Glauber Rocha é uma página do Cinema Brasileiro pelo conjunto de sua obra e sua importância ímpar dentro do conceito de cultura nacional. É claro que o cineasta baiano não foi unanimidade perante os críticos, tanto no tempo em que realizava seus filmes quanto após sua morte no início da década de 1980. Glauber caminhou numa linha tênue entre a veneração e as críticas negativas aos seus filmes, tendo como premissa a forma hermética que o cineasta usava na construção da narrativa e da estética ao longo de sua obra. Em contrapartida, essa obra questionada que pouco animava os críticos brasileiros era reconhecida com louvor no exterior por grandes nomes do cinema mundial como Luchino Visconti, Luis Buñuel e Jean-Luc Godard, sendo que os dois últimos citados convidaram o diretor brasileiro a atuar em seus filmes, mesmo que de forma sucinta em: Simão do Deserto (1965), de Luis Buñuel, e Vento do Leste (1969), de Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin.
Após um curta experimental, O Pátio (1959), dirigiu seu primeiro longa-metragem, Barravento (1961), mas foi com Deus e o Diabo na Terra do Sol que Glauber atingiu o ápice do conjunto de sua obra. O filme produzido em 1964, antes do golpe militar que mudaria a história do país, é uma compilação de diversos elementos culturais que são fundamentais na compreensão de parte do processo histórico brasileiro retratado no filme.
O filme começa com um plano panorâmico de abertura (plano este que viria a ser utilizado novamente por Glauber em Terra em Transe, de 1967) enfocando parte do sertão de Monte Santo, ao som da música de Villa Lobos, um elemento de formação da identidade nacional, mostrando a admiração do diretor pelo Modernismo da década de 20. O cenário natural do filme é o principal personagem da trama, o sertão – porém, uma mistura de sertões presentes na literatura brasileira de Euclides da Cunha (Os Sertões), José Lins do Rêgo (Menino de Engenho) e Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas) e a tradição do Cordel.
A organização linear do filme se dá em torno do casal de camponeses, Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães), versando sobre sua condição social, de trabalho, suas relações com os donos do poder no ambiente sertanejo, por meio da ordem vigente do sertão: a rebeldia messiânica e a violência do cangaço. Após citar o cangaço, podemos localizar o tempo em que ocorre a trama, o Estado Novo de Getúlio Vargas - a república da desgraça, um Brasil esquecido no meio do sertão, assim como é abordado nas literárias dos autores citados anteriormente.
A primeira ruptura do filme ocorre quando o vaqueiro Manuel é logrado pelo Coronel Morais na partilha do gado, o que leva o vaqueiro a questionar as relações de poder privado e, consequentemente, ocasiona a revolta, matando o Coronel e sendo perseguido pelos jagunços em um tiroteio na frente de sua casa, onde sua mãe é vitimada pelos tiros dos perseguidores. Manuel então passa a ver esse fato como um sinal divino e percebe a sua condição de perseguido diante dos poderosos, aderindo ao santo milagreiro, Sebastião (Lídio Silva). Nesse momento, entra na trama um elemento fundamental para compreendermos o filme e a historicidade dele - o messianismo - algo até então corriqueiro no sertão, considerando as figuras de Antônio Conselheiro a Padre Cícero.
O destino de Manuel é entregue à aceitação e fidelidade ao santo milagreiro, exibindo devoção no cumprimento dos rituais de purificação da alma, apesar da oposição de Rosa. É válido ressaltar que a condição de beato a queal adere por Manuel e que é questionada por Rosa é fruto de um niilismo proporcionado pelo meio em que vivem: uma terra sem lei, ou pior, com lei própria, a lei dos coronéis, a lei dos donos do poder. Contudo, a dialética do discurso marxista na narrativa de Glauber é posta em conflito na frase de Rosa:
“O povo não presta e não vale nada!” Após um curta experimental, O Pátio (1959), dirigiu seu primeiro longa-metragem, Barravento (1961), mas foi com Deus e o Diabo na Terra do Sol que Glauber atingiu o ápice do conjunto de sua obra. O filme produzido em 1964, antes do golpe militar que mudaria a história do país, é uma compilação de diversos elementos culturais que são fundamentais na compreensão de parte do processo histórico brasileiro retratado no filme.
