural e uma coluna social. No fim das contas, saias, decotes e enquadramentos terminam no gosto do especialista?

Não se trata de advogar em favor do filme de Paulo Thiago. O filme pode e deve ser criticado. Mas, a crítica deve se alçar em algo além de si mesma, além da sua virtude de crítico, que eclipsada não é nada. O crítico, assim como o filme, é uma ponte aos outros e não a si mesmo. O nobre crítico diz “Mas não faz boa arte, e o longa será um compêndio de más escolhas: os enquadramentos que colam feio no rosto dos atores e a dramaturgia simplória” e ficamos sem saber o que é, para ele, boa arte. Aliás, o conceito de bom/ruim tem feito uma grande festa (quase uma orgia) na Ilustrada da FSP, desde a coluna da Mônica Bergamo até as críticas de cinema. Tudo é bom/mau, feio/bonito, chego a pensar que estejam avaliando apenas algumas tendências. Será? Mais adiante, o crítico fala em “vilões caricatos” e um dos vilões é Othon Bastos. Dá um TILT no conceito de vilão/mocinho, ruim e bom do crítico. E os parênteses são convocados para uma correção: “(e do qual nem o ótimo Othon Bastos consegue sair ileso)”. Ufa! Salvou o ator de filmes avalizados do cinema nacional, ele está novamente ao lado dos bons. Nesse caso, não foi culpa dele. Afinal, um filme não se faz pela atuação dos seus atores, sobretudo quando eles não têm culpa de nada, não é mesmo?

Nesse jogo maniqueísta e rasteiro, cuja a pobreza conceitual da crítica fica cuspida na cara do idiota do leitor que compra o jornal, o filme fica fora da roda e é o martelo do crítico que aparece.

O filme Orquestra de Meninos, assim como O Caso dos Irmãos Naves de L. C. Person, procurou fazer da reconstrução ficcional de uma “história real” uma oportunidade para pensarmos sobre a violência no Brasil.

O interessante é que os filmes não se fixam na violência do estado autoritário ou mesmo em uma violência de foco único. Eles usam a ficção para conseguir abarcar os múltiplos espaços de violência e cinismo da sociedade brasileira: o estado, a imprensa, o legislativo, o judiciário e também os moradores pobres. Sob esses filmes, as divisões clássicas da história entre ditadura militar e redemocratização caem por terra. Mesmo a Constituição Cidadã de 1988 fica rasgada (ou ainda não escrita) em 1993. É a ficção a única arma que o cinema possui para dar a sua versão sobre os fatos impregnados de cinismo. No filme documentário, as cenas de tortura estão sempre ausentes, só ocupadas pelo depoimento de quem as viveu. Na ficção, as cenas de violência sem registro podem ganhar uma versão que reforce os depoimentos de quem as viu efetivamente e de quem as viu e não viveu para contar.

A narrativa de Paulo Thiago é simples e enxuta, sem malabarismos estéticos, justamente porque não se trata de feio/bonito, de ousado/simplório. O que o filme pretende discutir é uma injustiça com a arte. Se a arte dos meninos é boa ou ruim, não sei, mas o que importa se a arte é boa ou ruim? Importante é como ela dialoga com a sociedade em que vive e que relações ela estabelece a partir da sua criação. No caso do filme, a música foi conquistada por Mozart e pelos meninos que dela necessitavam. Precisavam não do belo ou do bom, mas precisavam fazer, dialogar, expressar-se. Logo foram violentados por aqueles que passam os dias cultuando o bom e o belo, engravatados, cheirosos e bem alimentados.

O filme Orquestra de Meninos emociona e instaura pela ficção cinematográfica uma história a contrapelo, afrontando a história instituída na imprensa e nos poderes. Na sua narrativa, mescla-se a esperança e a violência fazendo-nos refletir sobre a necessidade de dosar o otimismo da vontade e o pessimismo da razão ante ao idealismo intimista e egocêntrico que reina cínico de segunda à segunda, 24h por dia.

3 de nov. de 2008

Em Cartaz: "O SILÊNCIO DE LORNA"

No início do filme, ela cuida de empréstimos, vai a um orelhão e fala com alguém que, tudo indica, é seu namorado. Não importa, ela é quase ninguém, um rosto que se perderia na multidão, com seus dramas, com suas pequenas alegrias.

É assim na vida, não? Eu aqui, na megalópole insana, esbarro com uma pessoa na esquina. Não sei de sua história. Não sei de onde ela veio e aonde vai. Não sei de seus anseios, de seus medos, se ela gosta de chocolate ou queijo. Não sei se ela seria capaz de deixar alguém morrer pra poder atingir seus objetivos.

Mas voltemos à distante Bélgica, cenário de nosso drama. É lá que está aquela personagem que poderia perder-se num canto da memória. Ela é Lorna (Arta Dobroshi), imigrante albanesa. Quando chega em casa, há alguém. Rock alto ouve-se da porta. É Claudy (Jérémie Renier, ator-fetiche dos irmãos Dardenne) quem está lá. O marido viciado, que logo se revela disposto a largar as drogas. Lorna o despreza.

O casamento é de conveniência, forjado por mafiosos russos, porque Lorna quer a cidadania belga. Mais que isso, ela quer abrir um negócio de lanches com seu real amor, o também imigrante Sokol (Alban Ukaj). Acontece que o contato de Lorna, Fabio (Fabrizio Rongione), quer que Claudy morra logo, de forma que Lorna fique livre para se casar com um russo e, assim, não haveria prejuízos a ninguém envolvido no negócio.

