Cineasta maldito, mítico e controverso, José Mojica Marins invadiu de tal forma o inconsciente coletivo do povo brasileiro que se tornou uma figura indissociável de sua maior criação, Zé do Caixão! Ícone absoluto do horror brasileiro, José Mojica Marins deixou sua marca no cinema nacional através de uma filmografia vasta e singular, composta por obras como "À Meia-Noite Levarei Sua Alma", "Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver" e "O Despertar da Besta". Sobrevivendo à margem da indústria cinematográfica brasileira, Mojica resistiu bravamente à falta de apoio estatal, ao descaso da crítica e ao preconceito com o gênero horror, e após uma inexplicável gestação de 40 anos consegue produzir "Encarnação do Demônio", o desfecho da trilogia iniciada em 1963 com "À Meia-Noite Levarei Sua Alma". "Encarnação do Demônio" foi o grande vencedor do Festival de Paulínia - levando inclusive o prêmio da crítica - e participará como convidado do próximo Festival de Veneza. Mojica esteve em Porto Alegre, no último dia 02, para o pré-lançamento de "Encarnação do Demônio", no 4° Fantaspoa.
QUAL É A BOA - O personagem Zé do Caixão nasceu de um pesadelo. Os pesadelos continuam sendo uma fonte de inspiração?
QUEB - “Encarnação do Demônio” levou 40 anos para ser realizado. O roteiro foi reescrito pelo cineasta gaúcho Dennison Ramalho. O quanto foi mantido da trama original?
ZÉ - No original, o Zé tinha uma pequena passagem por São Paulo. Agora tudo se passa na grande metrópole. Só aí já foi uma mudança muito grande. Com a violência, a vaidade de uma cidade grande, ficou um prato muito saboroso. A superstição continua a mesma, mas sentimos que tínhamos de partir pra mais violência, porque estávamos numa cidade violenta. Queira ou não São Paulo já está chegando na altura do Rio. Em violência já estão se igualando. Então, acho que aí já foi uma modificação muito grande. Eu vejo uma outra modificação: aqui nós temos os espectros perseguindo o Zé em pleno centro da cidade. Espectros em preto e branco junto com o colorido. A outra fita era preto e branco, só o inferno colorido, e agora se inverteu. Mas a grande vingança é a seguinte: quando eu fiz o “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”, nos 30 segundos finais a censura me obrigou a fazer o Zé do Caixão se converter. Ele teve de pedir a cruz quando ele tava morrendo. No original dizia “Não acredito!”, mas daí teve de dizer “Acredito!”, e de repente a cruz. Eu tinha um problema grave, eu não podia falar pra ninguém, só os amigos sabiam o que aconteceu, então o público não sabia, e era uma incoerência, o Zé afundando e dizendo: “Eu creio! A cruz padre! A Cruz!” E aqui nós demos o troco, filmamos como tinha de ser. No lugar de pedir a cruz, o Zé afunda no lago, mas levanta e pega a cruz, renegando cristo, pra crucificá-lo outra vez. Então é a resposta ao passado, a essa censura violenta dessa ditadura, tivemos algo bem violento, bem forte. Ah, também temos baratas, ratos, aranhas no próprio Zé do Caixão. Antes ele punhas nas mulheres, agora as mulheres botam as aranhas nele. Temos tudo pra deixar o público contente. E sempre tem alguém que fala, reclama sobre o lance da sexualidade. A sexualidade caminha com o terror.
QUEB - Fome, miséria, violência, injustiça. A realidade brasileira tem fornecido uma vasta matéria-prima pra gerar o horror. “Encarnação do Demônio” incorpora em sua trama elementos da violência urbana. O que é mais assustador, o medo do desconhecido, o sobrenatural ou a realidade brasileira?
ZÉ - A realidade brasileira. A realidade brasileira na verdade assusta uma determinada camada social, da média para cima, agora, da baixa à baixíssima ainda existe uma superstição, um medo danado. Você roga uma praga, o cara tem medo, todo mundo usa patuá, medalhão, mascote, pra realmente tirar "as maldição". Então, a classe baixa mesmo, tem medo do sobrenatural. De ter castigo, de ter uma perseguição de Satanás. Na minha concepção, Deus criou o homem e o homem criou o Diabo. Para os elementos com maior escolaridade, mais vividosa, o medo é o da violência, aquela em que você sai e não sabe se volta pra casa. Esse é o grande problema!
Entrevista realizada por Cristian Verardi, crítico do "Qual é a Boa" e convidado especial do DDF.
Disponível em http://www.queb.com.br/entrevista.php?id=286
Cristian Verardi - zumbieletrico@gmail.com
Um comentário:
A história inicial da entrevista é ótima. A parte final minha experiência me leva a discordar do José Mojica Marins, pois, ao conviver com pessoas "da média para cima", a superstição também é muito presente. Só que se dá de outro modo, importada, por assim dizer, do esoterismo. Não está ligada ao folclore brasileiro, tão rico. Passei minha infância em Rondônia e as superstições eram reais, orientavam algumas dos meus atos, porque quase sempre elas estabeleciam meus limites.
Uma dúvida, a entrevista é com o personagem Zé do Caixão ou com a pessoa José Mojica Marins? He he he!
Postar um comentário