O filme começa com um plano panorâmico de abertura (plano este que viria a ser utilizado novamente por Glauber em Terra em Transe, de 1967) enfocando parte do sertão de Monte Santo, ao som da música de Villa Lobos, um elemento de formação da identidade nacional, mostrando a admiração do diretor pelo Modernismo da década de 20. O cenário natural do filme é o principal personagem da trama, o sertão – porém, uma mistura de sertões presentes na literatura brasileira de Euclides da Cunha (Os Sertões), José Lins do Rêgo (Menino de Engenho) e Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas) e a tradição do Cordel.
A organização linear do filme se dá em torno do casal de camponeses, Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães), versando sobre sua condição social, de trabalho, suas relações com os donos do poder no ambiente sertanejo, por meio da ordem vigente do sertão: a rebeldia messiânica e a violência do cangaço. Após citar o cangaço, podemos localizar o tempo em que ocorre a trama, o Estado Novo de Getúlio Vargas - a república da desgraça, um Brasil esquecido no meio do sertão, assim como é abordado nas literárias dos autores citados anteriormente.
A primeira ruptura do filme ocorre quando o vaqueiro Manuel é logrado pelo Coronel Morais na partilha do gado, o que leva o vaqueiro a questionar as relações de poder privado e, consequentemente, ocasiona a revolta, matando o Coronel e sendo perseguido pelos jagunços em um tiroteio na frente de sua casa, onde sua mãe é vitimada pelos tiros dos perseguidores. Manuel então passa a ver esse fato como um sinal divino e percebe a sua condição de perseguido diante dos poderosos, aderindo ao santo milagreiro, Sebastião (Lídio Silva). Nesse momento, entra na trama um elemento fundamental para compreendermos o filme e a historicidade dele - o messianismo - algo até então corriqueiro no sertão, considerando as figuras de Antônio Conselheiro a Padre Cícero.
O destino de Manuel é entregue à aceitação e fidelidade ao santo milagreiro, exibindo devoção no cumprimento dos rituais de purificação da alma, apesar da oposição de Rosa. É válido ressaltar que a condição de beato a queal adere por Manuel e que é questionada por Rosa é fruto de um niilismo proporcionado pelo meio em que vivem: uma terra sem lei, ou pior, com lei própria, a lei dos coronéis, a lei dos donos do poder. Contudo, a dialética do discurso marxista na narrativa de Glauber é posta em conflito na frase de Rosa:
O contraponto é a frase de Corisco:
Os personagens corrompidos pelo meio e pelo messianismo incomodam o outro poder até então ausente no filme: A Igreja, que, como forma de repressão para neutralizar a adesão a Sebastião, procurou em Antônio das Mortes, o “matador de cangaceiros”, a solução.
A crença em um imaginário irreal proposto por Sebastião (O Sertão vai virar Mar e o Mar vai virar Sertão) e o sacrifício do filho de Rosa e Manuel são provas da cegueira pela falsa fé, criada pela falta de perspectiva daquele povo sofredor que andava de forma permanente de mãos dadas com a desgraça que remete à lembrança de Canudos. A religião contra o poder militar, a repressão no filme é retratada em Antônio das Mortes (Maurício do Valle), o algoz dos cangaceiros. Após o massacre dos beatos de Sebastião por Antônio das Mortes, Glauber remete ao sertão brasileiro um momento de western de John Ford, com a relação entre brancos versus indígenas. Apesar de ser algo tão presente na filmografia de Ford, o diretor baiano não tinha a pretensão de copiar o cineasta estadunidense, trata-se apenas de uma pequena referência sobre as relações humanas e de poder.