As coisas acontecem diferente. Como Claudy reafirma querer se tratar, Lorna vai se afeiçoando a ele, ao mesmo tempo que vai tentando arranjar a situação de forma que ela possa ter o divórcio sem ter de sacrificar a vida do rapaz. Pra isso, ela simula ter sido agredida.

Eis que, então, há o conflito entre Lorna e aqueles com quem mantinha negócios. Por fim, Fabio consegue seu intento, Lorna e Sokol procuram o lugar adequado pra lanchonete e um encontro com um certo russo acontece.

A moça não está confortável com a situação. Antes do encontro, recém descobrira-se grávida, o que exames posteriores não confirmam. Então este é o momento de uma fuga para a liberdade. Mas conseguirá ela lidar com a memória de tudo que ocorrera?

O Silêncio de Lorna (2008) recorre ao áspero dia-a-dia dos imigrantes que querem, a todo custo, manter-se em centros mais adiantados na Europa. Tema europeu atualíssimo e recorrente, mas aqui tratado com maestria por esses papa-prêmios de Cannes. Desta vez, levaram o de melhor roteiro. Não à toa.

A grande questão ética é a de passar por cima de tudo e de todos pra conseguir seus objetivos. Lorna vai aceitando ou questionando as situações que se colocam e é apenas gradativamente que ela se torna capaz de ser agente de seu próprio destino, dando, assim, fim ao seu silêncio.

O filme foi exibido no Festival do Rio e na 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e terá sua estreia no próximo dia 7. Quem ficar em silêncio e não ir à sala de cinema mais próxima que esteja exibindo o filme perderá um dos melhores lançamentos do ano.

O Silêncio de Lorna - Jean-Pierre e Luc Dardenne - Bélgica/França/Itália/Alemanha - 2008

21 de out. de 2008

Em Cartaz: "CASA DA MÃE JOANA"

O detalhe mais interessante do novo filme de Hugo Carvana não está no roteiro, nas atuações, nas gags físicas ou nos diálogos. Também não está na fotografia, na arte, no som e muito menos na direção. Reside, veja só, na estranha e gradual semelhança de PR (Paulo Betti) com o grande Zé Bonitinho, personagem criado por Jorge Loredo. Isso quer dizer que o trabalho vai se valer de tal semelhança para uma cena engraçada? Não. Quer dizer que ecos sganzerlianos vão ressoar em algum momento mais anárquico? Não. Quer dizer simplesmente que, se não fosse por esse detalhe, já teria esquecido o filme completamente.

Ao se valer das desventuras de três amigos companheiros de esbórnia, para além da crise de meia idade, as possibilidades de humor tendem a ser infinitas, dependendo apenas de como o material é trabalhado. O detalhe é que Carvana preferiu seguir uma linha de humor mais rasa que até funciona, dentro de suas simplórias pretensões e limites, quando não resolve partir para o uso de palavrões inofensivos e momentos de vergonha alheia.

O fato é que é notável o quanto todos os envolvidos se divertiram fazendo o projeto. As atuações são leves, extremamente despreocupadas e o rigor é praticamente inexistente quanto a tais minúcias. É mais ou menos o que acontece com Onze homens e um segredo e suas continuações, só que sem Soderbergh e seus parceiros por trás da obra (e é engraçado notar como a Casa da mãe Joana começa com o grupo de protagonistas anti-heróis executando um roubo). Tal leveza é captada pelo espectador, que assiste ao filme despreocupado, contagiado pelo tom geral e é uma pena que não haja um melhor desenvolvimento de personagens e suas situações, coisa que não incomoda a princípio, mas que vai deixando seus rastros durante o desenrolar da trama.

É, portanto, um filme que simplesmente é projetado, sem maiores problemas de assimilação, mas que não vai além disso. As subtramas dentro da trama principal – que tem uma carga interessante de subversão, ainda que tão inofensiva que passa quase batido – acabam ficando perdidas e, ao contrário de lapidar as personagens, os tornam redundantes, fazendo com que a graça fique diluída dentro dos momentos cômicos. Dessa forma, ótimos diálogos ficam envoltos em momentos de encenação que não rendem tanto como deveriam, justamente por serem uma repetição do que vimos quinze minutos antes. É sempre a cliente estranha do “coroa de programa” do Betti, a afetação do Wilker com sua filha, a mãe doida, o amigo trambiqueiro...

13 de out. de 2008

Em Cartaz: "A GUERRA DOS ROCHA"

Dizer que A Guerra dos Rocha de Jorge Fernando é um filme comercial ou um filme global seria afirmar muito pouco. Menos proveitoso ainda seria considerá-lo um filme de entretenimento. Essas bizarras considerações da crítica e de boa parte dos espectadores são responsáveis por desqualificar ou qualificar o filme sem tratar dele. Assim, falamos para os nossos guetos, aos que aceitam não só nossas idéias e nossos gostos fílmicos, como também as nossas categorias analíticas. Desse modo, falamos de um filme, mas nada sobra da avidez classificatória, algo mais botânico que cinematográfico.

A Guerra dos Rocha trata das dificuldades de uma idosa no seu relacionamento com os filhos. Viúva de um membro do exército brasileiro, Dina Rocha tem três filhos: um senador envolvido em casos de corrupção, um advogado hipocondríaco e um músico de pouco sucesso e muitas contas a pagar. Essas três caricaturas do Brasil, aliadas as suas respectivas esposas, irão entrar em guerra para saber quem ficará com a mãe.

