Você cuidaria de uma árvore morta, sempre esperando que ela voltasse a florescer?
Pois bem, é isto que Alexander está fazendo, enquanto proseia com seu filho que recém-passou por uma cirurgia de garganta, portanto, o menino está mudo. Uma esperança sem palavras?
É aniversário de Alexander. Surge o carteiro, que promete um presente. Divergem sobre Nietzsche, o eterno retorno. Vai embora, este carteiro, para depois retornar. Chegam os festejadores, entre eles, a esposa, com o médico - com quem ela parece viver.
É uma bela casa, ainda que sombria. Situações inusitadas ocorrem e, a partir de certo ponto, não temos mais noção do que é realidade ou sonho. O filme perde cores e elas retornam - nada é muito claro. Mas todas aquelas pessoas estão repletas de medo, esta é a verdade. Um ataque nuclear de sonho, existências insuportáveis sob o medo de uma guerra fria. Tudo tão desconfortável, que só resta a Alexander uma saída: sair escondido de casa, pegar a bicicleta do carteiro e fazer amor com a criada islandesa. Uma bruxa? É o que lhe diz o carteiro-consciência.
Entre sonhos, o ateu Alexander jura ao deus sacrificar tudo o que lhe é mais caro para que o terror todo acabe (ver clipe ao final do texto). Está rompendo, rompendo... indo além de si. Concretizado o ato carnal, Alexander volta para casa, às escondidas, enquanto os outros falam sobre suas pequenas vidas.
Alexander, que não se sente confortável com sua pequena vida de ex-ator de teatro em retiro, está pronto para o sacrifício. Monumental e dantesco plano: incendeia a própria casa, com tudo o que possui, com tudo o que lhe é caro. É sua negação do eterno retorno. É seu sacrifício para que nada mais se repita. Para ficar na memória, a cena do rompimento - o incêncio imponente e a perseguição a Alexander, que resiste a entrar na ambulância. Todos atrás dele, uma cena cheia de significado, que não esconde uma graça trágica.
Sob a mesma árvore morta que Alexander regava, seu filho volta a falar: "No princípio era o verbo", "Por que, pai, por quê?". É o fim, mas não da realidade em que vivemos, cada vez menos suportável e vertiginosa. Alguma esperança?
O Sacrifício (Offret; 1986) de Andrei Tarkovski, é seu filme derradeiro. Já ciente do câncer que iria matá-lo, nesta mescla de situações tão possíveis de serem reais e tão oníricas, deixa-nos seu último recado. Tarkovski assume Zaratustra, aquele que disse que é preciso superar o homem? É possível romper com tudo aquilo a que já nos acostumamos, inclusive o medo? Se possível é, então pergunto-me o preço. Não tenho respostas.
Película inquietante, O Sacrifício foi realizada na Suécia, terra de Ingmar Bergman, já que Tarkovski não mantinha boas relações com as autoridades soviéticas. Um autoexílio. Mas a intersecção Tarkovski-Bergman não para neste detalhe. O "ator-fetiche" de Bergman, Erland Josephson, é Alexander. Sven Nykvist, diretor de fotografia de grande parte dos filmes de Bergman (e de alguns de Woody Allen, também), está lá. E o clã Bergman comparece com o jovem Daniel, filho de Ingmar, atrás de uma câmera. Às vezes, tive a sensação de ver um filme do sueco, não do russo.
Desconfortável, sim. Mas também uma despedida impossível de ser ignorada.
O Sacrifício - Andrei Tarkovski - Suécia/Reino Unido/França - 1986
2 comentários:
Massa...
Nossa, parabéns pelo texto.
Difícil escrever sobre Tarkovsky sem cair na adjetivação superficial.
Edson
Postar um comentário