A cultura do cordel se apresenta na canção “Rosa e Manuel nas Veredas do Sertão”, canção composta por Glauber, como uma introdução à fase final do filme, em que são inseridos personagens clássicos da história do cangaço, Corisco e Dadá, após a morte dos ícones de cangaço: Lampião e Maria Bonita, capturados e assassinados pelas forças do Estado Novo no Sergipe. Manuel e Rosa são guiados por Cego Júlio ao encontro de Corisco (Othon Bastos), onde podemos notar como a inserção do cangaço estabelece outra forma de poder, a lei da bala em contraponto à lei do governo.
O monólogo de Corisco frente à câmera é a síntese do sentimento de resistência à repressão, sem medo, com ideologia em que as incorporações do mito e da cultura popular estão presentes na fala do cangaceiro para o expectador. Manuel adere ao cangaço como uma forma de vingar Sebastião. Ainda cego pelas promessas do beato, é rebatizado por Corisco como “Satanás”. Contudo, a fidelidade a Sebastião gera discussões ideológicas entre Corisco e Manuel, no que diz respeito à significação da violência e da reza na luta para mudar o destino em torno da grandeza do santo contrapostos à grandeza de Lampião defendida por Corisco.
Na sequência final, o bando é alcançado pelo algoz Antônio das Mortes, ao som das canções “Se entrega, Corisco” e:
“Farreia, farreia povo
Farreia até o sol raiá
Maratam Corisco
Balearam Dadá”.
Quando o matador de cangaceiro acerta um tiro em Dadá e rende Corisco, dando-lhe a opção de se entregar, logo negada pelo cangaceiro, o algoz atira em Corisco sob a observação de Rosa e a fuga de Manuel, a fuga para o mar, o mar prometido por Sebastião.
Os elementos históricos e culturais se amalgamam por meio das conjecturas propostas na narrativa que Glauber construiu, resultando numa obra essencial para a filmografia brasileira, para que possamos compreender melhor as relações de poder e religião de um Brasil esquecido, à margem do desenvolvimento da sociedade urbana que eclodia na época. É válido citar mais uma vez o ano de produção do filme, 1964, meses antes da tragédia imposta à democracia vigente na nação. Após o golpe, o filme foi apreendido pelos militares e levado para o departamento de censura. Um dos censores, logo depois de assistir ao filme, emocionado, ordenava a liberação da fita definindo-a como “um filme de macho, feito por um cabra macho”. A frase em questão foi proferida pelo militar que viria a ser o último dos algozes da democracia no país, o General João Baptista Figueiredo.
Tendo como premissas a cultura do Cordel, a religiosidade, a terra que não é de Deus nem do Diabo, as relações de poder, a incorporação da cultura popular pelo mito, o mar como utopia do sertão, tudo isto resulta num trabalho de construção e montagem do autor que acaba por provar que, assim como a terra, o cinema não é de Deus nem do Diabo: o cinema é do homem - e o homem que realizou esse filme foi Glauber Rocha.
Um comentário:
O texto é correto. Apesar de eu não ver "Deus e o diabo na terra do sol" como um filme histórico. No sentido de tentar apreender um acontecimento (cangaço/messianismo) circunscrito numa região (sertão/nordeste). Acho que o filme localiza os personagem no tempo e no espaço para tentar compreender o Brasil. Compreensão problemática, porque não dá respostas nem agradáveis nem peremptórias.
Gosto muito do uso da música em "Deus e o diabo". A seqüência final é coisa de louco, com a música, com os tiros e com a montagem num harmonia fora de série. E de uma agressividade inimaginável na música de Sérgio Ricardo. Até aquele momento, bom enfatizar. Pois, em 1967, o compositor do filme, no Festival da Record, quebrará seu violão no palco ao ser vaiado pela platéia. Tem o vídeo no YouTube.
No mais, seu texto tá ótimo.
E, não sei porque, ao escrever o comentário, veio a imagem de Paulo Miklos, em "O invasor", como uma espécie de releitura de Antônio das Mortes. Será? Tenho que rever "O invasor" tendo em mente Antônio das Mortes. He he he!
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