A personagem da mãe, apesar de idosa, é dotada de força extrema. Suas debilidades físicas não lhe impedem de seguir sozinha para a casa dos filhos ou de interferir na vida da família. Os problemas começam justamente porque Dina não é uma velhinha como todas as velhinhas. Ela se impõe como personagem ativa da casa que ocupa, tanto é assim que o seu papel é desempenhado por um ator. Por essas e outras, o filme é um longo silêncio sobre o problema dos velhos em nosso país. A velhinha enfrenta as esposas dos filhos e os assaltantes. Seu grande problema não é precisar do abrigo dos filhos, é exercer poder na casa deles, onde eles se mostram pouco poderosos.

O drama é privado, doméstico. Os problemas sociais aparecem (tiroteio entre a polícia e traficantes, assaltos, corrupção), mas são tomados como dados condicionantes da vida privada. A família dos Rocha é claustrofóbica. Sua comunicação com o mundo que os circunda é ativa quando o privado é favorecido (corrupção) e míope quando o mundo os ataca - não interessa o tiroteio, interessa escapar dos tiros. O risível é essa economia das trapaças, dos favorecimentos e dos problemas íntimos (traições, influências), garantida pela imunidade que os personagens possuem frente aos conflitos sociais. Desde que eles não violentem (e é claro que em todos os filmes inquietos eles violentam), a comédia está garantida porque o drama é familiar, autoregulado, conhecido.

Este filme é um espelho de um lugar social brasileiro. Pretende trazer risos às agonias mais dramáticas da classe média e da classe alta, àqueles que podem pagar por um ingresso de cinema que custa 30 reais – o meu foi cortesia. Um filme para conversar sobre com o analista, pautando comportamentos e problemas da vida privada. Isso é entreter? Isso é falar privadamente, por meio da arte, a algumas classes sociais que pagam um ingresso caro para rir do que outrora lhes fez chorar. Há quem goste do esporte, e ele dá lucro. O estranho é que, como cinema, esse esporte não dá tão certo. Jorge Fernando não é um diretor de cinema de sucesso, embora obtenha sucesso na TV. Sinal de que o cinema não retira do sofá todos os membros dessas classes retratadas? Ou de que o cinema é um lugar que possui, ao menos no caso dos filmes brasileiros, uma vocação para a reflexão pública e social, posição que a literatura ocupava há algumas décadas atrás?

6 de out. de 2008

Em Cartaz: "ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA"


Quando veio a cegueira branca, ninguém estava preparado. Era início de 2008 e um diretor de cinema trabalhava na montagem de seu filme. Haveria Cannes. Haveria a abertura do festival. E aquele era o filme.

Recepção fria, poucos aplausos. Estranheza. Ensaio sobre a Cegueira (Blindness; 2008) no primeiro mundo. O autor do livro cuja adaptação estava ali nas telas se emocionou, ele mesmo, que era tão reticente quanto ao projeto, anos antes.

Tanta claridade ofuscava o juízo daquela gente toda ou havia algo de errado com o filme? Isso só seria descoberto por aqui quando o filme estreasse. Claro, depois de mais alguns cortes, pra agradar a gregos e troianos - ou seriam gringos e baianos? - de Hollywood.

Setembro, dia 12. Eu não estava lá, mas depois desse dia, os comentários começaram a surgir. Era uma amiga que tinha visto e adorado. Era gente no Orkut, a maioria, entusiastas. Passaram-se uns dias e pude ver. É, o filme funciona! E como funciona!

Não cabe aqui algum tipo de comparação entre filme e livro. Linguagens diferentes salientam mais - ou menos - detalhes de uma história. Como cinema, o filme de Fernando Meirelles convence, tanto como convence o livro de José Saramago. Não digo por mim, que não li o livro, mas uma história tão intensa sobre caos e decadência render um prêmio Nobel a seu autor tem de ser boa mais que o suficiente.

O diretor de O Menino Maluquinho 2 teve um grande desafio em mãos. No blog do filme está toda a saga envolvendo o projeto, toda a construção, cada detalhe, a desconfiança do mundo. Estava tudo ali.

Pra quem não sabe, Ensaio sobre a Cegueira é sobre um grande surto de uma cegueira inédita, em que as pessoas enxergavam apenas uma claridade absoluta. A estranha doença alcançou um, depois outro... quando se pode perceber, era preciso juntar toda essa gente em algum lugar, porque tudo levava a crer que se tratava de algo contagioso. Havia o homem no trânsito (Yusuke Iseya), o outro que rouba seu carro (Don McKellar, que também foi o roteirista do filme), o oftalmologista (Mark Ruffalo), o menino (Mitchell Nye), a garota de programa que só anda de óculos escuros (Alice Braga), a esposa do primeiro homem (Yoshino Kimura), o velho do tapa-olho (Danny Glover)... todos eles confinados numa ala de um sanatório abandonado. Uma exceção: no grupo estava a esposa do oftalmologista (Julianne Moore). A única que enxergava e que, por meio de um subterfúgio, permaneceu ao lado do marido, tornando-se guia dele e de todos do grupo. Nenhum deles tem o nome citado, assim como no livro.

