20 de jun. de 2008

Em Cartaz: "CORPO"

O filme Corpo, dirigido por Rossana Foglia e Rubens Rewald, reflete de maneira interessante sobre o lugar da história e da memória. O filme tem como personagens principais dois médicos legistas e grande parte do enredo se passa dentro do IML cheio de cadáveres. O trabalho do legista – como reforça insistentemente a legista-chefe – é descobrir de que causa (médica) aquele corpo morreu. E só. Contra essa determinação, o personagem Artur (Leonardo Medeiros) especula sobre a condição da causa mortis: sobre o socorro que poderia ter salvo aquele corpo, da bala que poderia ter sido evitada, da bebida excessiva para descontar o desgosto da vida. A perseguição pela situação que leva a morte de um corpo é tanta que, mesmo com os vivos, Artur continua fazendo seus diagnósticos imaginários.

A imaginação e a especulação estão presentes de tal maneira no filme, que poderíamos dizer que praticamente toda a narrativa se trata da imaginação e das especulações do médico legista. Pouco de fato acontece no filme, mas as histórias sugeridas são muitas. E esse trabalho imaginativo é o que enriquece o enredo: o que verdadeiramente acontece não é tão significativo quanto o exercício de pensar, de procurar, criando respostas e situações. O importante é que se olhe criticamente para cada corpo que chega à sua mesa.

O ponto central do enredo é uma grande quantidade de ossadas que chega ao IML: todos ossos sem identificação, possivelmente despachados em uma vala comum para que não fossem nunca achados nem identificados. O trabalho dos legistas será, dali para frente, tentar identificar esses ossos e responder pelos anseios dos parentes de desaparecidos políticos.

Esses ossos são de desaparecidos políticos torturados e mortos pela ditadura militar? Será possível identificar todas as ossadas? Junto com esse material, chega o corpo de uma mulher; o corpo que dará título ao filme e sobre o qual Artur irá ansiosamente se debruçar.

O mistério para o personagem de Leonardo Medeiros é se esse corpo é mais um dos possíveis torturados e assassinados na ditadura, que milagrosamente teria se conservado por décadas. O foco da imaginação de Artur e do filme está sobre isso e as possibilidades de como ela teria morrido.

“Eles já estão mortos e não podemos fazer nada por eles”, diz a legista-chefe Lara (Chris Couto). Reconstituir a vida daquele corpo é o que mais perturba o legista e não o fato dela estar morta. Para a história, interessa-nos justamente isso: o que fazer com nossos mortos? Esquecê-los e jogá-los na vala dos “não reclamados” ou narrar sua vida, o que se passou? Relembrá-los?

A história fala dos mortos e não para tentar revivê-los, mas para dar a eles um lugar entre os vivos. Estamos sempre lembrando do passado, dos mortos, portanto. E é a isso que devemos nos dedicar; nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin: “Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados.”

Neste sentido, o personagem de Leonardo Medeiros persegue a história daquele corpo, com a ânsia de um historiador que, perseguindo, narra e relembra o passado que não deve ser esquecido. Não podemos ensacar nosso passado em sacos sem nome e jogá-los na vala comum, dar memória àquele corpo não é um simples delírio; é uma “tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror. (...) as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que deve nos ajudar, a nós, os vivos, a lembrar dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro.[1]


[1] Trechos tirados do texto Verdade e Memória do Passado. Em: Lembrar, escrever, esquecer. SP: Ed. 34, 2006.

6 comentários:

Alessandro de Paula disse...

Humm... muito me agrada esse tipo de reflexão. Deve ser um belo exercício de cinema.

Mais tarde vou atrás de informações sobre os diretores. Creio que não ouvi falar muito deles antes (não me soam estranhos os nomes, mas...).

Abraços a todos!

Anônimo disse...

Alessandro, tudo bem? Rossana Foglia e Rubens Rewald dirigiram o curta premiado 'Mutante'. Talvez ajude.

Belo texto, Thiago. Gostei muito.

Gostaria de saber em que salas do Rio o filme está sendo exibido, não vi nada na internet até agora.

Abraços,
Laura

Renata Duai disse...

..."Trabalho de luto que deve nos ajudar, a nós, os vivos, a lembrar dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro"
É isso mesmo!!Significar o passado faz um presente consciente e consistente.

Parabéns pelo comentário, Thiago.

Renata Duai

Anônimo disse...

Pelo texto, o filme parece ser muito bom.

Alessandro de Paula disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alessandro de Paula disse...

Laura, eu vi que há um link para este "Mutante" no Filmescópio: http://filmescopio.blogspot.com/2008/06/mutante-2002-de-rossana-foglia-e-rubens.html

Como corri demais nos últimos dias, acabei não conferindo ainda. Mas irei conferir logo, logo.

Obrigado pela dica!

 
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