“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”
(Memórias póstumas de Brás Cubas)
Notas sobre o verme que comeu Brás Cubas
Outro dia comentávamos, entre amigos, sobre a desconstrução da narrativa de Thomas Mann por Luchino Visconti, na célebre adaptação ao cinema de Morte em Veneza. O diretor italiano viu necessária a substituição de um dos pilares da história – a profissão de Gustav von Aschenbach, de escritor para músico – para lograr a mesma aura de extremo romantismo atingido pela obra de Mann. A profundidade que o escritor alcançou através da linguagem escrita, o diretor conseguiu através da música. Mudando, Visconti foi fiel: adaptou-se às ferramentas do seu meio para transmitir a verdadeira alma da obra.
É um exemplo distante, mas serve para ilustrar o fracasso de André Klotzel em sua adaptação do clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Ao contrário de Visconti, Klotzel ficou estricto ao texto e acabou distanciando-se da alma da obra, fazendo um filme tímido, opaco e sem unidade. Adjetivos que de forma alguma encaixam com a obra do escritor carioca.
Por isso meu susto ao consultar outras críticas sobre o filme. Não encontrei mais que elogios à “fiel adaptação do clássico da literatura brasileira”. O Terra, por exemplo, emoldurava a Klotzel: “Memórias póstumas faz jus a Machado”, estampava. Outras críticas diziam que era o “melhor filme nacional do ano”. Puxasaquismo globalizado. Com a autocrítica subjugada ao oba-oba, é até natural que filmes assim tenham espaço na mídia e nos orçamentos.
Entretanto, o filme carece de tudo, até de sentido para existir. Vejo duas justificativas básicas na filmagem de uma obra literária: realizar um filme com uma visão pessoal do autor sobre a obra, uma releitura subjetiva que aporte por seu valor único e inovador, ou adaptar fielmente a obra ao cinema, o que exige uma complexa compreensão de seu universo e sua linguagem, para a formulação de uma narrativa que expresse a mesma aura obtida no original, através das técnicas cinematográficas. Em Memórias Póstumas, Klotzel tenta o segundo formato, mas confunde fidelidade a obra com fidelidade ao texto. Ao não adaptar a mensagem ao meio, confundiu a ironia da linguagem de Machado com o próprio objeto contado. O que era crítica aguda a uma realidade social virou caricatura novelesca absolutamente desvinculada de seu propósito primário. Às vezes até com ares de porno chanchada. Um verdadeiro collage de fragmentos do texto que não logra constituir uma unidade nem aportar qualquer visão nova que fosse relevante ao livro. Um verdadeiro despropósito, a não ser do ponto de vista financeiro: Machado dá mídia.
Entre outras coisas, destacam no filme a falta de ritmo narrativo (quebrado incessantemente por uma pseudo-adaptação da metalinguagem utilizada por Machado), o total desconforto dos atores com o português do século XIX (para uma comparação atual, basta conferir o novíssimo “Che, o argentino”, de Soderbergh e o impecável sotaque cubano de Rodrigo Santoro interpretando Raúl Castro), a extrema caricaturização dos personagens (transformando a ironia em objeto, não em linguagem) e a repudiante atuação (atuação?) de Reginaldo Farias no papel de Brás Cubas defunto.
Se algum elogio sobra ao diretor, seria o da coragem de filmar um livro tão importante para a literatura do nosso país. Ainda que, depois de ver o filme, a impressão que fica é de que na verdade não era coragem, era só prepotência.
É um exemplo distante, mas serve para ilustrar o fracasso de André Klotzel em sua adaptação do clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Ao contrário de Visconti, Klotzel ficou estricto ao texto e acabou distanciando-se da alma da obra, fazendo um filme tímido, opaco e sem unidade. Adjetivos que de forma alguma encaixam com a obra do escritor carioca.
Por isso meu susto ao consultar outras críticas sobre o filme. Não encontrei mais que elogios à “fiel adaptação do clássico da literatura brasileira”. O Terra, por exemplo, emoldurava a Klotzel: “Memórias póstumas faz jus a Machado”, estampava. Outras críticas diziam que era o “melhor filme nacional do ano”. Puxasaquismo globalizado. Com a autocrítica subjugada ao oba-oba, é até natural que filmes assim tenham espaço na mídia e nos orçamentos.
Entretanto, o filme carece de tudo, até de sentido para existir. Vejo duas justificativas básicas na filmagem de uma obra literária: realizar um filme com uma visão pessoal do autor sobre a obra, uma releitura subjetiva que aporte por seu valor único e inovador, ou adaptar fielmente a obra ao cinema, o que exige uma complexa compreensão de seu universo e sua linguagem, para a formulação de uma narrativa que expresse a mesma aura obtida no original, através das técnicas cinematográficas. Em Memórias Póstumas, Klotzel tenta o segundo formato, mas confunde fidelidade a obra com fidelidade ao texto. Ao não adaptar a mensagem ao meio, confundiu a ironia da linguagem de Machado com o próprio objeto contado. O que era crítica aguda a uma realidade social virou caricatura novelesca absolutamente desvinculada de seu propósito primário. Às vezes até com ares de porno chanchada. Um verdadeiro collage de fragmentos do texto que não logra constituir uma unidade nem aportar qualquer visão nova que fosse relevante ao livro. Um verdadeiro despropósito, a não ser do ponto de vista financeiro: Machado dá mídia.
Entre outras coisas, destacam no filme a falta de ritmo narrativo (quebrado incessantemente por uma pseudo-adaptação da metalinguagem utilizada por Machado), o total desconforto dos atores com o português do século XIX (para uma comparação atual, basta conferir o novíssimo “Che, o argentino”, de Soderbergh e o impecável sotaque cubano de Rodrigo Santoro interpretando Raúl Castro), a extrema caricaturização dos personagens (transformando a ironia em objeto, não em linguagem) e a repudiante atuação (atuação?) de Reginaldo Farias no papel de Brás Cubas defunto.
Se algum elogio sobra ao diretor, seria o da coragem de filmar um livro tão importante para a literatura do nosso país. Ainda que, depois de ver o filme, a impressão que fica é de que na verdade não era coragem, era só prepotência.
Um comentário:
Quando vi o filme pela primeira vez, na época do lançamento, até gostei. Talvez porque assisti o filme como muleta de vestibular. Ao revê-lo depois de anos, depois até de ler o romance de Machado de Assis, hum, não gostei. Achei fraco.
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