Há outros doentes em outras alas. Não demora a haver o choque. Um se intitula o "rei da ala 3" (Gael García Bernal). Este e seu grupo passam a controlar o repasse de comida para os grupos de outras alas. Primeiro, cediam a comida a troco de objetos pessoais que tivessem algum valor. Depois, por noites de prazer com as mulheres. Eis as cenas que causaram mais problemas para os críticos do filme: as dos grandes estupros levados a cabo pelos cegos da ala 3.


Era possível falar durante horas sobre a moralidade vazia, ou cegueira, de alguns. Claro, a violência choca. Mas algo feito assim, omitindo o que é essencial à compreensão de uma adaptação cinematográfica de um livro em que tudo está lá, principalmente a violência, seria simplesmente mentiroso. Mas o fato é que, a exemplo do que aconteceu em Cannes, Ensaio sobre a Cegueira não tem sido muito bem recebido em alguns países do Hemisfério Norte. As salas de cinema dos EUA que abrigam o filme estão esvaziadas. Uma associação de cegos quis impedir a exibição do filme, alegando que o mesmo criava uma ideia distorcida do que é ser cego. Enfim, muita bullshit. Mas voltemos à história...

Depois de um embate definitivo entre os grupos de cegos no sanatório, os vencedores escapam e dão de cara com um estado de anarquia e desespero. Não há mais governo, as pessoas, nas ruas, cegas, estão em pandemônio. Há pouca comida para tanta gente e é preciso saquear os supermercados. Nossos personagens terão de passar por tudo isso para haver uma chance de redenção.

As cenas se passam no Canadá, em Montevidéu e em São Paulo. No entanto, a ideia do livro foi respeitada e não é dito, em momento algum, o local onde se passa a história. Mas quem é paulistano, como eu, logo reconhece determinados lugares e se espanta, a princípio, quando ouve as personagens nas ruas falando em inglês. Espanto que logo passa, é verdade.

Mais um acerto de Meirelles, que desta vez muito deve à qualidade do texto de Saramago - que nem ouso questionar, pois li outros livros dele e sei do que é capaz o velho. Ainda assim, é um filme de Meirelles, que parece condensar toda sua visão de mundo. O caos de Ensaio sobre a Cegueira não é tão diferente do de Cidade de Deus, por exemplo. Cesar Charlone capricha na fotografia esbranquiçada. A trilha sonora pouco convencional dos mineiros do Uakti é certeira. As atuações estão ótimas. De Julianne Moore, se alguém falar mal, eu juro que parto pra agressão. Tudo isso me faz crer que temos mais um filme pra entrar na lista dos melhores de 2008.

E o cinema parece cada vez mais globalizado. Pode-se dizer que é um filme nacional com elenco internacional, falado no idioma do "grande império". No entanto, é um filme para a humanidade. Um filme que choca, talvez mais porque há muita gente que não quer enxergar o que pode ser o humano colocado em condições extremas. Assim como o livro. Um ensaio sobre a cegueira. Da alma.

23 de set. de 2008

Em Cartaz: "AINDA ORANGOTANGOS"

Algumas pessoas comentam que Porto Alegre é uma pequena cidade grande ou uma grande cidade pequena, quiçá a maior cidade de interior do mundo, muito pelo fato de encontrar pessoas conhecidas dos mais variados círculos de contato ou amizade, mas essa conotação não é depreciativa e sim espirituosa. É nesse ambiente, de uma cidade efervescente, que o diretor gaúcho Gustavo Spolidoro assina a direção de seu primeiro longa metragem de ficção (além da premiada carreira como diretor de curtas, o diretor dirigiu o documentário Gigante - Como o Inter Conquistou o Mundo, 2007, sobre a conquista do Mundial de Clubes da FIFA pelo S.C. Internacional).

Ainda Orangotangos é a adaptação de contos extraídos do livro homônimo do escritor gaúcho Paulo Scott. A trama se passa ao longo de 14 horas num dia quente do verão porto-alegrense, mostrando algumas situações de 15 personagens em um dia normal na cidade. O diferencial do filme está na sua proposta estética, um ousado (e bem sucedido) plano sequência de 81 minutos (uma tomada única, sem cortes), algo até então inédito no cinema brasileiro, feito realizado anteriormente pela bela obra-prima Arca Russa, 2002, de Alexandr Sokurov. Vale lembrar que Spolidoro já utilizara essa técnica no curta Outros.

O ambiente urbano é o meio em que os personagens transitam aleatoreamente sem maiores comprometimentos ou ações conectadas entre eles, o filme inicia mostrando a viagem de um casal de japoneses no metrô da cidade, onde ocorre algo inesperado, de uma forma “natural”, como senão tivesse ocorrido, e a cena ao som de Amigo Punk (música do grupo Graforréia Xilarmônica) executada por um pequeno conjunto de músicos que tocam talvez o “hino não-oficial de Porto Alegre”, em versão tango-gaudério. Terminada a viagem pelo metrô, os personagens começam a transitar entre a realidade e a fantasia.

No transcorrer do filme, esse amálgama entre a realidade e a fantasia pode cansar um pouco o expectador, principalmente nas cenas dentro do prédio, onde uma mulher vive um pesadelo num ambiente surreal (nesse ponto, é notada a referência ao cinema de David Lynch, onde o normal e o absurdo caminham juntos). No mesmo prédio, porém em outro apartamento, um casal chega de uma festa, prontos para outra empreitada, dessa vez voluptuosa, cometendo exageros como beber perfume e provar desodorantes.

O fato é que mesmo com essa sensação de estranhamento, o filme não perde o ritmo, pelo contrário. Em uma passagem anterior à chegada de uma personagem ao prédio, durante o trajeto percorrido na viagem de ônibus, ela e uma amiga discutem a origem da típica expressão porto-alegrense do “tri”, além de um dos pontos mais altos e cômicos do filme: a teoria do Papa Gremista. Uma ode a um dos principais aspectos de identidade do povo gaúcho (num plano geral), a rivalidade da dupla Gre-Nal. E esses encontros (e desencontros) dos personagens por meio da realidade e da fantasia fluem até o final da trama.

Analisar Ainda Orangotangos por um viés mais crítico no sentido existencial é perda de tempo, pois a proposta não é essa, e isso fica claro desde o começo do filme. O filme deve ser encarado como uma forma de entretenimento, sob o aspecto de um dia normal onde alguns habitantes e passageiros transitam por uma pequena grande cidade (ou grande cidade pequena) expondo suas ações por meio de situações cômicas e bizarras, através de seus instintos e impulsos humanos, levando a crer que estes homo sapiens ainda são orangotangos.

22 de set. de 2008

Em Cartaz: "LINHA DE MONTAGEM"



“É muito tarde. Mesmo que todas as informações reconstruam os fatos, mesmo que saiba exatamente quem estava lá, mesmo que o ódio atravessado na garganta possa encontrar rostos a serem destruídos. Não foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo.”

Renato Tapajós, Em Câmara Lenta.




Os registros artísticos de Renato Tapajós surpreendem. Seus planos e palavras contam com um elaborado trabalho da linguagem, o que amplia o poder de narratividade da experiência tratada.

No dia 19 de setembro estreiou, em São Paulo, a versão restaurada de seu filme Linha de Montagem. Tapajós iniciou as filmagens das greves do final da década de 70 a partir de um pedido de Lula, personagem nitidamente dominante no filme. Por mais que se tenha buscado outros personagens, inclusive destacando depoimentos que se preocupavam com a dependência do movimento em relação ao Lula, a prodominância do líder aparece como questão não só para o filme, como para o próprio movimento. E dessa questão, o filme não se furtou, até mesmo contribuiu para problematizá-la. A mobilização das massas pela força de líderes carismáticos foi um fenômeno clássico do século XX brasileiro e, parece, ainda ser nesse começo de milênio. Foi tema bastante presente também para o cinema de Glauber Rocha.

O que habilita o filme como um documento rico para a história do país é a sua capacidade de ser, ao mesmo tempo, patrocinado pelo Sindicado dos Metalúrgicos e possuir várias sequências desconcertantes, hesitantes e incômodas. Unir patrocínio oficial e reflexão é uma operação política das mais complicadas, pois exige da linguagem uma qualidade que faça calar as pressões simplificadoras do poder instituído, ainda que seja de um sindicato de metalúrgicos (não estão livres da ambição silenciadora e autoritária).

A qualidade cinematográfica nos legou um fantástico encontro. Numa manhã, no ABCD paulista, durante o primeiro dia de greve, encontraram-se na porta da fábrica a polícia, os cineastas, os sindicalistas e um operário que desejava furar a greve. Este é o primeiro fura greve humanizado do cinema brasileiro. Sua postura hesitante, em dúvida entre a força da luta e as consequências repressivas, convida-nos a um olhar menos maniqueísta sobre essa figura social esquecida e menosprezada, que deve ser convencida politicamente e não escurraçada. O esforço de discussão do sindicalista e sua dificuldade em realizar seu objetivo também fazem do filme mais um objeto de reflexão do que uma coleção de imagens heróicas das greves, pois não há nada heróico em ter o seu RG apreendido pelo policial, após tentar, em vão, convencer um operário a não entrar na fábrica. A sequência é um registro magnífico daqueles tempos de esperança e de dificuldades, ainda sob a vigilância violenta da ditadura civil-militar. Desse encontro entre esses vários grupos sociais, a polícia impõe a sua força, ainda que o cinema lá esteja para registrar a violência do estado contra a livre discussão entre dois operários. Nessa sequência, o operário perde duas vezes, uma para o seu companheiro de trabalho, outra para a repressão. Isso em um filme financiado pelo Fundo de Greve, o que jamais se pode deixar de levar em conta, para justamente enaltecer a força ética e reflexiva do filme. Este filme é, de fato, uma fonte de grande valia para a memória brasileira. Sua restauração e disponibilização nos cinemas e, em breve, em DVD deve provar isso.

As entrevistas realizadas em momentos próprios, marcadas para acontecer, entercalam-se com as entrevistas realizadas na entrada da fábrica ou em uma Assembléia. Se considerarmos que é o presente que nos traz na garganta a vontade de narrar, é de se supor que as entrevistas nos locais das ações sejam importantes para se captar tensões em determinados momentos da luta, por exemplo, na assembléia em que se volta ao trabalho sem as reinvindicações atendidas, único momento em que Lula é vaiado. Por outro lado, as entrevistas mais convencionais, sentadas e marcadas em momento específico, trazem uma reflexão do próprio movimento sobre a sua memória. Nesses momentos, alguns operários se destacam como historiadores de si mesmos, experiência também importante para um filme que não quer canonizar ninguém, nem eleger um grupo social iluminado.

Não endeusar o movimento é mostrá-lo suando. Por isso, há planos muito interessantes que destacam o peso dos boletins, a sua produção física, na gráfica. Os operários com as mãos sujas também na greve é uma imagem digna de um filme que ultrapassa a questão sindical para alcançar metáforas imagéticas que se inscrevem na história do cinema. Não só as idéias da greve compõem o filme. Também estão lá as mãos sujas de tinta da gráfica do sindicato e o peso dos vários fardos de boletins sendo levados ao caminhão, que os distribuirá para mais de 100 mil pessoas em três horas. O custo braçal dos movimentos sociais, sempre aquele plano desprezado na montagem, aparece artisticamente e politicamente articulado no filme de Tapajós.

O processo de restauração e relançamento de filmes brasileiros tem trazido à tona a necessidade de refletir sobre os filmes nacionais. Mais um passo é dado nesse sentido com o filme Linha de Montagem. Não para lamentarmos o tempo em que Lula era líder da esperança, mas para ampliar ainda mais as perguntas e as dúvidas de como vamos mudar esse tempo, sempre repetido, sob diferentes formas, de violência e exploração.

15 de set. de 2008

Em Cartaz: "MISTÉRIO DO SAMBA"


Carolina Jabor até deu um pulinho nas colunas sociais. E as matérias não se esqueceram de dizer que o filme Mistério do Samba tinha o DNA da fama, lembrando que Lula Buarque de Hollanda é sobrinho de Chico Buarque. Passada a genealogia do sucesso da alta cultura, temos o filme realizado pelos dois e protagonizado por Marisa Monte, Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho.

Tantos famosos em um único filme para encontrar um grupo de (quase) anônimos, responsável por uma experiência do samba diferente da atual. Nada de luzes, efeitos especiais e sambódromo. O samba da velha guarda era um exercício de liberdade frente aos incontáveis momentos de dificuldade e opressão. Os personagens da velha guarda da Portela são tratados pelos três artistas famosos com reverência. Os famosos parecem conversar com ídolos preciosos, escondidos. É de se perguntar por que esses três artistas precisam resgatar a experiência da velha guarda? Por que eles precisam olhar para uma outra experiência musical, diferente da deles?

Certamente, porque eles não estão satisfeitos com as suas experiências musicais. Marisa Monte resgata sambas perdidos, Paulinho da Viola relembra os momentos em que conheceu os sambistas da velha guarda, Zeca Pagodinho funda a sua origem no samba de terreiro. Paulinho da Viola, que um dia cantou: "Olá, como vai? Eu vou indo e você, tudo bem? Tudo bem, eu vou indo, correndo Pegar meu lugar no futuro, e você?", hoje participa de uma desesperada busca pelo passado.

É desesperada porque é tardia. Alguns já morreram, as fitas já começam a mofar e, mais do que o belo trabalho de Marisa Monte, é necessário constatar a seleção cultural imposta em nosso país. Nenhuma música de Chico Buarque se perdeu, como se perdem as dezenas de fitas feitas pelos integrantes da velha guarda. Graças ao trabalho de memória dos ainda vivos é que se pode resgatar alguns sambas.

Esses sambistas anônimos, ontem e hoje, vivem superando as próprias dificuldades. Todos eles trabalhavam em outra atividade e o samba era mais sonho que remédio. Até mesmo na perpetuação de suas memórias, eles precisam trabalhar duro para não se desmancharem no ar. A memória é sua última arma para se defender contra o mundo hostil onde sempre viveram.

Os artistas contemporâneos, ao contrário, fundam-se numa tradição, encontram um porto seguro. O final, para eles, é feliz. Encontraram um passado para se ancorar e acreditam ter dado uma âncora a esse passado ameaçado. Um consolo para aqueles que, como Tia Eunice, afirmaram que o samba era muito trabalho e muita roupa para lavar?

12 de set. de 2008

Em Cartaz: "LINHA DE PASSE"


Quem lê a sinopse do terceiro longa metragem co-dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, pode imaginar algo como: “é mais um filme sobre pobreza do povo brasileiro e suas mazelas”. O que não deixa de ser verdade, ao passo que essa temática é explorada à exaustão por muitos cineastas brasileiros, mas Linha de Passe pode ser visto por outro viés. Uma trama centrada nos desafios pessoais de uma família pobre e degradada perante os padrões da sociedade.

Individualismo é foco das agruras

Linha de Passe tem como ponto de partida o ambiente urbano, no qual seus personagens se amalgamam em busca das suas realizações, desejos, crenças e objetivos, lutando e sendo engolidos pelo meio que os permeia. A narrativa do filme de Salles e Thomas é enriquecida já na sua primeira grande sequência, com incursões externas, onde as particularidades dos personagens são retratadas em um dia na cidade de São Paulo, sendo posteriormente desenvolvidas pelo bom roteiro que narra o espaço temporal entre os acontecimentos do filme até o seu desfecho.


Sandra Corveloni (prêmio de melhor atriz em Cannes 2008) é a matriarca de uma família desestruturada que habita a periferia da Zona Leste de São Paulo, tem o desafio de gerenciar sua casa e tomar conta de seus quatro filhos homens - e ainda grávida do quinto - todos de pais diferentes. Cleuza (Corveloni) embora grávida e trabalhe fora para manter o sustento dos filhos, além de dividir seu sofrimento cotidiano com sua outra paixão: o Corinthians – acompanha os jogos do alvinegro no malogro de sua campanha no Campeonato Brasileiro de 2007, seja no rádio ou no estádio em um clássico.

O futebol é a peça-chave nas relações familiares, pois não só a mãe como todos os filhos são adeptos, como é mostrado numa bela cena fotografada à noite no pátio da casa, onde um bate-bola entre os quatro irmãos mostra suas habilidades com a bola. Contudo, essa habilidade é a antítese de suas realidades. Principalmente de Dario (Vinicius de Oliveira, em seu segundo trabalho com Walter Salles - o primeiro foi Central do Brasil, 1998), que sonha em ser jogador de futebol profissional, correndo contra o tempo das peneiras, pois já vai completar 18 anos. Tempo que seu irmão mais velho, o motoboy Dênis (José Geraldo Rodrigues) corre para cumprir suas tarefas e resistir à oferta da ilicitude. Tempo que o agora convertido evangélico Dinho (João Baldasserini) faz com que sua fé reverta sua antiga trajetória “na quebrada” em que habita, para reprovação de seus ex-amigos. Tempo que o caçula Reginaldo (Kaique de Jesus Santos), inconformado pela ausência e abandono paterno, busca em suas viagens diárias de ônibus para encontrar seu pai.


O individualismo de cada personagem é retratado por suas desgraças cotidianas, onde a falta de perspectiva real e o desencanto de seus desejos caminham de mãos dadas, contra a indiferença da classe média alta, que por sua vez também é individualista (como não poderia deixar de ser), só enxerga essas mazelas que a rondam quando sua condição é posta em perigo, fato mostrado no filme em ótimas tomadas de ação no caótico trânsito paulistano. O futebol pulsa na tela, que vai da arquibancada (no clássico entre São Paulo e Corinthians, onde Cleuza torce e acredita na reação do seu time no campeonato), nas peneiras e nos jogos na várzea onde Dario tenta a sorte de mostrar o seu talento futebolístico (real, diga-se de passagem).

E se o tempo constrói ou destrói tudo, em Linha de Passe os personagens lutam contra o tempo, por meio de suas individualidades e objetivos que cada vez mais impõem dificuldades nas suas caminhadas. Incursão no mundo do crime, devoção religiosa, mazelas sociais, indiferença da classe média, paixões e sonhos futebolísticos, meio e temporalidade que corroem a vida dos personagens são os elementos que Walter Salles e Daniela Thomas apresentam com simplicidade, apenas um exemplo de jornada cotidiana de uma família à margem do progresso e das esperanças das grandes metrópoles brasileiras, porém sem cair nos clichês e na pieguice de muitos filmes que exploram a desgraça alheia como forma de denúncia social ou simplesmente por uma estética descompromissada com a realidade brasileira.

22 de ago. de 2008

Em Cartaz/Entrevista: "ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO"

Entrevista de Zé do Caixão a Cristian Verardi, do site "Qual É a Boa".

Cineasta maldito, mítico e controverso, José Mojica Marins invadiu de tal forma o inconsciente coletivo do povo brasileiro que se tornou uma figura indissociável de sua maior criação, Zé do Caixão! Ícone absoluto do horror brasileiro, José Mojica Marins deixou sua marca no cinema nacional através de uma filmografia vasta e singular, composta por obras como "À Meia-Noite Levarei Sua Alma", "Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver" e "O Despertar da Besta". Sobrevivendo à margem da indústria cinematográfica brasileira, Mojica resistiu bravamente à falta de apoio estatal, ao descaso da crítica e ao preconceito com o gênero horror, e após uma inexplicável gestação de 40 anos consegue produzir "Encarnação do Demônio", o desfecho da trilogia iniciada em 1963 com "À Meia-Noite Levarei Sua Alma". "Encarnação do Demônio" foi o grande vencedor do Festival de Paulínia - levando inclusive o prêmio da crítica - e participará como convidado do próximo Festival de Veneza. Mojica esteve em Porto Alegre, no último dia 02, para o pré-lançamento de "Encarnação do Demônio", no 4° Fantaspoa.

QUAL É A BOA - O personagem Zé do Caixão nasceu de um pesadelo. Os pesadelos continuam sendo uma fonte de inspiração?

ZÉ DO CAIXÃO - Pra mim é! Em 1963, em outubro exatamente, os padres me desiludiram, disseram que eu não servia para fazer cinema. Eu estava fazendo uma fita em 1961 (Meu Destino em Tuas Mãos), pra crianças, um filme feliz, legal, os padres e as freiras aplaudiram de pé, mas quando eu fui lançar ninguém quis a fita. Eu vinha de “A Sina do Aventureiro”, um bang bang meio nosso, bem brasileiro, e eu faço de repente um filme bem água com açúcar. E aí eu fui falar com o padre, falei: “Vocês aplaudiram de pé, pediram que eu fizesse, e o cinema não quer exibir a fita porque é muito água com açúcar”. Aí o padre virou pra mim e disse: “Olha meu filho, eu sinto ter de falar, você não nasceu pra fazer cinema.” E eu: “Eu só sei fazer isso, minha religião é o cinema!” E o padre: ”Você não nasceu pra isso, as pessoas têm de nascer. Você podia vender uva passa, engraxar sapatos que é mais fácil, pega uma outra profissão, mas esqueça o cinema”. Pô, aí eu fiquei meio revoltado. Então tinha James Dean com “Juventude Transviada”, “Vidas Amargas” e eu pensei: "o negócio é tentar fazer uma fita sobre a mudança dos jovens no Brasil, já que tavam mudando no mundo todo". E aí eu estava com “Geração Maldita” pra fazer. Consegui juntar uns associados pra fazer o “Geração Maldita”. Estava com barba porque tive um problema intestinal e invés de fazerem promessa pros meus cunhados deixarem a barba, fizeram pra mim. Eu por respeito deixei a barba, né. E aí, saio um dia cansado, chego em casa, tô jantando, e o cansaço era muito. Eu já tinha tomado comprimidos pra dormir, eu sou dependente de comprimidos, sofro muito de insônia. Acabei adormecendo na mesa e devo ter me retorcido, me agitado. Ao adormecer veio esse pesadelo com a figura de preto, que eu retratei no “Esta Noite levarei Sua Alma”, que me levava pra uma gruta onde tinha uma lápide com data do meu nascimento e da morte! Era uma espécie de um prenúncio pra eu entrar naquilo que gostava: o horror, o terror, que eu já tinha feito umas fitas experimentais, aos 10, 12 anos. Trouxeram um pai de santo, acharam que eu estava com algum espírito maligno dentro. O pai de santo falou: “Pronto, tirei o diabo do corpo dele”! Eu disse que não estava com diabo nenhum, pô! Eu tive uma premonição, eu vou fazer outro negócio! Não quis saber mais de dormir, então fui buscar minha secretária, bati na casa e ela ficou toda apavorada: “Aconteceu alguma coisa?” Eu disse: “Não! Preciso de você pra fazer um resumo, eu não vou mais fazer “Geração Maldita”, eu vou fazer “A Meia Noite Levarei Sua Alma”! (...) Ficou um negócio bem cabalístico, 13 latas e 13 dias, era o material e o tempo que eu tinha pra filmar e pra pagar a equipe, porque a produção já tinha sido levantada. E aí começou a minha procura do Zé do Caixão. (...) Eu tinha achado uma capa de Exu. O zelador do prédio do meu estúdio praticava macumba e esqueceu a capa. E tinha um maço de cigarros com uma cartolinha. Pô, já era a roupa do personagem.

QUEB - “Encarnação do Demônio” levou 40 anos para ser realizado. O roteiro foi reescrito pelo cineasta gaúcho Dennison Ramalho. O quanto foi mantido da trama original?

ZÉ - No original, o Zé tinha uma pequena passagem por São Paulo. Agora tudo se passa na grande metrópole. Só aí já foi uma mudança muito grande. Com a violência, a vaidade de uma cidade grande, ficou um prato muito saboroso. A superstição continua a mesma, mas sentimos que tínhamos de partir pra mais violência, porque estávamos numa cidade violenta. Queira ou não São Paulo já está chegando na altura do Rio. Em violência já estão se igualando. Então, acho que aí já foi uma modificação muito grande. Eu vejo uma outra modificação: aqui nós temos os espectros perseguindo o Zé em pleno centro da cidade. Espectros em preto e branco junto com o colorido. A outra fita era preto e branco, só o inferno colorido, e agora se inverteu. Mas a grande vingança é a seguinte: quando eu fiz o “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”, nos 30 segundos finais a censura me obrigou a fazer o Zé do Caixão se converter. Ele teve de pedir a cruz quando ele tava morrendo. No original dizia “Não acredito!”, mas daí teve de dizer “Acredito!”, e de repente a cruz. Eu tinha um problema grave, eu não podia falar pra ninguém, só os amigos sabiam o que aconteceu, então o público não sabia, e era uma incoerência, o Zé afundando e dizendo: “Eu creio! A cruz padre! A Cruz!” E aqui nós demos o troco, filmamos como tinha de ser. No lugar de pedir a cruz, o Zé afunda no lago, mas levanta e pega a cruz, renegando cristo, pra crucificá-lo outra vez. Então é a resposta ao passado, a essa censura violenta dessa ditadura, tivemos algo bem violento, bem forte. Ah, também temos baratas, ratos, aranhas no próprio Zé do Caixão. Antes ele punhas nas mulheres, agora as mulheres botam as aranhas nele. Temos tudo pra deixar o público contente. E sempre tem alguém que fala, reclama sobre o lance da sexualidade. A sexualidade caminha com o terror.

QUEB - Fome, miséria, violência, injustiça. A realidade brasileira tem fornecido uma vasta matéria-prima pra gerar o horror. “Encarnação do Demônio” incorpora em sua trama elementos da violência urbana. O que é mais assustador, o medo do desconhecido, o sobrenatural ou a realidade brasileira?

ZÉ - A realidade brasileira. A realidade brasileira na verdade assusta uma determinada camada social, da média para cima, agora, da baixa à baixíssima ainda existe uma superstição, um medo danado. Você roga uma praga, o cara tem medo, todo mundo usa patuá, medalhão, mascote, pra realmente tirar "as maldição". Então, a classe baixa mesmo, tem medo do sobrenatural. De ter castigo, de ter uma perseguição de Satanás. Na minha concepção, Deus criou o homem e o homem criou o Diabo. Para os elementos com maior escolaridade, mais vividosa, o medo é o da violência, aquela em que você sai e não sabe se volta pra casa. Esse é o grande problema!


Entrevista realizada por Cristian Verardi, crítico do "Qual é a Boa" e convidado especial do DDF.

Disponível em
http://www.queb.com.br/entrevista.php?id=286
Cristian Verardi - zumbieletrico@gmail.com

 
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